Por que são os jovens que adoecem?
Rick Azevedo, vereador recém-eleito no Rio e um dos
líderes nacionais do Vida Além do Trabalho (VAT) sempre acentua como sua saúde
foi afetada pela escala de trabalho 6×1. Arrola as consequências do sofrimento
mental e emocional que atingem os trabalhadores submetidos anos a fio a ela,
como esgotamento, depressão e burnout, o que também ecoa nas respostas de seus
seguidores e nos cartazes de mobilização do movimento.
Um relato publicado em seu Instagram sobre uma
panfletagem realizada em setembro de 20241 dá uma pista
de como se processa a identificação e adesão de trabalhadores vivendo a mesma
situação (ou, como assinala Rick, a mesma dor):
“Renan, um cara tímido, trabalhador de supermercado na
madrugada por anos, saiu do seu trabalho de manhã e foi diretamente nos
encontrar. A gente não se conhecia, mas a nossa dor automaticamente se ligou
uma à outra no mesmo momento. Ele estava tão cansado, cheio de sono… eu falei:
‘meu amigo, vai pra casa, não é justo você perder seu descanso’. E ele disse:
‘não Rick, essa luta é uma dor nossa e eu quero ajudar.”
Esse impacto do trabalho intensivo sobre a saúde dos
jovens já vem se anunciando também em outros espaços de escuta. Em uma pesquisa
do Conselho Nacional de Juventude sobre as percepções dos jovens na pandemia da
Covid19, descortinou-se a sobrecarga e a exaustão dos jovens diante da
sobreposição de diferentes tarefas e responsabilidades assumidas por eles,
incluindo as do trabalho: mais de metade dos 68 mil respondentes disseram que
se sentem sobrecarregados e exaustos (sobretudo as jovens mulheres, entre as
quais cerca de 2/3 manifestam tais queixas), além de altas parcelas dos que
disseram passar por situações de ansiedade, insônia, depressão e pensamento
suicida2.
Os materiais de comunicação do VAT expressam situações
como cansaço e esgotamento, ansiedade e frustração, estresse, irritabilidade e
perda de apetite, provocadas pela escala exaustiva. As queixas apresentadas
reforçam o entendimento de que o trabalho é um determinante social da saúde. Ou
seja, as condições em que ele é exercido impactam na saúde mental e física dos
trabalhadores.
Constata-se que a contundência da manifestação do
movimento conflita diretamente com a representação comum que circula na
sociedade de que, por estarem em sua plena capacidade vital, os jovens têm
energia suficiente para ser dispendida com a intensidade e a velocidade
exigidas pelas determinações de produtividade do mercado. Além de atender a
essa exigência, devem assumir múltiplas funções. A flexibilidade, a disposição
e a potência juvenil são aspectos romantizados que ocultam a realidade de que
parcela significativa dos jovens atuam nos piores empregos, inclusive os
assalariados, com jornadas exaustivas e em condições insalubres, sujeitos a
acidentes e com salários rebaixados, sem uma política ativa de proteção, de
fiscalização e de trabalho decente, comprometendo a sua condição de saúde.
Com a atenção voltada para esse tema, a Agenda Jovem da
Fiocruz, em parceria com a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio,
preparou um estudo que resultou na construção de um Dossiê sobre a Saúde dos Jovens Trabalhadores.
Neste documento,3 podemos encontrar a revelação de que
os jovens são o segmento etário mais afetado pelos agravos na saúde provocadas
pelo trabalho. Cerca de um terço de todos os acidentes de trabalho registrados
no SUS entre 2016 e 2022 atingiram jovens. Dos acidentes de trânsito ocorridos
com pessoas entre 25 e 29 anos, notoriamente uma das principais causas de
mortalidade e lesões incapacitantes nessa faixa etária, 43% estão relacionados
com o trabalho exercido pelas vítimas. Metade dos jovens ocupados encontram
pelo menos um elemento nocivo à saúde em seu ambiente de trabalho.
As queixas do VAT sobre esgotamento e frustração
corroboram os dados sobre os transtornos mentais4 relacionados
ao trabalho notificados no Sistema de Informações de Agravos de Notificação
(SINAN). No período de 2016 a 2022, foram notificados 10.350 casos de
transtornos mentais relacionados ao trabalho, sendo 1.908 em pessoas na faixa
etária dos 15 aos 29 anos (18,43% do total das notificações). Mais de metade
(53,4%) das notificações foi de pessoas registradas com carteira assinada. Os
jovens trabalhadores de serviços administrativos compõem o grupo com as maiores
notificações e, na sequência, os jovens trabalhadores dos serviços, vendedores
do comércio em lojas e mercados.
Esses dados nos dão uma pista para entender por que e
como o tema da saúde mental tornou-se em poucos anos crucial para pessoas
jovens. Ao lado dos sempre alegados problemas de isolamento e de desengajamento
como fonte de sofrimento emocional, encontramos problemas de exaustão,
assédios, tensões produzidas pelas exigências de desempenho, que resultam
também em agravamentos da saúde mental.
Essas informações, estratificadas para a faixa de 15 a
29 anos retiradas dos Sistemas de Informação em Saúde, são ilustrativas e
indicativas do tamanho do problema, que deve ser ainda maior, pois uma
constatação importante do dossiê é a subnotificação de casos ocorridos e não
registrados. Um exemplo é o fato de que, no Sistema de Informação Hospitalar
(SIH), em 99,99% dos casos de internação de jovens, a informação sobre sua
ocupação não foi preenchida, o que nos impede de compreender o quanto tais
internações podem ser relacionadas a sua condição de trabalhadores. A falta de
registros adequados dificulta a correta avaliação dos impactos das jornadas e
condições de trabalho dos jovens sobre sua saúde física e mental, e é preciso
encontrar caminhos para superar essa deficiência nos mecanismos da importante
base de dados do sistema de saúde.
Os jovens adoecem, mas não param: a última Pesquisa
Nacional de Saúde (PNS), de 2019, nos dá a informação de que apenas 4,9 % dos
jovens adultos (18 a 29 anos) interrompem atividades em função de problemas de
saúde, bem menos do que acontece com as pessoas das demais faixas etárias (8,1%
na população total). E poucos obtêm cuidados: apenas 10,8% dos jovens fazem
reabilitação em caso de diagnóstico elegível. Pode-se concluir pela existência
de diferentes tipos de obstáculos de acesso aos serviços de saúde: 25% dos
jovens que responderam à pesquisa afirmaram ter dificuldades em conseguir
atendimento médico no serviço de saúde; a faixa etária de 18 a 29 anos é a que
menos consulta médicos.
A realidade da condição juvenil no mundo do trabalho
parece não encontrar resposta em redes de cuidado integral, de assistência,
proteção e promoção da saúde. A despeito da existência do Estatuto da
Juventude, sancionado em 2013 e que trata dos direitos da população jovem entre
15 e 29 anos, a orientação para políticas de saúde no Brasil relativas à
população jovem utiliza os parâmetros internacionais da Organização Mundial da
Saúde (OMS) e se concentra na categoria adolescente5. Em decorrência,
há insuficiente apreensão das necessidades em saúde dos segmentos jovens
maiores de 18 anos, que já estão inseridos no trabalho.
O último documento oficial de caráter nacional orientador
para a saúde da população jovem foi publicado em 2010 (Diretrizes Nacionais de
Atenção Integral à Saúde de Adolescentes e Jovens) e não trata da dimensão do
trabalho como constitutiva da realidade juvenil. Quando cita explicitamente a
faixa etária dos jovens para além dos adolescentes é pelo viés da
produtividade, perspectiva comum a toda a produção dos organismos multilaterais
naquele período, preocupados em aproveitar a existência de um bônus demográfico
para impulsionar o crescimento do país, “utilizando como força motriz a maior
população de jovens da sua história”, como ecoa ainda hoje o documento que
pretende reunir os diagnósticos e proposições “atualizadas” sobre os jovens do
Brasil (Atlas das Juventudes, 2022 p. 10).
É a mesma perspectiva que, tomando os jovens como um
dos “principais ativos” da sociedade, propõe uma agenda de “programas
eficientes e eficazes de capacitação para o mercado de trabalho, com ênfase na
produtividade futura dos trabalhadores” e com “políticas complementares relativas
a empreendedorismo tanto em aspectos de capacitação quanto de financiamento”,
como afirma documento do Banco Mundial de 20186. O documento
também afirma que é preciso avançar nas “reformas” que diminuam a regulação do
mercado de trabalho, “introduzindo ajustes referenciados a mudanças na
produtividade dos trabalhadores, maior flexibilidade e um salário-mínimo legal
mais baixo para os jovens.”
Tais diretrizes acabaram se impondo como referências
principais de muitos atores do atual campo das políticas públicas de juventude
e estão reproduzidas em diferentes planos de políticas governamentais desde o
golpe de 2016, como fica mais explicito no Plano Nacional de Empreendedorismo e
Start Up lançado pela Secretaria Nacional de Juventude em 2017, assim como em
vários programas oferecidos por institutos e fundações empresariais para serem
desenvolvidos através de parcerias público-privadas com governos estaduais e
municipais
Em julho de 2024, abriu-se uma consulta pública para
uma Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes e Jovens. A
minuta do documento avança ao incorporar a população até 29 anos com base no
Estatuto da Juventude. Contudo, trata do trabalho na vida dos jovens pelo viés
clássico da juventude como uma mera fase de transição, trazendo referências ao
“projeto de vida”, reforçando uma sequência idealizada onde os jovens se
deslocariam da conclusão de sua escolaridade básica para o mundo do trabalho.
Não se constitui como foco de atenção a situação de saúde dos jovens que já
trabalham, dos agravos ocorridos a partir da ocupação e quais as estratégias de
promoção, vigilância, proteção, atenção e recuperação à saúde devem ser
acionadas. É uma expectativa se algo mais profundo e conectado à realidade em
relação à saúde de jovens trabalhadores estará incluído na publicação do texto
final da política.
Cabe recordar que a possibilidade de conciliação das
jornadas dos jovens nas diferentes dimensões da vida, de modo que uma não anule
a outra, é um dos eixos estruturantes da Agenda do Trabalho Decente para
Juventude, elaborada e lançada no segundo governo Lula, e desenvolvida durante
o governo Dilma na forma de um Plano Nacional, interrompido pelo golpe de 2016.
Nesse sentido, assim como existe a necessidade de que o setor da saúde
compreenda a diversidade etária no interior da juventude, inclua em seus
diagnósticos a identificação das necessidades de saúde dos jovens de todas as idades
e encontre os jovens trabalhadores, também é fundamental retomar uma agenda de
trabalho decente, de maneira a responder aos anseios da juventude trabalhadora,
que o VAT conseguiu expressar de maneira tão cristalina.
A notável repercussão e mobilização alcançada por esse
movimento demonstra que esses jovens souberam dar voz a uma queixa amplamente
sentida, materializando uma demanda geral por uma outra relação com o trabalho,
outras condições de exercício e outro equilíbrio do tempo do trabalho na vida. Como
se surpreende o próprio Rick Azevedo: “Jamais
imaginei que minha dor, meu sofrimento, de 12 anos na escala 6X1 iria se
transformar em uma luta necessária e urgente que vai beneficiar toda a classe
trabalhadora no país.”
Não é possível prever os desdobramentos desses
acontecimentos, mas já é possível afirmar que novos personagens entraram em
cena e que a pauta dos direitos do trabalho se recolocou no centro da disputa a
partir dessa luta. Se a posição e perspectiva dos seus protagonistas
prevalecer, o debate não poderá girar em torno dos custos para os empregadores
ou do comprometimento da produtividade da economia. O que está em jogo, o que
ecoa do grito lançado por eles, é o prejuízo desse modelo de trabalho sobre a
vida e a saúde dos trabalhadores.
É o momento de reafirmar uma agenda de direitos com um
eixo que possa pôr em relevo a necessidade de cuidar dos jovens na sua condição
de trabalhadores, e de sua saúde, física e mental, em vez de apenas exortá-los
como os responsáveis pelo aumento da produtividade e de crescimento econômico
do país. Uma agenda que afirme a possibilidade de que todos possam “trabalhar
para viver, e não viver para trabalhar”.
Fonte: Por Helena Wendel Abramo e André Sobrinho, em Outras Palavras
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