Independencia da
Bahia: Mª Quitéria é uma pombagira na Umbanda, e Joana Angélica protege
espírita Divaldo Franco
Num
passado distante, quando a Paralela só tinha mato e a forma mais eficaz de se
comunicar era com carta, uma garota fugiu de casa no meio da madrugada após
abusos que sofria de um familiar. Ela procurou alguma igreja aberta nas ruas de
Salvador para rezar, mas não achava. O desespero só parou quando ela viu uma
imagem imponente, no bairro da Soledade.
Ela
se ajoelhou, rezou e acalmou seu coração. Só não sabia que ali não se tratava
de uma santa católica, mas da heroína da Independência da Bahia, Maria
Quitéria. Desde então, mesmo sem as pompas oficiais do Vaticano, aquela jovem
passou a ser devota da “Santa Quitéria”.
Esta
história narrada é apenas mais uma da mistura entre os mártires do 2 de Julho e
o sincretismo baiano. “Foi a própria menina que me contou, já idosa. Ela disse
que sua vida mudou e sempre foi protegida por Maria Quitéria. Lembro do seu
altar, que tinha diversos santos católicos, mas tinha também uma imagem da
heroína da independência. Não tive mais contato com ela, dificilmente ainda
esteja viva”, conta Milton Moura, professor da Universidade Federal da Bahia
(Ufba) e um dos maiores especialistas sobre histórias singulares na Bahia.
Nas
religiões de matrizes africanas, Maria Quitéria também é imponente, mas
encarnada na figura de uma pombagira poderosa. Quando desce no seu ‘cavalo’,
que é uma forma de denominar a pessoa que invoca a entidade, nossa heroína de
guerra tem sempre uma característica guerreira, geniosa e combatente. Contudo,
nem toda Quitéria é a mártir do 2 de Julho, como conta o historiador e
candomblecista, André Effgen. Ele recebe uma Maria Quitéria, mas não é a da
independência.
“Não
existe apenas uma Maria Quitéria dentro do terreiro. Existem outras, como a que
recebo, que também tem o punho forte, mas é voltada para gestão e magia, da
feitiçaria. Contudo, uma curiosidade. Todas as Marias Quitérias possuem algo em
comum: é uma pombagira guerreira, com ar de mulher forte e batalhadora. Todas
são assim”, conta Effgen. É como se baixasse algumas versões desta Maria
guerreira, mas não necessariamente se trata da baiana. Nas religiões de
matrizes africanas não é incomum estes fenômenos.
Com
suas devidas proporções, vamos pensar em um orixá, uma figura divina do
candomblé. Com a vinda do candomblé para o Brasil, por exemplo, a Bahia acabou
possuindo dezesseis Oxalás, como Obatalá, Oxaguiã, Oxalufã (Funfun), entre
outros. Segundo o estudioso Pierre Verger, no livro Orixás, podemos ter até 20
Exus.
André
Effgen, apesar de nunca ter recebido a invocação da mártir da independência, já
esteve frente a frente com a Maria Quitéria que expulsou os Portugueses daqui,
mas na figura de uma pombagira, claro. A Maria Quitéria da Independência morreu
em 1853. Segundo André, não é difícil identificar quando se trata da nossa
heroína.
“Ela
chega e já pede para trajar vestimentas militares, com espada e tudo”, resume
Effgen. Vale lembrar que a Maria Quitéria de carne e osso nasceu na região onde
hoje é Feira de Santana e fugiu da fazenda do pai para se alistar no exército
brasileiro. Contudo, na época, mulheres não podiam vestir fardas. Ela acabou se
passando por homem para possuir trajes militares e lutar na guerra. Foi a
primeira mulher nas Forças Armadas e, desde 2018, faz parte do Livro dos Heróis
e Heroínas da Pátria, em Brasília.
Na
figura da Umbanda, a Maria Quitéria não costuma falar como foi sua vida
passada, como veremos mais adiante com outra mártir - no espiritismo. Como
pombagira, ela dança, conversa, aconselha, ri, entre outros rituais importantes
na religião. Porém, não deixa de perder a pose de uma figura militarizada,
principalmente quando a invocação é da baiana, que não ocorre apenas em reduto
do estado, mas em outras casas pelo país. Ela está em todo lugar.
“Maria
Quitéria, na figura de pombagira, sempre se apresenta com muita força e fazendo
esta questão de se vestir de soldado. Nos encontros que já tive com ela, sempre
percebi que ela está pronta para algum tipo de batalha. Ela se torna uma figura
que valoriza nossa cultura e faz este turbilhão entre a religião e o momento
cívico”, explica Effgen.
“Nossa
Independência é a mais importante e tem uma energia espiritual única. Eu tenho
certeza que Maria Quitéria está presente neste momento cívico, assim como os
caboclos”, completa Effgen.
Algumas
pessoas devem se perguntar como uma heroína do 2 de Julho retornaria no formato
de uma pombagira, uma figura que ainda sofre muito preconceito para quem não
conhece a fundo suas características. Na verdade, existem muitas semelhanças
entre a militar e a rebeldia da entidade que veio da umbanda, mas que foi
incorporada a algumas casas de candomblé. Na verdade, 2 de Julho, heróis e
religião andam juntos neste cortejo cívico.
“A
independência da Bahia é uma manifestação popular. Não é à toa que estas
figuras simbólicas do 2 de Julho se manifestam. Quando temos a figura do
caboclo ou da pombagira de Maria Quitéria, é uma manifestação deles pela
valorização dos povos excluídos. Eles baixam no terreiro para se fazerem vivos
na memória. Estes guias são os mortos que atuam e dançam nos corpos vivos. A
pombagira é aquela que subverte à morte. que gargalha trazendo liberdade,
sempre contra a opressão, como Quitéria” explica Pai Well, Pai de Santo da TUS
- Tenda Umbandista do Saber, terreiro com cinco anos de existência e que recebe
diversas pombagiras.
“A
pombagira nasce de uma inquietude, de ser contra as limitações impostas pela
sociedade para a figura feminina. Para nós, a força de ‘Maria’ refere-se a
força da ‘Mulher’ ou o corpo feminino, nós abraçamos o corpo, seja trans,
travesti, cis… Talvez a Maria Quitéria dos terreiros seja essa mulher, que
descolonizou os pensamentos patriarcais e não age a favor do sistema opressor”,
completa Pai Well.
Os
caboclos trazem um raciocínio lógico semelhante. Eles representam o que é da
terra, da natureza, dos povos sofridos, mas com a energia divina. Apesar da
figura divina nos terreiros, que possuem sua função de guia, o caboclo também
ganha um simbolismo misto durante o 2 de Julho.
“A
figura do caboclo é mais comum nos terreiros de Umbanda. Contudo, pelo menos no
período dos festejos da independência, algumas casas de candomblé também
preparam um festejo para o caboclo, que acaba se tornando uma figura divina, de
prece e de pedidos. Não à toa, as pessoas colocam pedidos e rezam no pé do
caboclo”, lembra o filósofo e professor de História na Ufba, Milton Moura.
É
por isso que não precisa necessariamente ser cultuado por uma legião de pessoas
ou de uma religião específica para que uma figura histórica receba o status divino,
seja no encontro da moça citado no início da reportagem, como um encontro
espiritual que acontece até hoje.
• Joana Angélica
Um
jato de luz e uma doce voz. Esta foi a primeira aparição de um espírito para o
médium baiano Divaldo Franco, ainda na década de 40, quando um dos maiores
espíritas do mundo ainda era um garoto. “Nos meus momentos mais difíceis,
aquela voz estava ali para me guiar. Porém, não me dizia quem era. ‘Nomes são
representações de personalidade’, me dizia. Foram anos assim”, conta Divaldo
Franco, em uma das publicações oficiais da Mansão do Caminho, um projeto social
fundado pelo próprio espírita e que cuida de crianças órfãs ou socialmente
órfãs. Aos 96 anos, Divaldo se encontra debilitado e não pôde conversar com o
CORREIO.
Pois
bem. Apenas em 1973, quando a Independência da Bahia completava 150 anos, a
guia espiritual resolveu contar uma de suas encarnações. “Ele me perguntou se
eu ainda queria saber o nome dele. Ela me disse que se chamava Joanna de
ngelis, um pseudônimo para Joana Angélica”, conta o médium. Desde então, o guia
espiritual passou a conversar sobre suas encarnações passadas, inclusive antes
de se tornar a freira heroína da independência que foi assassinada na porta do
Convento da Lapa.
Segundo
Divaldo, antes de se tornar a Joana Angélica dos livros de história da Bahia,
ela tinha sido em outras vidas uma seguidora de Francisco de Assis, além de uma
poetisa mexicana, Juana de Asbaje. Curiosamente, esta Juana, que queria estudar
num período em que apenas meninos tinham acesso à escola, resolveu se vestir de
menino para ter acesso à escola, lembrando a figura de Maria Quitéria, que
também precisou se disfarçar para abrir espaço para a mulher.
Entre
as conversas com Divaldo, Joana Angélica falou sobre sua vida no Convento da
Lapa e o dia de sua morte, no dia 19 de fevereiro de 1822. Com o turbilhão que
se encontrava a Bahia na luta pela independência, ela tentou evitar a entrada
dos soldados portugueses no Convento da Lapa, pensando na integridade das
freiras e noviças que se encontravam lá.
Depois
que soube de quem se tratava e ficamos mais íntimos, perguntei o que aconteceu
naquele dia [de sua morte]. Perguntei o motivo dela ter vindo à porta evitar a
entrada da tropa portuguesa, muitos embriagados. Ela me disse: ‘meu filho,
quando pensei que eles iriam estuprar a todas nós, eu não tive outra
alternativa. Se eles viessem para furtar as pedras preciosas, os santos e as
coisas que tínhamos, podiam levar. Mas quando lembrei do ultraje, que eles
iriam destruir vidas, além de nos submeter a humilhações, minha vida passou a
ser um segundo plano. Falei, então, que eles só entrariam por cima de um
cadáver. Uma baioneta me atingiu, mas deu tempo para todas se refugiassem’”,
conta Divaldo.
Joana
Angélica sempre foi a guia de Divaldo desde então. Os dois lançaram dezenas de
livros espíritas, incluindo o livro ‘Joanna de ngelis Responde’, um compilado
com alguns questionamentos e lições feitas pela heroína brasileira que, assim
como Maria Quitéria, entrou no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria.Dentro da
história contada por documentos lusitanos, a freira foi morta por esconder
combatentes que defendiam a separação entre Brasil e Portugal. Na versão
brasileira e dos jornais da época, os soldados portugueses estavam invadindo
lugares para roubar, matar e estuprar. Joana tentou impedir a entrada deles no
convento e acabou recebendo uma baionetada, morrendo pouco tempo depois.
“Devemos
compreender que estas figuras históricas saíram de uma condição adversa para se
tornar algo quase divino. Joana era uma freira que enfrentou uma tropa inteira.
Quitéria era uma fazendeira que entrou para o exército e lutou na
independência. O caboclo, além de representar o povo brasileiro nesta luta, se
tornou um símbolo de tudo isto e as religiões de matrizes africanas reforçam
isto. Acaba sendo um turbilhão de devoção de pessoas que saíram de sua rotina
para mudar a história. Isso é, ou não, um ato de fé?”, diz Milton Moura.
Lembra
da garota do início do texto? Após rezar na estátua de Maria Quitéria, os
abusos acabaram, ela cresceu, casou e teve filhos. Nunca deixou de cumprir seu
dever cívico e religioso de agradecer à heroína do Brasil. Ou seria santa?
Pomba Gira? Seja lá com que seja reconhecida, estas verdadeiras entidades
divinas estão protegendo o panteão baiano, que não é apenas um exercício de
liberdade, mas de fé também. Não importa qual seja sua religião. No dia que
comemoramos 200 anos que mudamos o curso da história de todo Brasil, não tenha
vergonha de pedir proteção ao caboclo no cortejo. Pode até chorar no pé dele se
quiser. Axé, 2 de Julho!
Fonte:
Correio
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