quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Assim o garimpo incendeia terras indígenas

A Amazônia queima. Entre 1º de julho e 10 de setembro de 2024, as Terras Indígenas (TIs) registraram 8.164 focos de calor, o maior número já observado para o período desde 2003, quando começou a série histórica de monitoramento do satélite de referência do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) — (leia mais sobre a metodologia aqui).

O recorde deste ano é 221% superior à média de 2.542 focos de calor registrada entre julho e setembro entre 2003 e 2023 e, também, representa um aumento de 314% em relação ao ano passado, quando foram contabilizados 1.970 focos.

A análise exclusiva da InfoAmazonia, com base nos dados do Inpe, revela também que neste período de 2024 os focos de queimadas em todo o bioma Amazônia chegaram a 69.111 — o maior número desde 2007. Nas Unidades de Conservação foram mais de 10 mil focos de calor detectados, na maior queimada em unidades de conservação em quase duas décadas.

A TI Kayapó foi a que mais queimou entre todas as terras indígenas — sozinha, ela representa 27,1% (2.213) de todos os focos de calor dos territórios da Amazônia no período. Junto à Kayapó, as TIs Capoto Jarina (606 focos de calor) e Sararé (342), no Mato Grosso, e Munduruku (496) e Xikrin do Cateté (326), no Pará, são as cinco mais afetadas pelas queimadas neste ano. Entre todas as 387 TIs do bioma, 171 registraram fogo entre julho e setembro.

<><> Queimadas coincidem com área de garimpo na TI Kayapó

Terra indígena no Pará foi a que mais registrou focos de calor de 1º de julho a 10 de setembro de 2024, segundo dados do Inpe.

Em agosto, a InfoAmazonia fotografou o fogo se espalhando dentro da TI Sararé durante um sobrevoo no Mato Grosso. Ali, era possível ver que as queimadas estavam partindo de áreas de garimpo. A terra indígena é habitada por cerca de 250 integrantes do povo Nambikwara. Eles estão cercados por grupos criminosos que controlam a mineração ilegal a metros das aldeias.

O fogo na TI Sararé foi “fora da curva” em 2024 — até então, desde 2003, a terra indígena nunca havia ultrapassado 40 focos de calor entre julho e setembro. Neste ano, foram mais de 300. Além do garimpo, o território enfrentou uma seca severa em julho. O mesmo ocorreu na TI Kayapó, que registrou queimadas em áreas de mineração ilegal enquanto também enfrentava a seca.

Em julho, nove em cada 10 TIs estavam em algum grau de seca. Embora a bacia amazônica esteja passando por uma seca histórica neste ano, e isso seja um fator agravante, especialistas e o próprio governo destacam que as ações humanas são o principal motor da devastação. Essas atividades impactam diretamente a vida dos povos indígenas e das populações tradicionais, resultando na perda de recursos naturais, invasões territoriais e danos à saúde, além de contribuírem significativamente para a crise climática global.

“Os incêndios que estão ocorrendo são em função da ação humana. Tem alguém colocando fogo”, declarou a ministra Marina Silva, do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), nesta terça-feira (17), destacando que qualquer queimada na Amazônia neste momento “é criminosa”. Desde agosto, as atividades com fogo estão proibidas na Amazônia.

Uma operação conjunta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e da Polícia Federal (PF) revelou, no início de setembro, a ligação entre o avanço do garimpo ilegal e as queimadas. De acordo com os órgãos do governo, os invasores provocam deliberadamente o fogo para abrir áreas de garimpo e dificultar as ações de fiscalização. A operação resultou na destruição de mais de 20 equipamentos usados na extração ilegal de ouro.

Enquanto isso, o Programa Copernicus, da União Europeia, que faz observação da Terra por satélite e instrumentos in-situ, afirmou que a região sudoeste da Amazônia — que abrange partes do Pará, Rondônia, Amazonas, Mato Grosso e Acre, e concentra as queimadas — se tornou a principal emissora de gases de efeito estufa no Brasil nos últimos dias. 

“O fato de a Amazônia Ocidental ter se tornado, pela primeira vez, a maior emissora de gases de efeito estufa do mundo põe em xeque a autoridade climática do presidente Lula”, alerta o biólogo Lucas Ferrante, das Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Ele ressalta: “O presidente aponta os países desenvolvidos como os principais responsáveis pela crise climática, mas o Brasil também tem um papel fundamental nessa discussão”.

<><> Fogo ao redor das rodovias

No sábado (10), o governo anunciou a retomada das obras da BR-319, que liga Manaus a Porto Velho. O argumento: Lula (PT) afirma que essas capitais não devem ficar “isoladas” em momento de seca, já que “enquanto o rio estava navegável, cheio, a rodovia não tinha a importância que tem”.

A BR-319 tem 918 quilômetros de extensão, entre Porto Velho e Manaus. As obras começaram em 1968, mas nunca foram concluídas. Em 1988, a rodovia foi abandonada e parou de receber manutenção pelo governo federal. Nos anos seguintes, os trechos próximo às duas capitais, Manaus e Porto Velho, foram recuperados e passaram a ser utilizados, mas o Trecho do Meio da rodovia,  que corta grande parte de floresta ainda preservada, nunca foi recuperado. Nesta parte da rodovia, que é de terra, o tráfego só ocorre na estação seca e em condições bastante precárias.

A reabertura total da BR-319 já foi proposta nos governos de Fernando Henrique (1994-2001), Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016), mas a obra nunca avançou devido às questões ambientais. No apagar das luzes da gestão de Jair Bolsonaro (2019-2022) foi emitida licença para reconstrução do trecho do meio, mas a licença foi suspensa por decisão judicial. 

O biólogo Lucas Ferrante afirma, no entanto, que as rodovias troncais, como as BRs, que conectam regiões da Amazônia, se tornaram vetores para a invasão das áreas protegidas, como as Terras Indígenas e Unidades de Conservação (UCs). Além disso, permitem o escoamento de produtos de crimes ambientais, como madeira e minérios.

<><> Queimadas ao redor da BR-319, que liga Manaus a Porto Velho

A InfoAmazonia identificou que, desde julho, quase um terço das queimadas no bioma Amazônia, 19.136 (27,6% do total), estão concentrados em uma faixa de até 40 quilômetros das seguintes rodovias: a BR-163, entre Cuiabá e Santarém, com 8.979 focos de calor; a BR-230 (Transamazônica), com 7.929 focos; e a BR-319, com 2.228 focos. Nesta última, o fogo estava concentrado próximo das capitais Porto Velho e Manaus, onde há tráfego.

Para Ferrante, o anúncio de Lula sobre a BR-319 pode ter consequências graves. “Os estudos mostram que a reconstrução desta rodovia será catastrófica para a Amazônia e já está promovendo grilagem de terras e violações dos direitos dos povos tradicionais”. Além disso, ele explica que, por meio dessas estradas, “os invasores estão colocando fogo nas terras indígenas para abrir pastagens”.

Lula prometeu, sem apresentar mais detalhes de como isso será feito, que não será permitido o desmatamento e a grilagem ao redor da BR-319: “nós não vamos permitir o desmatamento e a grilagem de terra próximo à rodovia, como é habitual acontecer neste país. A gente faz uma rodovia e, daqui a pouco, estão destruindo o lado direito e o lado esquerdo; tem gente queimando, grilando, matando e criando gado onde não é necessário criar gado”.

O problema ainda se repete em outras rodovias. Katia Ono, articuladora comunitária e assessora técnica em manejo de recursos naturais e fogo do Instituto Socioambiental (ISA) no Xingu, diz que “o fogo está ocorrendo a partir de áreas que já foram queimadas”.

“Na Capoto Jarina, que está pegando fogo há mais de um mês, os focos começaram perto da rodovia [MT-322], onde já havia uma cicatriz de queimadas, e se espalharam, invadindo também o Parque do Xingu”, afirma a pesquisadora. Ela explica que essas regiões às margens das estradas são áreas de borda da floresta

A degradação por efeito de borda refere-se às alterações na floresta causadas pelas áreas limítrofes desmatadas. Após a derrubada de uma árvore, os primeiros 100 ou 200 metros de floresta (a chamada borda) passam a receber incidência direta de luz, com temperaturas mais altas e maior exposição ao vento. e, por isso, “a vegetação lindeira

Que está na linha divisória, ou divisa lindeira. Neste caso em particular, a vegetação lindeira é a que está na margem da via pública, entre a rodovia e a terra indígena. é mais suscetível e, com a seca que enfrentamos, o fogo se espalha mais facilmente”.

Na TI Capoto Jarina, no nordeste do Mato Grosso, os registros do Inpe mostram queimadas às margens da MT-322 em 17 de agosto, na parte sul do território. No dia seguinte, o satélite registrou focos no interior da terra indígena, nas áreas que margeiam o leito do rio Xingu.

Em 25 de agosto, um brigadista do Ibama morreu na TI Capoto Jarina tentando combater as queimadas. Uellinton Lopes dos Santos, de 39 anos, foi encontrado morto a menos de um quilômetro da linha de defesa contra o fogo instaurada pelo Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo). Até 9 de setembro, o território já registrava queimadas diariamente, e o fogo se alastrou também pelo Parque do Xingu.

Segundo Ono, os brigadistas atuam no território indígena, mas em menor número do que em anos anteriores. “A brigada da TI Capoto é menor, e o pessoal do Xingu está indo combater lá também. Algumas comunidades estão fazendo linhas de defesa, mas é perigoso. Precisamos de mais brigadistas treinados.”

Na última terça-feira (10), o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a convocação imediata, em até 5 dias, de mais bombeiros para atuar na Força Nacional no combate às queimadas e listou os 20 municípios mais impactados pelo fogo, todos na Amazônia. Nesta terça (17), o ministro da Casa Civil, Rui Costa, anunciou a liberação de R$ 514 milhões para combate ao fogo e à seca. Os recursos serão designados em medida provisória assinada por Lula, que abre crédito extraordinário a diversos ministérios e autarquias.

Além disso, em resposta aos questionamentos da InfoAmazonia, a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República informou, em nota, que convocou mais 150 bombeiros militares da Força Nacional. Já o Ibama afirmou que a Amazônia “enfrenta a pior estiagem em 45 anos” e que já atua nas terras indígenas Kayapó, Munduruku e Sararé, “com foco tanto no combate às queimadas quanto na repressão ao garimpo ilegal”.

“Atualmente, 1.468 brigadistas estão mobilizados na Amazônia Legal. Além disso, o governo federal reforçou as ações de combate com a criação de três bases interfederativas na Amazônia, promovendo maior integração entre União e estados para combater incêndios e prevenir crimes ambientais. Operações de fiscalização também foram intensificadas nas rodovias BR-319, BR-230 e BR-163, regiões críticas para a propagação de queimadas e o desmatamento ilegal”, informou o Ibama, por meio de nota.

<><> Unidades de conservação também queimam

Dentre as 358 Unidades de Conservação do bioma amazônico brasileiro, 135 registraram focos de queimadas desde julho, somando 10.522 focos de calor. As áreas de proteção ambiental (APAs) Triunfo do Xingu e do Tapajós, além das florestas nacionais (Flonas) do Jamaxim e de Altamira e do Parque Estadual de Guajará-Mirim — todas com altos índices de desmatamento ilegal para agropecuária — bateram recordes de fogo.

A APA Triunfo do Xingu contabilizou, sozinha, 33% dos focos de queimadas (3.493) em UCs desde julho. O município de São Félix do Xingu, onde está localizada a maior parte da APA, possui o maior rebanho bovino do Brasil, com quase 2,3 milhões de cabeças de gado, o que representa quase 20 vezes o número de habitantes do município.

Com 1,6 milhões de hectares, o equivalente a 13 vezes a área da cidade do Rio, a APA Triunfo do Xingu já perdeu 45% da sua floresta original para pastagem, segundo dados da rede MapBiomas. Já na Flona do Jamanxim, onde além da pressão agropecuária também há interesses de grandes mineradoras, o fogo acompanha o movimento de invasão da área protegida a partir do eixo da BR-163. A Flona é a segunda UC com o maior número de queimadas na Amazônia desde julho, com 1.650 focos (15,7% do total).

<><> Fogo ao redor da BR-163 afeta Flona do Jamanxim

Limite de até 40 km ao redor da rodovia concentra 47% das queimadas da Amazônia entre 1º de julho e 10 de setembro.

Já em Rondônia, o Parque Estadual de Guajará-Mirim também registrou recorde histórico de queimadas, com 585 focos (5,5% do total entre as UCs). A área apresentou focos ativos de 12 de julho a 10 de setembro.

No início de setembro, uma investigação da InfoAmazonia revelou que o Banco do Brasil financiou uma a produção de gado por meio do crédito rural em área dentro do Parque de Guajará-Mirim. A reportagem revelou que 1.389 áreas com registro de fogo em julho e agosto deste ano receberam mais de R$ 2,6 bilhões em recursos.

COMO INVESTIGAMOS O FOGO EM ÁREAS PROTEGIDAS?

Nesta reportagem, coletamos e analisamos dados do BD Queimadas, plataforma do Programa Queimadas, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que monitora a detecção de focos de calor por vários satélites desde 1998.

Utilizamos os dados do satélite de referência atual, o Aqua, monitorado desde agosto de 2002. Também compõe a análise as imagens de satélites do Planet Labs, e os dados espaciais das áreas das Unidades de Conservação, disponibilizadas pelo  Ministério do Meio Ambiente (MMA), e das Terras Indígenas (TIs) da Fundação Nacional dos Povos Indígenas, assim como as rodovias do Ministério dos Transportes.

O recorte territorial analisado é referente ao bioma amazônico brasileiro,  no período  de 1º de julho a 10 de setembro de 2024, comparados ao mesmo período de monitoramento desde 2003 (quando temos os dados do período completo no satélite de referência). A metodologia inclui o cruzamento dos dados mencionados e análise visual das áreas de garimpo com imagens de satélite do Planet Labs. Utilizamos linguagem de programação Python e o software de informação geográfica QGis para análise dos dados.

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Esta reportagem foi produzida pela Unidade de Geojornalismo InfoAmazonia, com o apoio do Instituto Serrapilheira.

 

Fonte: Infoamazônia 

 

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