quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Raúl Zibechi: A privatização do Estado

O “monopólio da violência legítima” é para Max Weber a síntese do Estado moderno, uma definição aceita e raramente questionada. Penso que desde que o Estado foi privatizado pelo grande capital não é mais assim. Um bom exemplo é a proliferação de policiamento privado em todo o mundo, que não é seriamente regulamentado e expande suas áreas de intervenção.

Existe um mercado global de 248 bilhões de dólares para serviços de segurança privada que “está transformando a aplicação da lei em quase todas as partes” (Asia Times, 11/09/24). Segundo o Asia Times, na maioria dos países, a polícia privada supera a polícia estatal. Nos Estados Unidos, a proporção é de três para dois.

Na África do Sul, onde existem quase 3 milhões de agentes de segurança privada registrados, a proporção é de quatro para um. No Brasil, é de cinco para um, e é muito provável que na maioria dos países os dados estejam incompletos.

Um relatório da Prensa Comunitaria, de 2019, afirma que “as agências de segurança privadas são o ramo comercial que mais cresceu nas últimas décadas e o negócio segue em expansão”. No México, atuam cerca de 6.000 empresas de segurança, com 500.000 empregados, aos quais deve se somar o setor administrativo e de apoio. “Geram o equivalente a 1,4% do produto interno bruto (PIB) nacional”, além de existir 3.500 definidas como “irregulares”.

Se antes protegiam edifícios e pessoas influentes, agora, patrulham bairros e intervêm em crimes como o roubo de veículos. O problema central é que as empresas de segurança pública operam sob contrato e “não possuem o mesmo nível de regulamentação, supervisão e prestação de contas”, observa o Asia Times.

“A América Latina tem mais de 16.000 empresas militares privadas que empregam mais de 2 milhões de pessoas, muitas delas superam em número as forças policiais em mercados pouco regulamentados. A sua rápida expansão deu origem a problemas graves, como a infiltração criminosa em empresas militares privadas no México e em El Salvador e denúncias de execuções extrajudiciais na Guatemala”, aponta o Asia Times.

Destaco três aspectos nesta breve análise.

Em primeiro lugar, o policiamento privado surge com o neoliberalismo e a desregulamentação dos estados, com o fim dos estados de bem-estar que buscavam a conciliação de classes. Uma vez desaparecida a intenção de integrar as classes perigosas, ou de “comprá-las”, segundo Immanuel Wallerstein, há um retorno da periculosidade. Paralelamente, cresce a desigualdade e o 1% mais rico não confia mais na polícia estatal para proteger os seus interesses.

O aspecto central, a meu ver, é o fim da cooptação/integração de classes perigosas, em um processo que começa nos anos 1970 e se completa com o Consenso de Washington, em 1989, que coincide com a implosão da União Soviética. Deste ponto de vista, o policiamento privado tem o duplo papel de proteger os mais ricos e controlar os mais pobres, complementando-se com a polícia estatal.

Em segundo lugar, o policiamento privado está fora de controle e de qualquer prestação de contas. Muitas vezes, participa da repressão de manifestações e ocupações, como aconteceu recentemente nos Estados Unidos com o movimento pela Palestina.

Se a polícia estatal se degradou com a corrupção e a criminalidade, é fácil imaginar que a privada é um terreno fértil para as piores práticas. Mais ainda, há casos em que policiais públicos expulsos de suas forças são admitidos no setor privado sem o menor problema.

Não surpreende que muitas forças policiais privadas recrutem os seus membros entre policiais estatais afastados de seus cargos por corrupção e crime. Empresas militares privadas, como a estadunidense Blackwater e a russa Wagner, recrutam os seus combatentes entre prisioneiros comuns, sem importar a gravidade do crime cometido.

A terceira questão é nos perguntar onde fica o Estado, uma vez privatizada a violência “legítima”, com a evidência de que o Estado se tornou um apêndice da classe dominante e do capital. Eu me pergunto: o que realmente se busca quando se almeja ocupar alguma posição secundária dentro do aparelho estatal (como deputado, senador ou ministro), sem tocar na violência privatizada?

Estados inteiros como o Rio de Janeiro, no Brasil, são exemplos do tremendo poder da violência privada/privatizada que sustenta desde os negócios ilegais e obscuros até as muito legítimas autoridades eleitas, como prefeitos e governadores. A experiência nos diz que desmantelar estas redes de poderes irregulares é quase impossível por parte das instituições.

Por esta razão, os movimentos dos povos indígenas e negros mais conscientes decidiram defender os territórios com suas autodefesas comunitárias.

 

•        A hora e a vez do Estado-bandido. Por Muniz Sodré

O fato de 61 candidatos em 44 cidades do país portarem tornozeleiras eletrônicas e terem mandados de prisão em aberto é sintoma de uma mutação nas relações sociais em que a criminalidade passa por novas inflexões de natureza moral. O crime, parece, começa a ganhar legitimidade. Não só entre nós: nos EUA, vários estados têm leis que descriminalizam furtos de baixo valor. Em Nova York, o comércio já tranca vitrines.

Lá, tenta-se evitar a superlotação das prisões por ladrões de bens considerados essenciais, aqui o fenômeno pertence à mafialização da vida social. Algo começa a ferir o princípio do Estado liberal, cujo modelo francês é o "État-gendarme", Estado mínimo, restrito às funções de Exército, Justiça e polícia, portanto, de manutenção inflexível do status quo burguês. A prática sempre velou para que a Justiça visasse com prioridade as classes subalternas.

A fúria contra quem rouba um simples pão é tipificada no clássico "Os Miseráveis", de Victor Hugo, sobre a perseguição implacável de Jean Valjean pelo inspetor Javert. Desdobra-se na consciência em um ânimo punitivo com visão geralmente toldada para os grandes criminosos, porém, muito aguçada para os menores, que afetam em cheio a vida privada.

Em princípio, não existe um "État-bandit", mas autoridades sempre compactuaram com criminosos. Às vezes, em busca de equilíbrio na violência pública, outras, por motivos escusos. Disso é ilustrativa a história da máfia americana, que registra pactos secretos com figuras dos Poderes. Ou a da russa, que ajudou a montar a cleptocracia de Putin, o homem mais rico do mundo, um Don Corleone de quilate global.

A flexibilização da repressão antifurto nos EUA contempla o descompasso entre a macroeconomia e a vida concreta, preços altíssimos. Não é o caso do Brasil, onde em data recente um juiz do Supremo manteve a pena da mulher que havia furtado um tubo de pasta de dente. Admirador de Javert, talvez. Mas aqui se trata mesmo da infiltração do crime em todas as instâncias dos Poderes: ministros suspeitos, bancadas parlamentares cancerígenas. E segurança interna ameaçada por máfias nacionais, como PCC e Comando Vermelho.

O Rio é vitrine do descontrole: massacres, tiroteios diários, drones de guerra. Expropria-se celular, carro, moto (39 por dia) e o bronze da memória da cidade. Roubam-se desde macacos do Jardim Botânico até britadeira de operário em construção na rua.

Mafialização é o fenômeno, que contamina moralmente a cidadania nacional. Não só infiltração no Estado, porém, em estado nascente, anestesia coletiva para absorção psicossocial e banalização do delito. De insensibilidade à violência, até a tomada de cargos públicos por malfeitores. Governabilidade virou álibi para pacto com o crime. A própria linguagem dos políticos lembra o jargão do submundo.

Toda sociabilidade tem caracterizações psíquicas inerentes às regulações morais das instituições. Habituar-se ao crime é anomalia, senão mutação nas formas de associação estabelecidas. Na ausência de uma política antitética à mafialização pode estar sendo gestado um Estado-bandido. Daí o sábio temor de Oscar Niemayer: "Hoje eu vejo, tristemente, que Brasília nunca deveria ter sido projetada em forma de avião, mas sim de camburão".

 

Fonte: La Jornada - tradução do Cepat/Folha

 

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