A verdadeira face
do neoliberalismo é a do Estado que se tornou fiador dos bancos”
Em
18-10-2019, um protesto popular sem precedentes rompe as
costuras de um país, o Chile. O
descontentamento generalizado corrige o plano do próprio sistema neoliberal e não é uma
reprovação desta ou daquela lei. Em 04-09-2022, a proposta constitucional
endossada pela Assembleia Constituinte, impulsionada pela
revolta, é rejeitada em referendo. Durante esses três anos, o Chile deu esperanças ao mundo. O
filósofo Pierre Dardot (Paris, 1952)
viveu esses momentos de perto. Agora, ele reflete em seu livro La memoria del futuro: Chile 2019-2022 (Gedisa)
sobre o que aconteceu, por que o entusiasmo levou ao fracasso. Pode-se falar de
fracasso? Ele mesmo conta.
>>>> Eis a entrevista.
·
O título do seu ensaio lembra o de uma escritora
mexicana, Elena Garro, casada com Octavio Paz. Com esse texto, ela inicia uma
revolução estilística e narrativa que ficou conhecida como realismo mágico.
Você propõe uma revolução contra o neoliberalismo. Garro tinha a linguagem como
arma. Que armas são necessárias para ser um revolucionário antineoliberal?
Não
há referência ao realismo mágico nesta revolução, há uma referência muito precisa, “a memória do futuro”,
um emblema das feministas chilenas, uma expressão de quem foi
porta-voz da Comissão Feminista 8 de Março, uma expressão que é uma tomada de posição e de atitude
política que consiste em não cair na dualidade esquerda-direita,
essa falsa dicotomia entre a esquerda progressista e a direita conservadora. É uma afirmação
que contém a vontade de se distanciar de uma certa tradição política que te
prende a ser um progressista acrítico, porque se você critica algo,
como um defeito, você defende a direita.
Este
fenômeno não é apenas latino-americano, mas o vemos em muitos países, inclusive
na Espanha. Se um governo progressista não apoia o feminismo, não pode ser criticado? Tomo como exemplo o Peru, onde
há muito tempo acontecem coisas importantes, como a Assembleia Constituinte. Pedro Castillo era um progressista, mas também
defendia ideias reacionárias,
como as relacionadas à homossexualidade,
convergentes com a direita.
A
ideia de “memória do futuro” é interessante porque não se casa em bloco com a
política de um governo, seja qual for o lado ideológico. Interessa-me este giro que consiste em rejeitar o
culto do progresso pelo progresso, de que tanto gostam os governos progressistas. Você tem que seguir uma lógica
contracorrente, analisar as coisas uma a uma e também como um todo.
·
Poderíamos então dizer que as armas para lutar
contra o neoliberalismo seriam uma certa atitude de desconfiança e rejeição ao
progresso...
Sim.
Não desconfiança em relação ao progresso,
mas desconfiança em relação ao culto do progresso. O importante é nos definirmos hoje tendo como
referência as tarefas a serem realizadas no futuro próximo. Temos que discutir
e lutar por essas tarefas que nos propomos; não são algo que remeta ao sentido
da história.
·
O Chile foi o berço do neoliberalismo, liderado por
Friedman, e o campo de testes para o que Naomi Klein mais tarde chamaria de
“doutrina do choque”. Após as revoltas de 2019, Gabriel Boric foi eleito
presidente de esquerda, que promoveu os trabalhos da Convenção Constituinte.
Sua constituição foi uma das mais avançadas e democráticas até hoje. Deve-se
seu fracasso à capacidade de pressão da direita ou à falta de articulação da
esquerda?
Deve-se
a ambos, com destaque para a desarticulação da esquerda; é verdade que a
pressão da mídia foi muito forte e violenta desde o início, desde 4 de julho de
2021, logo após o início da criação da Comissão de Especialistas para
a redação da nova Constituição.
Isso é indiscutível. São os mesmos métodos que Bolsonaro e Trump usaram.
Mas
nem tudo se explica pelos defeitos de comunicação da
esquerda ou pelo assédio da mídia. A direita brandiu um discurso
hábil, minucioso, detalhado, mas isso não é motivo para não assumir as próprias
responsabilidades, que são diversas. Há uma responsabilidade do
governo, que no fundo teve um compromisso muito fraco com a Constituição. A partir de 15 de julho,
deu uma guinada, foi cedendo para tentar agradar diversos setores e deu um
passo atrás para não se envolver demais na campanha.
Os movimentos sociais também não estão isentos
de responsabilidade; uma coisa é a politização dos movimentos sociais e
outra é a politização da sociedade. Frequentemente, os movimentos sociais fortemente engajados
tendem a se esquecer das classes populares. E os primeiros assumiram
uma derrota eleitoral mas não política, como se tivesse sido um problema de
comunicação, mas é preciso reconhecer que não foi assim.
Deve-se
levar em conta que a ditadura de Pinochet deixou
um resíduo muito profundo nas instituições e nas pessoas. E que soube
aproveitar muito bem a propaganda. Por exemplo, a Lei da Previdência de 1980, promulgada por José Piñera, pai de Sebastián Piñera, foi feita para
coincidir com o dia 1º de Maio,
como se tivesse sido um triunfo para os trabalhadores. Uma Lei da Previdência privada!
Mas,
de fato, muitos acreditaram que foi uma vitória dos trabalhadores. Eu poderia
compartilhar muitos simbolismos deste estilo, como a Lei do Crédito, pela qual o Estado dá apoio aos estudantes,
adotada em 2005 por Lagos. Essa é a verdadeira face do neoliberalismo, em que o Estado se torna fiador dos
bancos.
O governo espanhol anunciou em maio que vai garantir
aos jovens até 20% da sua hipoteca; trata-se de algo semelhante...
Exatamente.
·
Você se concentra em três eixos da revolta, os
movimentos estudantil, feminista e mapuche. Quais são as grandes fragilidades
estruturais das organizações do movimento dos trabalhadores?
É
uma questão de fundo. Entre 1970 e 1973 houve um cinturão industrial muito
forte, mas não um movimento operário estruturado de forma autônoma; tínhamos
sindicatos ligados diretamente ao governo e sindicatos autônomos fracos e
ligados apenas a alguns setores; houve greves importantes, mas sem articulação
nem solidariedade. O fato de a maioria das empresas ser pequena favorece isso,
de não haver grandes concentrações de trabalhadores, de modo que os sindicatos são muito fáceis de silenciar,
de dispersar.
O movimento trabalhista não pode agir como um autor autônomo. Isso
contradiz a centralidade da classe
trabalhadora marxista,
mas é inútil aplicar categorias preconcebidas a um mundo em movimento. Volto ao
lema, “memória do futuro”; devemos evitar cair na nostalgia, porque na época
pré-ditatorial o movimento operário também não existia.
·
Nas sociedades democráticas, perdemos “a alegria de
estar juntos”, aquela alegria que você via nas manifestações chilenas?
Até
certo ponto, sim. O que me marcou em novembro de 2019 foi ver aquela energia
coletiva nas marchas, com orquestras, fanfarras, com música... Não estou
acostumado com isso, sou um velho militante de esquerda, nunca vi nada
assim. Bandeiras mapuche,
bandeiras feministas... toda essa força nos protestos me marca até hoje. Sempre
me lembrarei daquela atmosfera extraordinária. Apesar dos momentos trágicos,
como quando o estudante Gustavo Gatica perdeu o olho por causa de
um tiro. Eu também não me esqueço dele. As investidas dos carabineros são muito
violentas.
Não
é a mesma coisa. Os movimentos na França protestam fortemente contra a reforma da previdência, não contra o sistema, não contra o neoliberalismo. Os protestos no Chile, o levante da terra, são
protestos radicais, de vanguarda, lutam contra o neoliberalismo, contra o próprio
sistema, não contra uma lei, representam uma mudança de todo o sistema. Eles têm uma consciência
política muito lúcida e radical. Nos protestos políticos no Chile, organizam-se para reproduzir a
vida, ou seja, preparam simultaneamente o protesto e o almoço, para que quem
vai lutar coma, e há postos de cuidado, onde as crianças são atendidas. Todos
se envolvem.
·
Nessas revoltas, símbolos como Che, Gladys Marín,
canções de Víctor Jara, o rosto de Allende foram desenterrados (se é que algum
dia foram completamente esquecidos)... De que modo o passado é reformulado no
presente para que não seja puro exercício nostálgico?
Não
é nada nostálgico, em absoluto. O passado é evocado, mas não para torná-lo
testemunha do presente; o passado é evocado de uma forma muito diferente, como
forma de alimentar a ação política, não para lamentar o que não
poderia ser. Não exerce nenhuma tutela sobre o passado. “A memória do futuro” é uma expressão
extraordinária. A luta exige dissidência, reconhecimento das fraquezas e dos
erros, aprender com eles, detectar nossas forças.
·
É desejável, inevitável, decepcionante o fato de que
os partidos políticos não tenham desempenhado um papel de destaque na revolta
de outubro?
Tudo
ao mesmo tempo... é decepcionante que os partidos se fechem na lógica
parlamentar, que só pensem na rentabilidade,
e é trágico que se tenha perdido a articulação com os movimentos sociais. Em condições normais,
esperava-se uma coalizão de forças de esquerda em torno da defesa da Constituição, mas também isso não
aconteceu.
·
Gabriel Boric, antes de ser presidente do Chile, foi
um líder do movimento estudantil. Convertidos em políticos profissionais, os
revolucionários se deixam domesticar?
Ele
estava domesticado desde antes... ele nunca foi um revolucionário. Vou dar um
exemplo. Ele participou de uma conferência sobre a cultura mapuche do ponto de
vista jurídico. O que ele fez quando chegou ao poder? Aprofundar a militarização da Araucanía mais do que Piñera fez. Na esquerda existem
duas correntes: uma favorável ao partido articulado com os movimentos sociais, e outra que só persegue a
conquista do Estado,
bastante populista.
Os
primeiros três meses de Boric foram terríveis. A direita o levou para o seu
terreno. Agora temos o Conselho Constitucional, a Comissão de Peritos e a Comissão de Admissibilidade. Ou seja, trata-se
de que o que vem pela frente seja compatível com o que está aí.
Ø
Chile.
O vínculo religioso dos líderes ultraconservadores
Luis Alejandro Silva Irarrázaval, 47 anos,
solteiro, advogado, professor universitário, Doutor em Direito e numerário
do Opus Dei, que se revelou
o vereador constituinte mais votado da Região Metropolitana (18%), do Partido Republicano, nas recentes
eleições de domingo, 7 de maio.
Em
entrevista ao jornal La Tercera em
março passado, em plena campanha eleitoral, Silva afirmou que "se o direito ao aborto
estivesse consagrado na nova Constituição, eu o rejeitaria. Mas acredito que
não acontecerá. Eutanásia o
mesmo. Para mim a vida é da concepção até a morte. Gosto de outra cláusula que
diz que a família é o
núcleo fundamental da sociedade. Essa frase é muito importante para mim, porque
nos defende de uma concepção individualista da
sociedade".
Em
nova entrevista no mesmo meio, Silva afirmou
ontem: "Sou numerário do Opus Dei", e explicou
que a sua "relação com o Opus
Dei, no fundo, é formativa, ou seja, interpreta-me plenamente, questiona
a mensagem de São José María,
sobre procurar e viver a fé através do circunstâncias de cada dia, neste caso,
a minha desde a educação até recentemente na universidade e agora da política,
mas não é mais que isso e não é menos que isso”.
Depois
acrescentou: “meu modelo é Jesus Cristo e ele é o modelo de serviço para mim.
Ele vem para morrer por quem ama e eu amo muito o meu país e tanto a minha
vocação profissional como professor,
e agora como político,
referem-se ao mesmo ponto, de serviço, existe um denominador comum e que
obviamente se nutre da minha fé também”.
·
Catolicidade
Outro
político ligado ao catolicismo chileno é o líder do Partido Republicano e
ex-candidato à presidência, José Antonio Kast.
Na
eleição de 2021, quando foi para o segundo turno para disputar o atual
presidente Gabriel Boric, Kast disse: "A primeira
coisa a fazer é agradecer a Deus por como tudo se desenvolveu até agora.
O Chile é um país que
quer democracia. E depois Deus, graças a minha família... é um triunfo para
todo o país. Formaremos uma maioria que devolverá a paz, a ordem, a justiça e a
esperança ao Chile".
Kast tem 9 filhos
de seu casamento com María Pía
Adriasola, pertence a uma família muito católica e foi membro do
movimento de Schoenstatt.
Sua irmã Bárbara, uma
leiga, falecida aos 18 anos em um acidente de carro, foi declarada venerável
pela Igreja Católica. Sua causa de beatificação está em andamento.
Fonte:
Entrevista com Pierre Dardot, para
Esther Peñas, publicada por Ctxt
-tradução do Cepat, para IHU OnLine/Religion Digital
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