quinta-feira, 26 de setembro de 2024

AGRONEGÓCIO: À procura do Jeca Tatu

Em 1914, Monteiro Lobato reportou a um jornal a sua indignação com o uso do fogo e o desmatamento da Serra da Mantiqueira, em São Paulo. Em um conto, lamentou, por esse motivo, a situação de “tortura e vergonha” pela derrubada de jequitibás e perobeiras milenares, além das “velhas camadas de húmus destruídas; os sais preciosos que, breve, as enxurradas deitarão fora, rio abaixo, via oceano; o rejuvenescimento florestal do solo paralisado e retrogradado; a destruição das aves silvestres e o possível advento de pragas insetiformes” e, premonitoriamente, “a alteração para pior do clima com a agravação crescente das secas”.

Perguntou Lobato: “Qual a causa da renitente calamidade? Quem foi o incendiário?” “Donde partiu o fogo?

A sua resposta caracterizou o “Nero”: uma “velha praga”, “um parasita, um piolho da terra”, um ser avesso à mudança de vida, descrente da “Ciência”, de “dolorosa memória para a natureza circunvizinha”. Uma espécie de homem “baldio, que vive na penumbra das zonas fronteiriças, em terra “litigiosa”. Uma pessoa que, enquanto a “mata arde, regala-se: – Eta fogo bonito!”

Diante dos fatos questionou Lobato: “E agora? Que fazer? Processá-lo?”. Ao que respondeu: “Não há recurso legal contra ele”.

Décadas depois, essas perguntas continuam sendo feitas e as respostas poderiam ser as mesmas. Monteiro Lobato falava do “caboclo” e do que viria a ser o seu sinônimo, o Jeca Tatu. Atualmente se poderia falar dos grandes empresários, nacionais ou estrangeiros, que desmatam para a produção agropecuária. Isso se forem guardadas as devidas proporções, pois a área dos pequenos roçados de milho, mandioca e feijão no Vale do Paraíba no início do século XX certamente foram ínfimas se comparadas à das enormes plantações de soja e de pastagens na Amazônia e no Cerrado no século XXI.

A comparação entre o “sitiante” Jeca e o grande proprietário de terra tem fundamento na própria obra de Monteiro Lobato. Em 1918, em passagem pouco lembrada, o Jeca foi “ressuscitado” pelo autor após ser curado de uma verminose (“amarelão”):

“E Jeca já não plantava rocinhas como antigamente. Só queria saber de roças grandes, cada vez maiores, que fizessem inveja no bairro.

E se alguém lhe perguntava:

— Mas para que tanta roça, homem? ele respondia:

— É que agora quero ficar rico. Não me contento com trabalhar para viver. Quero cultivar todas as minhas terras, e depois formar aqui uma enorme fazenda. E hei de ser até coronel…”

O Jeca “regenerado” aderiu a “melhoramentos, progressos, coisas americanas”: adquiriu terras, um caminhão Ford e um cachorro de raça, instalou eletricidade, rádios, equipamento automático para alimentar os porcos e as galinhas e um telescópio. Contratou “feitores” e “camaradas” para o trabalho. Ficou muito rico e sua fazenda tornou-se famosa no país inteiro. O “coronel” Jeca aprendeu inglês para ir aos Estados Unidos, mas não foi. Desistiu também da política para se “afundar” em Goiás e no Mato Grosso para curar “jecas” de outros estados.

Mesmo o Jeca tendo se tornado um de seus pares, os “senhores da terra” e o governo militar procuraram se distanciar dele em vários momentos. Isso porque ele representaria o atraso (“impenetrável ao progresso”), a “indolência” e a falta de conexão com a civilização (no caso, a cidade), entre outros aspectos. O termo jeca passou a constar no dicionário, inclusive como aquilo que revela mau gosto ou falta de requinte ou então, como sinônimo de “brega” e “cafona”.

Desta forma, o Jeca reuniu desde cedo características contraditórias, que em larga medida eram também as ambiguidades do país na época. Adquiriu assim, várias representações. Entre elas a que permaneceu mais em evidência foi a do “miserável caboclo” e não a do seu contrário, o “rico e poderoso coronel”. São muitos os exemplos de situações em que essa imagem esteve presente, com diferentes significados. Para destacar alguns deles, podem ser citadas as poesias “A resposta do Jeca Tatu”, de Catulo da Paixão Cearense, e “Juca Mulato”, de Menotti del Picchia, as músicas “Tristeza do Jeca”, de Angelino de Oliveira, e “Jeca Total”, de Gilberto Gil, os desenhos de humor e as caricaturas de J. Carlos e Belmonte, os folhetos e almanaques com o Jeca Tatuzinho, os filmes de Amácio Mazzaropi e as histórias em quadrinhos com Chico Bento, de Maurício de Sousa.

Para Matias Arrudão, Monteiro Lobato teria “visto” o Jeca, mas não o “sentido”. E mais, teria o visto de longe, com os “olhos de patrão, com todos os exageros decorrentes da falsidade dessa posição, que por si só, já representa uma atitude na sociedade”.

Mesmo que o autor tenha feito um retrato parcial do Jeca, sem “contemplá-lo por dentro”, outras características dele – que não as do trabalho – são visíveis nos textos, como as “noções práticas da vida”, a afinidade com a ancestralidade indígena, as ideias próprias de Deus e dos santos, o apurado conhecimento de plantas, especialmente as medicinais, a habilidade para fazer utensílios com madeira ou taquara, o gosto pela viola e pelo cateretê. Eles mostram também a preocupação do Jeca de ser expulso (“tocado” como “cachorro importuno”) da terra pela “justiça sumária” dos fazendeiros.

Monteiro Lobato implorou formalmente desculpas ao Jeca logo após a primeira publicação sobre ele. Afirmou que o Jeca não tinha culpa pela sua situação e que “a nossa gente rural possui ótimas qualidades de resistência e adaptação. (…) [O pobre caipira] é um homem em estado latente. Possui dentro de si grande riqueza em forças. Mas força em estado de possibilidade. Disse textualmente: “O caipira não ‘é’ assim. ‘Está’ assim”.

A ideia da mudança social rural voltou a ser tratada por Monteiro Lobato em 1947, com a personagem Zé Brasil, apresentado como uma pessoa “tal qual o Jeca Tatu” mas que se engajou politicamente na luta por justiça para os trabalhadores, especialmente pelo acesso à terra. A força simbólica de Zé Brasil e do seu algoz, o coronel Tatuíra, porém, ficou restrita a uma parcela das associações e dos sindicatos de lavradores e trabalhadores agrícolas, que estavam em processo de organização e reconhecimento.

Em 1978, um “novo Jeca Tatu” foi criado para o Almanaque Fontoura, editado por um fabricante de remédios, como um símbolo de um País que havia “vencido as suas dificuldades”. Mas a personagem não sobreviveu e o Jeca voltou ao formato original até 1988, cerca de 40 anos após o falecimento de Monteiro Lobato.

O tema da mudança social também aparece no período recente entre os que continuam tentando dar adeus ao Jeca original e promover uma determinada visão de “ascensão social”. É o caso do emergente Agronejo, que se autodefine como um estilo com vários ritmos – muitos deles de origem tipicamente urbana – que procura valorizar as “riquezas do campo e do agronegócio” em contraponto ao “caipira” e ao “roceiro”, considerados termos pejorativos. Desde 2021, ele está impulsionado por um conjunto de empresas em plataformas digitais e tem como uma das suas principais características a apologia à competição exacerbada, à prosperidade individual e a hábitos de consumo de bens de luxo (casas, veículos, roupas). Essa visão confronta as ideias que tornaram o Jeca um “mito da mitologia brasileira”, associadas a valores como a solidariedade, autenticidade, bons sentimentos e simplicidade dos hábitos.

Em 1975, no disco Refazenda, Gilberto Gil utilizou como referência o Jeca Tatu para fazer reflexões sobre o presente e o passado, as mudanças e as permanências, especialmente em relação às ideias de progresso. Essa é uma possibilidade atual.

Mesmo que a categoria (ou campo) do agronegócio não seja considerada homogênea e que existam dentro dela posicionamentos com base científica e não negacionistas em relação ao ambiente e à crise climática, é nítido que o uso intensivo do fogo e a expansão do desmatamento no País estão fortemente relacionados a empreendimentos agropecuários em grande escala. Existem vários estudos que revelam que mudanças no uso da terra e da vegetação nativa são as principais fontes de emissão de gases de efeito estufa no país e pela redução da biodiversidade, com sérias implicações sobre os recursos hídricos e a vida de indígenas, quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais.

Isso estabelece uma franca contradição daqueles que negam a sua identificação com o Jeca mas praticam aquilo que motivou a sua existência literária. Mostra também que, ao contrário da caricatura injusta da figura original do Jeca, o perfil do agronegócio tem feições estruturadas e conscientemente predatórias. Nesse caso, parafraseando Lobato, pode-se dizer que o agronegócio “é assim” e não “está assim”. Ou então, a sua ideia inicial a respeito do Jeca (“Como és bonito no romance e feio na realidade!”), pode-se dizer que o agronegócio é bonito nos jornais, na TV, na internet e (muito) feio na realidade!

Embora Monteiro Lobato tenha falhado ao nominar a “velha praga”, ele oportunamente deu visibilidade a outras “pragas”, todas anteriores ao Jeca, e que, portanto, agora estão mais velhas. São elas a “terra litigiosa”, a falta de “recurso legal” contra os infratores ambientais e a manipulação eleitoral (o Jeca “vota, não sabe em quem”), todas estreitamente relacionadas.

O pequeno conhecimento sobre a posse e da propriedade da terra em grande parte do país e a precariedade dos meios para controle de práticas irregulares sobre elas torna mais difícil a aplicação das muitas normas que procuram responsabilizar os criminosos ambientais. A propriedade ilegal também é motivo permanente de conflito e violência no campo.

Gilberto Gil, trouxe, por meio do Jeca Total, a ideia de que Jeca Tatu poderia ser representante do povo e seu defensor no Senado. Em seguida, porém, perguntou se isso não seria “mera ilusão”. Anos mais tarde, essa ideia foi realizada, pois em várias legislaturas parlamentares alcançaram esse objetivo. Mas sempre foram minoria em relação aos seus opositores, hoje reunidos pela maior frente suprapartidária do Congresso.

É relativamente frequente ler que o Jeca é uma figura cada vez mais rara. Não é possível contabilizar os “caboclos” e os “caipiras” de hoje. Ainda que parte expressiva da população rural ainda não tenha acesso aos seus direitos e viva em más condições, o Jeca, com todas as suas contradições, permanece como um símbolo de resistência e transformação (o “doente curado”). Continua presente no momento histórico, não como herói, mas como um “ente querido”, que se afirma como pessoa humana, que sonha, desanima, espera e desconfia, e que, se preciso, tem a coragem para dar um murro na cara de uma onça.

 

Fonte: Por Vicente P. M. de Azevedo Marques, no Le Monde

 

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