Como negacionistas
influenciam o debate ambiental no Brasil
Nos
corredores da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da
Universidade de São Paulo (USP), o desfecho de um longo e complicado processo
administrativo é aguardado com expectativa pela comunidade acadêmica de um dos
maiores centros universitários latino-americanos. Acatada pela Reitoria da USP,
a demissão de Ricardo Felício, professor do
departamento de Geografia, põe fim a anos de ausência na universidade, produção
científica irrelevante e métodos controversos usados em sala de aula.
Nos
anos de USP, Felício ganhou notoriedade por ser um assíduo propagador de informações
falsas sobre as mudanças climáticas. Na área
ambiental, ele é apontado como um dos que mais desinformam, ao lado de nomes
como Luiz Carlos Molion, professor
aposentado da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e Evaristo de Miranda, que comandou por
anos a Embrapa Territorial (ET), uma das unidades da Empresa Brasileira de
Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
Ligados
a instituições respeitadas, os membros do trio se apresentam como
pesquisadores, mas há vários questionamentos sobre a acurácia científica de
seus dados e a relevância de seus trabalhos. O ambiente escolhido para a
desinformação passa pelas redes sociais, palestras e consultorias pagas.
·
Contra a corrente
No
caso de Felício, meteorologista formado pela USP, seus textos e vídeos chegam a
milhares de pessoas na internet. Os conteúdos, a partir de um tom
conspiratório, negam a influência das ações do homem sobre as mudanças
climáticas globais. O discurso vai contra o consenso da comunidade científica
internacional, descrito em minúcias nos documentos do Painel Intergovernamental
de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês).
O relatório mais recente do IPCC é categórico:
o impacto da ação humana sobre o clima da Terra é inequívoco. Atividades como o
desmatamento e a queima de combustíveis fósseis elevaram a temperatura do
planeta em mais de 1 °C desde o final do século 19, atestam as centenas de
cientistas do grupo. O dióxido de carbono (CO2) é responsável pela maior parte
do aquecimento global, embora o metano e outros gases de efeito estufa também
contribuam de forma relevante para o processo.
Contra
a corrente, e sem apresentar dados baseados em metodologias críveis pelos
pares, Felício insiste em criticar a conclusão de 99% dos estudos publicados
sobre o tema.
“Está
provado que o CO2 não controla de forma alguma as temperaturas, mas os
cientistas vendidos que trabalham no IPCC dizem que sim, usando modelos de
computadores nos quais foi programada uma hipótese fraudulenta que não tem o
seu paralelo no mundo natural”, afirma em um dos seus vídeos. Segundo ele,
“estamos no período em que temos as menores quantidades de CO2 na
atmosfera”.
O
negacionismo climático também é a especialidade de Luiz Molion há décadas.
Físico desde 1969 pela USP, ele era considerado um pesquisador respeitado até
causar espanto nos colegas ao passar a negar, no início dos anos 1990,
fenômenos amplamente estudados e conhecidos de física básica.
“Molion
defendeu que o dióxido de carbono não tem a propriedade física de absorver
radiação infravermelha, ou térmica. Qualquer aluno de física sabe que isso
não faz sentido. Os primeiros experimentos que mostraram a relação entre presença
de dióxido de carbono e aumento de calor são do final do século 19”, diz o
climatologista Carlos Nobre, presidente do
Painel Científico para a Amazônia (SPA, na sigla em inglês).
A
partir daí, Molion ocupou o espaço como fonte notória em palestras para
públicos que vão de produtores rurais a grupos ligados à ala ultraconservadora
da Igreja Católica.
Embora
tenha se colocado publicamente em livro como contrário ao consenso científico,
Evaristo de Miranda emprega uma tática de desinformação mais refinada,
cuidadosa e cheia de números, segundo cientistas ouvidos pela reportagem.
“Evaristo
é muito pior”, analisa Gilberto Câmara, pesquisador e ex-diretor do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). “O caso dele é de uma construção
competente, no sentido de uma visão de Brasil, deliberadamente apoiada sobre a
mentira”, complementa.
·
“Desinformação contribui para atraso no processo de
decisão”
De
uma forma geral, dar um verniz científico à desinformação que se pretende
espalhar tem um preço alto e impacta o rumo da política ambiental do país,
segundo a bióloga Mercedes Bustamante, referência em pesquisas climáticas no
Cerrado e atual presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (Capes).
“As
ações orquestradas de desinformação contribuíram para um atraso significativo
no processo de tomada de decisão sobre nossos desafios socioambientais mais
críticos”, afirma Bustamante à DW, citando o debate sobre o desmatamento e a
ausência de ações contundentes de mitigação e adaptação durante o governo de
Jair Bolsonaro.
Ao
longo de dois meses, uma equipe de reportagem formada por jornalistas e
pesquisadores investigou como esses porta-vozes da desinformação
instrumentalizam a ciência para angariar poder e influência.
·
Tática Miranda: estatística criativa
Evaristo
Eduardo de Miranda trabalhou por mais de 40 anos na Embrapa. Ele é um dos
fundadores da unidade hoje chamada de Embrapa Territorial (ET), criada em 1989.
Como servidor, Miranda recebia um dos salários mais altos do funcionalismo
público federal. Em 2022, quando o gestor se aposentou, o teto da categoria
estava em R$ 39,2 mil.
O
posicionamento de Miranda, por mais de uma vez ao longo da carreira, foi
questionado dentro e fora da Embrapa. Sob condição de anonimato, várias pessoas
afirmaram à DW que uma das especialidades do ex-diretor era manipular dados de
uma maneira conveniente.
Pesquisadores
brasileiros já questionaram os dados gerados pela equipe de Miranda na Embrapa
em mais de uma oportunidade. Para o pesquisador Gilberto Câmara, são resultados
“não verificáveis”.
Um
artigo publicado em 2020, o mais recente divulgado, exemplifica o modo de atuar
de Miranda. O texto informa que “mais de 97% dos produtores rurais, na maioria
pequenos, não participam do processo de desmatamento na Amazônia”. Informação
que, de acordo com cientistas ouvidos pela DW, está baseada em cálculos que não
estão explicados na metodologia.
Os
resultados divulgados são fruto de uma análise de três bancos de dados. Entre
eles, o Cadastro Ambiental Rural (CAR), que passou a ser de preenchimento
obrigatório para donos de imóveis rurais desde o Código Florestal de 2012. As
análises sobre o CAR já renderam a publicação de um livro e uma premiação a
Miranda, o Prêmio CNA Agro Brasil, dada pela Confederação da Agricultura e
Pecuária do Brasil (CNA) em 2018.
Apesar
de o cadastro ser uma ferramenta positiva para embasar as políticas ambientais,
ela ainda precisa de aperfeiçoamento, segundo várias análises técnicas. O
principal: enquanto Miranda e equipe praticamente isentam os produtores da
destruição da Amazônia em seus estudos, análises científicas publicadas em
periódicos respeitados mostram o contrário.
A
relação entre Miranda e o setor do agronegócio gerou desconfiança do sindicato
de trabalhadores da Embrapa em 2022. Em uma carta aberta, a entidade afirmou
que “há muitas evidências e provas de que a atuação de Evaristo de Miranda tem
sido historicamente tendenciosa, manipulando dados e informações para dar
sustentação à elaboração de propostas e projetos de leis com objetivo de
afrouxar e dilapidar a legislação ambiental em prol do agronegócio”.
A
reportagem da DW, por meio da Lei de Acesso à Informação, identificou que
a Associação Brasileira dos Produtores de Soja e Milho de Rondônia
(Aprosoja Rondônia) é a única financiadora de um projeto de análise do CAR no
estado, com um aporte de R$ 36 mil. No bioma Cerrado, a CNA aparece como
financiadora de um projeto de R$ 276,5 mil.
Por
meio de nota, a Embrapa informou que as análises do CAR são uma ação de rotina
e que os dados referentes ao bioma Amazônia “não foram objeto de projeto de
pesquisa específico, tampouco receberam financiamento direcionado de qualquer
instituição pública ou privada”.
Antes
mesmo da nota do sindicato, em 2019, Eduardo Assad, pesquisador
recém-aposentado e ex-chefe da Embrapa Informática e da Embrapa Cerrado, já
havia pedido uma investigação interna na Embrapa, mas que não prosperou, segundo
ele. Assad contou à reportagem que fez um comentário durante um congresso
científico sobre os trabalhos assinados por Miranda e que, por isso, foi
punido. Assad ficou proibido de voltar a falar do assunto em suas palestras,
sob ameaça de sofrer uma sindicância. Ao longo de seis meses, o pesquisador
chegou a ser monitorado por uma espécie de interventor para ver se ele estava
cumprindo a regra da “mordaça”, como ele mesmo classificou.
“Vivenciei
tudo, os dados estão errados, e denunciei na Embrapa. As informações geradas
pela Embrapa Territorial sob Miranda eram manipuladas, não passavam por um
crivo científico. Era tudo político”, complementa. Segundo Assad, outros
pesquisadores receberam o recado para também ficarem calados.
Os
meios usados no dia a dia de parte da equipe liderada por Miranda chegaram a
ser criticados também em artigos científicos. Os 12 autores de um texto publicado pela Biological
Conservation afirmam
que o grupo do ex-diretor da Embrapa Territorial “se opôs sistematicamente ao
consenso científico a fim de contribuir para movimentos políticos que visavam
atrasar a ação ou desmantelar as principais políticas de conservação”.
Após
essas denúncias mais recentes, a Embrapa manifestou apoio a Miranda. Em outra
carta, entidades agropecuárias e da indústria também saíram em defesa dele,
como a Sociedade Nacional de Agricultura (SNA), a Associação dos Produtores de
Soja (Aprosoja), o Conselho Superior do Agronegócio (Cosag) e a Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Assim, Miranda encerrou sua carreira
com 42 anos de casa sem ser investigado por seus dados e possíveis vieses de
pesquisa à frente da ET.
·
Tática Felício: showman carismático
As
circunstâncias da admissão de Ricardo Felício na USP, em 2007, são ainda hoje
questionadas. Muitos professores do departamento não conseguem entender como
ele, com baixa produção científica, conseguira deixar outros candidatos mais
qualificados para trás, conforme fontes ouvidas pela reportagem. Seu
desligamento, prestes a ser concluído, é aguardado por alunos e servidores.
“Ele
sempre disseminou falsas concepções científicas na sala de aula. Depois, virou
um agente parasitário na universidade. Denunciamos a situação numa carta
aberta, mas temos dificuldade de acompanhar o processo administrativo que pede
a demissão dele”, afirmam alunos do Centro de Estudos Geográficos Filipe Varea
Leme, da FFLCH-USP, ouvidos pela DW.
É
difícil encontrar alunos que tiveram aula com ele, e os próprios servidores
dizem que não conseguem contato com o professor há anos, como atestou a
reportagem ao visitar o laboratório onde costumava trabalhar. Apesar dos anos
de ausência, documentados em carta-manifesto do Centro de Estudos Geográficos
Filipe Varea Leme, o nome de Felício segue no portal da transparência da USP
como recebendo salário, ainda que reduzido.
No
mundo virtual, por outro lado, o meteorologista mantém atividade intensa. Os
canais mais usados são redes sociais como YouTube, Instagram, além de
plataformas menos conhecidas e, por consequência, menos moderadas, como Rumble
e Odysee. Nesses ambientes, Felício vende cursos online por R$149 e faz pedidos
de doações financeiras — chegou a arrecadar R$ 12.901. Numa outra plataforma,
recebe R$ 566 por mês de 20 apoiadores.
Em
função da recusa de Felício em dar aulas durante a pandemia, mesmo que em
formato remoto, a USP abriu um processo disciplinar para demitir o professor
por “procedimento irregular de natureza grave e ineficiência no serviço”, como
relatou Paulo Martins, diretor da FFLCH, em entrevista à DW. O processo já
passou por todas as instâncias da universidade e, para que a demissão seja consumada,
basta uma notificação. “A dificuldade agora é encontrá-lo para notificá-lo. Se
pudesse notificar pelo chat do Youtube seria mais fácil”, diz Martins.
Segundo
o diretor da FFLCH, é possível que existam outras consequências para Felício
após a demissão. “Chegou-se à conclusão de que a gente está diante de um caso
claro de abandono de emprego. Ele simplesmente parou de trabalhar e continua
recebendo, o que vai, provavelmente, ainda provocar, na esfera cível, o
ressarcimento à universidade pelo tempo em que ele recebeu e não cumpriu com
suas obrigações”, detalha.
Em
2018, Felício concorreu ao cargo de deputado estadual pelo então Partido Social
Liberal (PSL), que elegeu o ex-presidente Bolsonaro. No ano seguinte, percorreu
nove cidades em Mato Grosso a convite da Aprosoja, que tem entre suas fontes de
financiamento o Fundo Estadual de Transporte e Habitação (Fethab), criado por
lei estadual em 2000.
O
professor da USP falou em pelo menos 11 eventos dentro de universidades
públicas e privadas e propagou desinformações sobre mudanças climáticas a mais
de 2 mil participantes, segundo contagem divulgada à época pela Aprosoja.
Felício
integra o catálogo da agência Mix Palestras, que o apresenta declaradamente
como “negacionista do aquecimento global” na descrição disponível em seu
site. A reportagem solicitou, de forma anônima, um pedido de cotação para uma
palestra de Felício, e a resposta foi que ele não tinha disponibilidade para
esse semestre. No entanto, a empresa ofereceu outros nomes que considera “equivalentes”
a valores que variam entre R$ 10 mil e R$ 20 mil.
·
Tática Molion: repetição de inverdades
Em
suas duas primeiras décadas de carreira, Luiz Molion chegou a ser coautor de
estudos em revistas de alto impacto internacional e teve posições importantes no
Inpe, onde foi pesquisador entre 1970 e 1995.
As
coisas mudaram de rumo quando começou a defender teses questionáveis — e
amplamente desmentidas — sobre mudança do clima nos anos 1990. Da negação de
que os clorofluorcarbonetos (CFCs) tenham impacto na destruição da camada de
ozônio à ideia de que o planeta começaria a entrar em uma nova era glacial,
Molion propaga teses que apenas fazem sentido para quem se beneficia delas.
“Molion
é polêmico, mas gosta da discussão”, diz Maria Luciene Dias Melo, professora da
Ufal, instituição na qual Molion foi professor depois que saiu do Inpe e da
qual se aposentou em maio de 2014. Coordenadora do Sistema de Radar
Meteorológico (Sirmal) da universidade, Melo trabalhou com Molion e conta que o
ex-colega de trabalho “não confia na destreza dos modelos climáticos e faz
previsão analisando a similaridade dos eventos ocorridos em períodos
anteriores”.
Em
suas palestras, Molion costuma dizer que o CO2, mesmo emitido em altos
volumes como atualmente, é, na verdade, o “gás da vida”. Para ele, “não
existem evidências científicas de que o CO2 emitido pelo homem interfira no
clima global” — embora tais provas existam e sejam consenso científico. O
pesquisador também acredita que quanto mais dióxido de carbono estiver presente
na atmosfera, maior será a produtividade agrícola. No Brasil, a maior fonte de
emissões de dióxido de carbono é o desmatamento para a expansão de áreas do
agronegócio.
Para
Carlos Nobre, que testemunhou a transição de Molion da pesquisa científica para
as fileiras do negacionismo, a afirmação se trata de uma “cínica mentira junto
aos sojicultores para criar uma manada de negacionistas”. É na esfera da
agricultura brasileira que Molion tem sua audiência mais atenta — ele dedica
boa parte de seu tempo palestrando em eventos financiados pelo agronegócio.
Em
setembro de 2020, o físico foi o principal palestrante durante o evento de
lançamento do AproClima — projeto da Aprosoja que gera relatórios climáticos e
alertas fitossanitários sobre o estado de Mato Grosso. Depois de 45 minutos de
fala, surgiu no telão do auditório a imagem com projeções de modelos climáticos
avaliados pelo quinto relatório do IPCC, de 2013. Enquanto isso, dos
alto-falantes, veio a conclusão: “existe um órgão oficial do terrorismo
climático: sigla, em inglês, IPCC — Painel Intergovernamental das Mudanças
Climáticas. Notem que é intergovernamental, não é científico. É entre governos.
Esse é o maior órgão terrorista do planeta”, afirmou o palestrante.
Fundado
em 1988, o IPCC reúne cientistas de seus 195 países-membros. O objetivo do
grupo é compilar, em relatórios, dados de estudos científicos já publicados.
Uma das funções desse material é fornecer informações claras que ajudem os
governos a criar políticas públicas para enfrentamento das mudanças climáticas.
Molion
é agenciado por três empresas de palestras e educação corporativa: Dialethos
Eventos, Magnum Palestras e Mix Palestras. De janeiro de 2022 até a publicação
desta reportagem, ele ministrou ao menos 26 palestras. Antes de peregrinar pelo
Brasil, em 2019, o pesquisador havia recebido o colar de Honra ao Mérito
Legislativo de São Paulo, solicitado pelo então deputado estadual Frederico
D’Ávila, eleito em 2018 pelo PSL. D’Ávila, que presidiu a sessão de outorga, é
produtor rural e ocupou cargos-chave na Sociedade Rural Brasileira e na
Aprosoja.
O
fato de Molion, um professor aposentado, ser “um dos grandes críticos do
terrorismo ambiental propalado pela Organização das Nações Unidas (…) chamado
de aquecimento global, efeito estufa e todos esses bordões que foram criados
pela Organização das Nações Unidas e seus órgãos adjuntos a fim de encher o
bolso de poucos” é que o qualificou para a homenagem, segundo D’Ávila, o
responsável pela indicação do prêmio.
·
Sem táticas para o confronto de ideias
Ricardo
Felício, Luiz Molion e Eduardo de Miranda não responderam aos pedidos de
entrevista feitos pela reportagem.
“Informações
técnicas robustas e baseadas em evidências científicas não podem ser
consideradas equivalentes a desinformações sem fundamentação. Seja no âmbito do
debate político, nas várias esferas do poder público ou do setor privado. Negar
um diagnóstico claro não contribui com a geração de soluções e agrava
injustiças já flagrantes no Brasil”, pondera Mercedes Bustamante.
Fonte:
Deutsche Welle
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