Paulo Nogueira
Batista Jr.: Dogmas monetários renitentes - autonomia do Banco Central e metas
para a inflação
Volto
à questão do Banco Central, paciente leitor ou leitora. Conto com a sua
paciência, característica talvez tipicamente brasileira. Volto ao Banco Central
porque o problema que ele representa se vê seriamente agravado pela teimosia do
seu presidente, que insiste em manter os juros na lua e demora a sinalizar o
início da sua redução, já tardia, ridiculamente tardia, uma vez que os diversos
indicadores relevantes a justificam cada vez mais claramente. Mas não quero
falar hoje da conjuntura da política monetária brasileira, e sim do pano de
fundo, isto é, de questões estratégicas que, embora nem sempre explicitadas,
permeiam o debate sobre moeda e juros, não só no Brasil, como em outros países.
Refiro-me
a duas questões interligadas: a autonomia do Banco Central e o regime de metas
de inflação. São políticas ainda reverenciadas, pelo menos no Brasil, mas muito
discutíveis, para dizer o mínimo. Viraram dogmas desde o início dos anos 1990
em grande parte do mundo ocidental, e acabaram sendo importadas pelo Brasil: o
regime de metas em 1999 e a autonomia legal da autoridade monetária em 2021. A
nossa adesão a esses dogmas, principalmente ao segundo, foi tardia. E talvez
por isso a ortodoxia de galinheiro que prevalece no debate econômico nacional
se aferra a eles, mesmo que o seu declínio se faça sentir nos países
desenvolvidos onde tiveram origem.
Na
verdade, parêntese, no Brasil de hoje não há debate econômico. O que existe não
é propriamente “debate”, mas a divulgação unilateral de um só ponto de vista. E
não é propriamente “econômico”, uma vez que as teses e opiniões apresentadas
são versões vulgares do que se conhece como economia, seja pura, seja aplicada.
• Origem dos dogmas monetários atuais
Em
muitos países esses dois dogmas, depois de reinarem quase incontestes na década
final do século 20 e na primeira década do século atual, sobrevivem atualmente
pro forma, tendo sido essencialmente abandonados na prática. Os bancos centrais
“autônomos” estão cada vez mais integrados à política econômica do Estado. A
propalada autonomia, que nunca foi plena, existe hoje mais nos textos legais e
nos livros-texto do que na realidade. O regime de metas, adotado como “âncora”
para a política monetária em muitos países desenvolvidos e em desenvolvimento,
foi sendo flexibilizado e, em diversos casos, arquivado sem alarde.
Mesmo
assim, vale a pena recapitular brevemente a origem desses dois dogmas
monetários. Isso ajudará a entender a sua aplicação nas últimas três décadas,
assim como suas dificuldades de sobrevivência em anos mais recentes. Vou tentar
ser claro e exercer o espírito de síntese.
Se
pudesse resumir em poucas frases a tendência histórica de longo prazo da
instituição moeda, diria que ela se caracteriza por uma demorada e tumultuada
trajetória na direção de algo fundamental – o reconhecimento de que a moeda
deve ser uma moeda estatal fiduciária pura. Desancorada, portanto. Uma moeda
sem lastro emitida por um Estado nacional, como quase sempre acontece, ou em
alguns poucos casos por Estados nacionais associados, como na Europa do euro.
Os emissores, por delegação estatal, são sempre bancos centrais públicos,
nacionais ou regionais. A aceitação da moeda é uma convenção garantida pela
confiança (fidúcia) no Estado em última instância responsável pela sua emissão.
Essa
tendência de longo prazo foi se impondo em face de muita resistência, motivada
por hábitos e preconceitos. Prevaleceu por muito tempo a relutância em aceitar
que a moeda não tivesse um “valor intrínseco”, a exemplo do que ocorre com as
moedas metálicas, baseadas em metais preciosos, notadamente ouro e prata. No
entanto, a inviabilidade do padrão-ouro, mesmo modificado e modernizado, ficou
escancarada com a Grande Depressão dos anos 1930, quando se confirmou que o
ouro não passava mesmo de uma “relíquia bárbara”, na famosa expressão de
Keynes. Resquícios importantes do padrão ouro ainda sobreviveram no sistema de
taxas cambiais fixas ajustáveis estabelecido em Bretton Woods, imediatamente
depois da Segunda Guerra Mundial, sistema que tinha como aspecto central a
livre conversão do dólar em ouro a uma taxa fixa. Com a moratória decretada
pelo governo dos EUA em 1971, suspendendo-se unilateralmente a conversibilidade
do dólar em ouro, ingressamos finalmente num regime de moeda fiduciária pura,
como destacou, entre outros, Milton Friedman.
A
demora em chegar nesse ponto se deve não apenas a um apego selvagem à relíquia
ouro, mas a algo mais renitente: a desconfiança dos agentes econômicos e de uma
parte importante dos economistas em relação ao papel econômico do Estado e,
portanto, a resistência a aceitar uma moeda desancorada, inconversível, apoiada
exclusivamente na confiança nesse Estado. Começou então um longo período, ainda
inconcluso, em que se procurou garantir por meio de regras ou âncoras que a
moeda estatal fosse realmente digna de confiança. Na impossibilidade de basear
o sistema monetário e de pagamentos em emissão primária de moedas privadas,
restou a opção de impor disciplina ao Estado emissor.
A
aspiração se mostraria muito mais difícil de realizar do que talvez se pudesse
inicialmente imaginar. Regras simples se mostrariam impraticáveis, diante da
complexidade da realidade econômica. Regras complexas, difíceis de especificar
e pouco transparentes, se mostrariam ineficazes em gerar a confiança almejada.
• O fracasso das âncoras monetárias e
cambiais
Que
caminhos foram seguidos para tentar disciplinar o Estado emissor. Uma
tentativa, propugnada pelo mesmo Friedman, foi a de estabelecer uma “âncora
monetária”, isto é, uma regra ou regras que especificassem quantitativamente
limites à expansão da moeda primária ou algum outro agregado monetário. A
relação entre emissão e inflação se mostraria, contudo, incerta e instável,
tornando a experiência com ancoragem monetária ineficaz. Depois de anos de
controvérsias teóricas e empíricas, o próprio Friedman e seus seguidores, os
assim chamados monetaristas, acabariam sendo forçados a bater em retirada e
abandonar essa abordagem.
Outra
tentativa foi recorrer à ancoragem cambial, isto é, obrigar o Banco Central a
defender taxas fixas ou alguma regra preestabelecida de variação da taxa de
câmbio. Um amplo espectro de regras cambiais, desde o currency board até bandas
cambiais amplas, foi submetido a testes em vários países. O sistema de taxas
fixas em estabelecido logo após a Segunda Guerra, em Bretton Woods, durou
algumas décadas, mas viveu dificuldades crescentes nos anos 1960 até sucumbir
em 1971, como mencionei. A ancoragem cambial teria consequências ainda mais desastrosas
em muitos países em desenvolvimento, inclusive aqui na América do Sul, nas
décadas de 1970, 1980 e 1990. Nos anos 1990, México, Argentina e o Brasil do
Plano Real, por exemplo, experimentaram graves crises econômicas ao tentar essa
abordagem. O problema, em poucas palavras, é que a defesa de uma determinada
taxa ou regra de câmbio nominal se mostrava extremamente custosa em situações
marcadas por ampla liberdade de movimentação dos capitais. Como é praticamente
impraticável abandonar por completo e para sempre a autonomia nacional na
gestão da política monetária, a ancoragem cambial acabava desembocando em
grandes crises de balanço de pagamentos, com pesadas consequências para os
países que foram levados a seguir esse caminho.
• As novas âncoras: autonomia do Banco
Central e metas para a inflação
O
que fazer? A despeito insucesso das âncoras monetária e cambial, continuava
inconcebível para o pensamento econômico dominante aceitar uma moeda estatal
fiduciária pura, sem amarras e garantias. Continuou a busca por maneiras de
limitar a liberdade do Estado e dar, assim, confiabilidade à moeda por ele
emitida. Foi aí que se chegou, principalmente desde os anos 1990, à combinação
de duas “âncoras institucionais” que se cristalizariam em verdadeiros dogmas e
sobreviveram até os dias de hoje, ainda que enfraquecidas: a autonomia do Banco
Central e o regime de metas para a inflação.
O
que significavam essas duas ideais complementares? E por que também se
revelariam problemáticas como âncoras? O que elas têm em comum e as torna
complementares, como indiquei anteriormente, é que ambas constituem amarras ou
limitações ao poder do Estado. A autonomia legal do Banco Central remove a
subordinação da autoridade monetária ao poder político, conferindo ao presidente
e demais diretores mandatos longos e não coincidentes com o do Presidente da
República. O objetivo declarado é “despolitizar” a política monetária, que
passaria a ser guiada exclusivamente por critérios técnicos. O horizonte curto
dos políticos seria substituído pelo horizonte longo de uma burocracia autônoma
e especializada. O Banco Central ficaria livre, em especial, do chamado ciclo
político, que tende a se traduzir em políticas expansivas em anos eleitorais,
em detrimento da estabilidade econômica e monetária.
O
regime de metas para a inflação, por sua vez, impõe uma limitação adicional ao
Banco Central, a quem se confere a liberdade para buscar, pelo manejo da taxa
de juro e de outras variáveis, sem interferência do governo, metas numéricas
para a taxa de inflação, determinadas em geral pelo governo (pelo Conselho
Monetário Nacional, no caso brasileiro). Estabelecidas as metas, o governo sai
de cena. O Banco Central conduz por sua conta a política monetária, ficando
obrigado a focar suas ações em um objetivo primordial: a estabilidade do poder
de compra da moeda nacional.
O
regime de metas pode ser mais ou menos flexível, dependendo de como ele é
especificado. As metas são ambiciosas, requerem grande esforço de contenção?
São pontuais ou há intervalos de confiança? São curtos os prazos fixados para
alcançar as metas? A variável de referência é a inflação cheia ou medidas de
inflação ajustadas para excluir determinados componentes voláteis do índice
geral de preços? Em certos aspectos, o regime brasileiro foi definido de forma
relativamente flexível quando comparado ao de outros países, o que não impediu
sucessivos descumprimentos das metas nos últimos anos.
• Descrédito das novas âncoras
Procurei
resumir acima, sem caricaturar, os argumentos ortodoxos. Há uma certa
plausibilidade nesses argumentos, um certo apelo ao bom-senso. Mas a realidade
desapontou repetidamente as expectativas dos que os defendiam.
Quanto
ao Banco Central, logo ficaria claro que a política monetária não pode ser
conduzida independentemente do resto da política econômica, em particular da
política fiscal, como haviam avisado, aliás, os economistas de orientação
keynesiana. Se o Banco Central, apoiado na sua autonomia legal, quiser atuar em
faixa própria, sem coordenar seus passos com o Ministério das Finanças e outras
áreas do governo, certa confusão é inevitável e nada de positivo resultará. A
realidade prática da política econômica, as interconexões entre os seus
componentes, recomenda que a autoridade monetária atue em combinação com o
governo, trocando informações, discutindo objetivos, antecipando movimentos.
Em
suma, o Banco Central é, sempre e em toda parte, um braço do aparato estatal.
Um Banco Central que pretenda ser independente de facto, e não apenas de jure,
torna-se um estorvo para a condução da política econômica. Isso raramente
acontece – o caso brasileiro de 2023 é um exemplo entre poucos.
A
ideia do Banco Central autônomo se tornou especialmente problemática nos tempos
de intensa polarização política em tantos países, inclusive o Brasil. Nesse
ambiente, a não coincidência entre os mandatos do Presidente da República e o
do presidente do Banco Central pode tornar o comando da autoridade monetária um
corpo estranho dentro de um novo governo, como vem ocorrendo no Brasil depois
da posse do Presidente Lula. Roberto Campos Neto tenta justificar tecnicamente
suas decisões, em especial os juros excepcionalmente elevados, mas suas
justificativas não são sólidas e vem sendo rejeitadas pelo governo e por um
número crescente de políticos, economistas, empresários e até mesmo por pessoas
ligadas ao mercado financeiro. Quase uma unanimidade negativa. Com o passar dos
meses, a posição “técnica” arguida pelo Banco Central parece cada vez mais
insustentável. No campo oficial, muitos têm a sensação, correta ou não, de que
o presidente do Banco Central é um bolsonarista infiltrado, que sabota
deliberadamente os planos econômicos governamentais.
Esse
problema novo, o da polarização política, se sobrepõe a um problema antigo, de
natureza estrutural, que economistas como eu cansaram de apontar: instituir a
autonomia legal do Banco Central em relação ao poder político reforça a sua
captura por interesses financeiros privados. Desaparece ou diminui o
contraponto da influência do governo e ganha força a influência do capital
financeiro, assegurada pela famosa porta giratória. Os integrantes da diretoria
do Banco Central provêm, em grande parte, do sistema financeiro e para lá
retornam. A passagem pelo comando do Banco Central é uma forma de lustrar o
currículo e conquistar posições mais vantajosas no mercado financeiro – desde
que, claro, o executivo dance rigorosamente conforme a música durante a sua
passagem pelo Banco Central. Uma forma sutil de corrupção. O Banco Central, por
essas e outras vias, se torna chasse guardée do capital financeiro.
O
segundo dogma, o regime de metas para a inflação, também foi revelando fissuras
importantes. Mesmo quando definido de forma relativamente flexível, o regime se
mostra, com frequência, difícil de manejar. Metas que pareciam razoáveis no
momento da sua definição revelam-se depois draconianas, exigindo taxas de juro
elevadas, com impacto sobre o nível de atividade, a taxa de câmbio e as
finanças públicas.
O
problema aqui é o que sempre aparece na aplicação de regras, seja fiscais, seja
cambiais, seja monetárias: a capacidade de previsão dos economistas é sofrível.
“O esperado nunca acontece; é o inesperado sempre”, dizia Keynes. Fatos novos,
choques de diferentes tipos submetem qualquer esquema de regras a tensões
difíceis de administrar. A grande crise financeira internacional de 2008-2010,
a pandemia da Covid-19, a guerra na Ucrânia desde 2022 tensionaram os regimes
de metas de inflação. O pesado impacto dessa sucessão de choques financeiros,
políticos e de oferta, levaram ao desgaste generalizado da confiança na
utilidade desse regime, mesmo nas suas versões mais flexíveis. Os defensores
escassearam, os críticos se tornaram mais aguerridos. Muitos bancos centrais
abandonaram discretamente o modelo monetário. As metas foram flexibilizadas de
tal maneira que o regime ficou virtualmente indistinguível da discricionaridade
pura, isto é, muito próximo do modelo de moeda fiduciária pura, desancorada,
sem lastro.
Aqui
no Brasil esses dogmas monetários encontram, entretanto, um derradeiro refúgio.
Como dizia Millôr Fernandes, quando as ideologias envelhecem, elas vêm morar no
Brasil. Mortas e enterradas no resto do mundo, ganham aqui uma sobrevida
final.
Fonte:
Brasil 247
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