Luiz Marques: A economia do conhecimento
A cultura como civilidade ou como
comercialização não descortina horizontes. Já a cultura como identidade
desperta a consciência do povo para a luta pela liberdade e a igualdade
Muitas de nossas concepções sobre cultura são
herança da Antiguidade clássica. A começar pelo cuidado com a formação do
indivíduo (paideia) e os valores morais (areté) que enfatizam o
papel da cidade-Estado como educadora dos cidadãos. No Renascimento, o legado
configura uma nova mentalidade ressaltando a subjetividade e o protagonismo do
indivíduo na história. O mundo torna-se mais complexo e as manifestações culturais
recebem uma autonomia crescente.
No século XVIII, com a ascensão da burguesia
os postulados do contrato, do mercado, da razão aplicada à ciência e do
Estado-nação festejam o nascimento da Modernidade. Os valores passam a ser
aceitos ou impingidos como universais. Contudo, junto vêm todas as contradições
entre os fins particulares e os objetivos gerais da civilização. Injustiças
sociais, opressão econômica, conflitos bélicos e corrupção ilustram a tragédia
moderna. As disposições classistas assimétricas de produção (Karl Marx) e as
ideias e crenças (Max Weber) refletem as estruturas sociais desigualitárias.
No século XIX e XX, o saber científico e
positivo respalda o colonialismo. A Revolução Industrial e a divisão de classes
sociais incrementam manifestações culturais. Fala-se em uma separação da alta
cultura e da cultura popular, oficial e não oficial, rural e urbana. A
indústria cultural e os meios de comunicação de massas se expandem,
pasteurizam. Os gostos e os estilos de vida são enquadrados. Pelo poder que
concentram, os veículos de mídia corporativa se revelam uma ameaça à
democracia. Após a Segunda Guerra, irrompe o debate sobre a consciência
empírica e possível.
Desse modo, a cultura se transforma em um
permanente campo de batalhas, onde formas simbólicas de dominação abrem uma
área específica de pesquisas. As diferenças destacam o multiculturalismo, as
subculturas e as etnias na constituição da personalidade individual. Extratos
médios da população se entregam ao consumo para imprimir sua identidade e uma
capacidade de expressão.
Para os filósofos Agnes Heller e Ferenc
Fehér, em A condição política pós-moderna: “Os que preferem habitar
a Pós-Modernidade ainda vivem entre modernos e pré-modernos, pois a própria
fundação daquela consiste em ver o mundo como uma pluralidade de espaços e de
temporalidades heterogêneos”. Em termos políticos, o que caracteriza a conduta
pós-moderna é se situar além da perspectiva teleológica das “grandes
narrativas” (liberalismo, socialismo, fascismo).
·
Seduções e desenganos
No emaranhado de atividades diversas, quem
procura uma unidade entre o surgimento de mitos, ritos, credos religiosos,
obras de arte, teorias científicas deve procurar o denominador comum, não nos
produtos, mas no processo criador que promete a transformação pessoal e social,
com a unidade da desunião e da ambiguidade. O expressionismo, o simbolismo, o
cubismo trazem a multiplicidade cambiante da experiência humana. O surrealismo
projeta alternativas à realidade.
Perante um sistema multifacetado, os
intérpretes concluem que não há uma Modernidade, senão uma constelação de
modernismos em correspondência com a intersecção das classes sociais. Viena
pela relação entre burguesia e aristocracia; Berlim pela relação entre
burguesia e Estado; Paris em função do peso da pequena burguesia; São Paulo
pelo peso da burguesia. Estações de trens, bares permitem aos trabalhadores
sair dos bairros marginais para os cenários em ebulição.
Não obstante, pairam dúvidas sobre os
discursos demasiado otimistas sobre mudanças com vistas à libertação dos
aglomerados subalternos. Na globalização os discursos se fragmentam. O futuro é
um desconhecido. A tecnologia e a informação modificam a percepção do tempo e
do espaço. O capital invade todos os escaninhos da sociabilidade que até então
não tinham sido mercantilizados, como as praças e escolas públicas e as
reservas naturais. Agora corpos e até almas estão à venda.
Sob o teto do neoliberalismo, vivemos
cindidos em segmentos sociais com regramentos legitimados pela ordenação
pragmática da eficiência, desempenho, produtividade e rendimento que delineia
nossas vivências e expectativas na cultura contemporânea. Tal é a lógica
cultural do capitalismo tardio. Crescentemente consumimos os símbolos, o
espetáculo (televisão, computadores, vídeos) na era das formas – publicidade,
desenho, arquitetura. O figurativo (a imagem) supera o discursivo (a palavra).
Os políticos sociopatas da extrema direita surfam com desenvoltura na onda.
Hoje o conceito de cultura possui diversas
implicações. Vai do conjunto de valores compartilhados num período histórico ao
que distingue a identidade nacional, étnica ou sexual. No limite, incita
refregas e motivos para matar – Bosnia, Belfast, Ruanda. Pode designar a
cultura policial ou da empresa ou do samba sem conexão orgânica. “O princípio
inspirador da vida moral ou religiosa, da literatura, da arte, da ciência e da
filosofia, bem como de sua organização política ou econômica não casa com o
caráter híbrido e plural das formas culturais atuais”, sublinha o sociólogo
Josep Picó, no ensaio Cultura y Modernidad: seducciones y desengaños de
la cultura moderna.
·
Um significado último
A economia do conhecimento acumula mais
riqueza do que a economia da produção. A linguagem informática é o novo
esperanto. O real confunde-se com a imaginação. A coerção cede a vez à sedução
para consumir o que, antes, era tido por supérfluo ao revés de básico. O
arquétipo ideal do indivíduo neoliberal está vinculado ao mercado por
intermédio da pedagogia, não para a cidadania, senão para os passeios no shopping
center. Em ambas as situações, a política vai para o escanteio. Contam a
estética da mercadoria e a espetacularização do consumo para performar.
A cultura é o trabalho sobre a natureza e, o
trabalho, é exploração. Daí a frase de Walter Benjamin de que todo documento de
civilização é também um registro da barbárie. Os meios coletivos de conquistar
as metas libertárias da contracultura dos anos 60 são abandonados e esquecidos,
sem a sua base política anticapitalista. Já o arcabouço convencional do fazer
político (os partidos), sem desfraldar as utopias são postos sob suspeição e,
qual os sindicatos, perdem filiados.
A cultura precisa reencontrar uma plataforma
política que dialogue com a dimensão do social e do econômico, para vencer a
fragmentação organizativa e de propósitos. Enfim, para fazer a vida valer a
pena ser vivida e a sociedade interagir como uma verdadeira sociedade com os
sócios. O valor transcendente da cultura está em materializar os sonhos
coletivamente. Não basta denunciar os limites da existência no cotidiano, é
necessário forjar os instrumentos de emancipação.
Movimentos que protestam contra alienações
reproduzem a reificação através da sua fragmentação. Com efeito, as bandeiras
capazes de construir a agenda global forte (o nacionalismo revolucionário, o
feminismo, as lutas étnicas e ambientalistas) seguem fora de foco, apesar de a
cultura enquanto identidade ser uma continuação da política por outros
caminhos. As solidariedades de grupo são subestimadas, secundarizadas, com o
que o potencial de mobilização nas ruas diminui.
A cultura como civilidade ou como
comercialização não descortina horizontes. Já a cultura como identidade
desperta a consciência do povo para a luta pela liberdade e a igualdade.
Conforme Terry Eagleton, em A ideia de cultura: “A cultura não é
unicamente aquilo de que vivemos. Ela também é em grande medida aquilo para o
que vivemos. Afeto, relacionamento, memória, parentesco, lugar, comunidade,
satisfação emocional, prazer intelectual, um sentido de significado último”.
Que cada um siga o seu coração.
¨
Do efeito Ghibli à
política do comum. Por Márcio Moretto Ribeiro
Na última semana, o estilo visual do Studio
Ghibli tomou de assalto as redes sociais – não por meio de novas animações
japonesas, mas por uma avalanche de imagens geradas por inteligência
artificial. A estética artesanal, onírica e sutilmente melancólica dos filmes
de Hayao Miyazaki foi capturada – ou melhor, simulada – por sistemas treinados
com grandes volumes de dados visuais, em muitos casos sem qualquer
consentimento dos artistas originais.
Vale lembrar que Hayao Miyazaki é
notoriamente contrário ao uso de inteligência artificial na criação artística.
Ainda assim, a viralização do chamado “efeito Ghibli” gerou entusiasmo entre
usuários, que se divertiram ao ver suas próprias fotos transformadas no estilo
visual do estúdio japonês. Ao mesmo tempo, o fenômeno provocou inquietação
entre ilustradores, que denunciaram o uso não autorizado de estilos pessoais
como mais um passo na automatização predatória da cultura. Assim, o episódio
reaqueceu um debate antigo: como proteger a criação artística sem sufocar a
inovação tecnológica?
Para começar, vale a pena voltar algumas
décadas no tempo para colocar o debate em perspectiva. Durante os anos 2000, o
movimento da cultura digital aberta expressava uma crítica ampla à forma como a
indústria do entretenimento usava o aparato jurídico do copyright para
conter a inovação e preservar modelos de negócio em declínio. A cultura da
internet nascente – feita de blogs, fóruns e wikis – dependia da liberdade de
transformar obras existentes em novas criações.
A defesa da circulação irrestrita de
conteúdos não era apenas uma rebelião contra o velho mundo midiático, mas uma
aposta no potencial emancipador das redes. Nesse espírito, autores como Yochai
Benkler enxergavam na interconexão digital e na abundância de recursos
computacionais a base para uma nova forma de geração de valor: a produção
social em rede. Assim como a riqueza das nações havia sido explicada pela troca
no mercado, a nova riqueza das redes viria da colaboração voluntária entre
indivíduos conectados.
Projetos como a Wikipedia e
o movimento “software livre” mostravam que pessoas motivadas por
valores sociais, afetivos e intelectuais podiam produzir e distribuir bens
culturais relevantes fora da lógica do lucro. Essa forma de organização
otimizava o uso das capacidades técnicas, ampliava a autonomia individual e
democratizava o acesso à cultura e à informação.
Naquele momento de entusiasmo tecno-otimista,
os grandes vilões eram os lobbies da indústria do
entretenimento que pressionavam por uma regulação mais rígida de direitos
autorais e propriedade intelectual. Esses lobbies eram vistos
como forças conservadoras que tentavam sufocar a inovação para proteger modelos
de distribuição e estruturas de poder em declínio. A retórica predominante era
de que a regulação – especialmente aquela centrada em copyright –
impedia a livre circulação do conhecimento e ameaçava os próprios fundamentos
da nova economia digital. A resistência a essas tentativas de controle era, ao
mesmo tempo, uma defesa da liberdade de expressão e uma aposta em novas formas
de produção e distribuição cultural baseadas na colaboração e no
compartilhamento.
É importante lembrar que o copyright não
é uma forma de propriedade no sentido tradicional, mas uma ferramenta
regulatória criada para incentivar a produção e a difusão cultural. Como ideias
e expressões criativas não são bens rivais, seu uso não exclui o uso por outros
– por isso, o direito autoral é um monopólio temporário conferido
artificialmente para estimular a criação.
Esse mecanismo, no entanto, foi
historicamente distorcido pela indústria do entretenimento, que usou o copyright para
bloquear reinterpretações e prolongar monopólios. Ironicamente, hoje vemos o
movimento oposto: é a ausência de proteção que ameaça a criação artística, já
que modelos de inteligência artificial se alimentam de acervos produzidos por
artistas humanos sem compensação ou consentimento. Sem garantias mínimas, o
risco é desestimular a produção cultural e empobrecer a diversidade estética.
A crença de que as redes digitais ampliariam
a liberdade individual e fortaleceriam a democracia teve seu auge no início dos
anos 2010, com mobilizações como a Primavera Árabe, o Occupy Wall
Street e, por aqui, os protestos de Junho de 2013. As mídias sociais
eram vistas como instrumentos de organização horizontal e de renovação da
esfera pública, capazes de contornar estruturas de poder consolidadas.
Mas esse otimismo logo deu lugar ao
ceticismo, à medida que as mesmas plataformas passaram a ser dominadas por
estratégias de desinformação, manipulação algorítmica e polarização. O que
antes parecia um espaço de emancipação se transformou em um ambiente marcado
por radicalização e erosão dos consensos democráticos.
Em ambos os momentos históricos, o problema
não está simplesmente na tecnologia, mas no uso do poder para operar sistemas
complexos em benefício próprio. No primeiro caso, era a indústria do
entretenimento que mobilizava o aparato jurídico e os mecanismos estatais para
reforçar direitos autorais em moldes mais restritivos, tentando conter a
transformação digital que ameaçava seus modelos de negócio.
No segundo, vemos populistas de extrema
direita operando o sistema de comunicação digital criado pelas plataformas – um
ecossistema desenhado para maximizar engajamento, não para promover o debate
público ou o bem comum.
Diante desses desafios, respostas individuais
– como a desobediência civil que desafiava o copyright no
passado ou o boicote ao ChatGPT hoje – se mostram insuficientes. A crítica
atomizada, por mais legítima que seja, não consegue enfrentar formas de poder
que operam de maneira organizada e estratégica. Repetir a aposta de que as
plataformas digitais poderiam, por si só, organizar de forma justa a
comunicação e a cultura seria reincidir no erro dos tecno-otimistas do começo
dos anos 2010.
Confiamos demais na arquitetura técnica das
redes e negligenciamos o papel das instituições. Proteger a cultura exige uma
resposta coletiva, com base em regras explícitas e legitimidade democrática –
não um movimento espontâneo guiado por gestos simbólicos.
A produção artística é de interesse comum.
Ela enriquece a vida pública, dá forma à memória coletiva e inspira inclusive
os sistemas de inteligência artificial que hoje tentam simulá-la. Mas a
Inteligência artificial não cria a partir do nada: ela depende de uma base
vasta de conteúdos humanos. Sem proteção adequada aos criadores, essa base
cultural corre o risco de empobrecer ou mesmo se esgotar.
Proteger quem cria não é frear a inovação,
mas garantir que ela continue existindo de forma justa, plural e viva. Se
queremos um futuro onde a cultura tenha espaço para florescer, não basta
boicotar. É preciso regular.
Fonte: A Terra é Redonda
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