O avanço da cocaína
mais forte e mais pura no mundo
Nunca antes
tanta cocaína esteve
disponível no mundo — e nunca tantas pessoas consumiram a droga.
Dados do Relatório
Mundial sobre Drogas da Organização das Nações Unidas (ONU) de 2024 mostram que
o mercado ilegal de cocaína atingiu seu recorde nos últimos anos.
A alta é motivada
por um aumento na oferta diante da alta
produtividade na América Latina, mas também de um crescimento na procura
pela droga em todo o planeta.
Apesar do número de
apreensões ter crescido exponencialmente nos últimos anos — em uma taxa
inclusive superior à da expansão do mercado —, o saldo final ainda é de um
aumento considerável na disponibilidade de cocaína.
Especialistas dizem
ainda ser uma grande fonte de preocupação um processo atípico observado
especialmente na Europa, que é hoje o segundo maior mercado consumidor da
droga.
Enquanto o preço da
cocaína segue estável há meses em muitos países, a droga vendida ilegalmente
está cada vez mais pura.
"Na prática, a
cocaína está mais barata, porque, pelo mesmo preço, é possível comprar a droga
bem mais pura", avalia Thomas Pietschmann, um dos pesquisadores
responsáveis pelos relatórios elaborados anualmente pelo Escritório das Nações
Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC).
Embora
especialistas admitam que os dados sobre a composição das drogas
comercializadas no mundo são mais confiáveis nos países europeus, eles afirmam
também que a tendência no crescimento na pureza da cocaína já é uma realidade
mundo.
"A cocaína
lançada hoje no mercado é mais pura do que nunca — e ainda é vendida a preços
comparativamente mais baixos", afirma Bernd Werse, diretor do Centro de
Pesquisa de Drogas (CDR) da Universidade de Frankfurt.
O cenário de
crescimento global da droga, por sua vez, impacta diretamente no aumento do
consumo nos países de trânsito do tráfico, entre eles o Brasil.
·
'Cocaína
de sobra'
A abundância de
cocaína no mercado atual tem sua origem especialmente na América do Sul, mais
especificamente na Colômbia, na Bolívia e no Peru.
A cocaína é
extraída das folhas da planta de coca, chamada oficialmente de Erythroxylon
coca, que é nativa desses países.
Para produzir a
droga, as folhas de coca são maceradas na presença de ácido sulfúrico,
resultando em uma pasta. Ao misturar essa pasta com ácido clorídrico, os
criminosos produzem o cloridrato de cocaína, conhecido como cocaína em pó.
Os três países
sul-americanos são responsáveis por quase 100% da produção mundial de coca,
apesar de novos campos de cultivo serem encontrados pelas autoridades em outros
países de tempos em tempos.
Estima-se que, só
de cocaína pura, tenham sido produzidas cerca de 2,757 toneladas em 2022 — um
aumento de 20% em relação a 2021 —, segundo a ONU.
Laurent Laniel,
pesquisador da Agência de Drogas da União Europeia (Euda, na sigla em inglês),
atribui o cenário às inovações incorporadas ao cultivo nos últimos anos, com
mais investimentos em fertilizantes e investigação genética para obtenção de
mais e novas variedades de coca.
"Os produtores
usam cada vez mais espécies que possuem maior quantidade de cocaína em suas
folhas, são mais resistentes à fumigação [em ações de combate às plantações] e
rendem mais de maneira geral", diz.
Ao mesmo tempo,
também foi registrado um crescimento no cultivo da coca. Entre 2021 e 2022, a
área cultivada aumentou 12%, chegando a 355 mil hectares.
Só na Colômbia, o
país líder em produção, a área cultivada cresceu mais de 25 mil hectares — o
equivalente a aproximadamente 34 mil campos de futebol — entre 2021 e 2022.
Em 2023, segundo
dados do Ministério da Defesa, havia 246 mil hectares de coca cultivados no
país — o equivalente a cerca de um terço da área dedicada ao cultivo de café, o
produto agrícola mais exportado pela economia local.
Na Colômbia, em
especial, uma mudança na estratégia adotada pelo governo para combater as
culturas ilícitas impulsionou a ampliação do cultivo.
Durante anos, o
governo colombiano usou a fumigação aérea com glifosato para acabar com as
plantações.
Essa política,
estreitamente alinhada com as recomendações dos Estados Unidos, foi suspensa em
2015 devido a dúvidas sobre os efeitos do uso desse herbicida na saúde.
Ana María Rueda,
coordenadora da área de Políticas sobre Drogas da Fundação Ideias para a Paz,
explicou em entrevista à BBC News Mundo que "na ausência de pulverização
aérea, o arbusto de coca atinge os seus níveis máximos de produtividade".
Ou seja, a mesma
planta de coca produz mais cloridrato de cocaína e podem ser produzidas seis
colheitas por ano, em vez de três.
Segundo
especialistas, o aumento na produção de cocaína no mundo e o cultivo de plantas
mais "potentes" ajuda a explicar não só a grande disponibilidade da
droga no mercado mundial, mas também a alta na pureza das substâncias apesar da
estabilidade nos preços.
"Há muita
cocaína na Colômbia, há mais cocaína na Bolívia e no Peru, há mais opções de
onde comprar, e há mais cocaína em todo o mercado. Isso dá ao traficante a
liberdade de estabelecer novas condições", diz Ana María Rueda.
Ainda segundo a
ONU, o aumento prolongado na oferta e demanda de cocaína "coincide com um
aumento da violência em países ao longo da cadeia de suprimentos,
principalmente no Equador e nos países do Caribe, e um aumento nos danos à
saúde nos países de destino, incluindo a Europa Ocidental e Central."
·
Consumo
e pureza nas alturas
Mas apesar do
aumento da produção na América do Sul ser apontado como a razão principal por
trás do cenário atual, os especialistas são categóricos ao afirmar que também
há um crescimento notável no consumo.
"Não podemos
negar que há uma prontidão dos mercados para consumir essa produção, principalmente
na Europa Ocidental nos últimos anos", avalia Thomas Pietschmann, do
UNODC.
Em um relatório
divulgado em 2024, com dados de 2022, as Nações Unidas estimam que algo em
torno de 0,45% da população entre 15 e 64 anos havia usado cocaína nos 12 meses
anteriores.
Isso equivale a
algo em torno de 23,5 milhões de pessoas — mais do que toda a população do
Estado de Minas Gerais.
Isso significa que,
entre 2018 e 2022, o número de consumidores da droga cresceu algo em torno de
22% em todo o mundo.
A percepção de
especialistas da área e profissionais da saúde envolvidos no acolhimento e
tratamento de usuários é que esse aumento segue acontecendo — isso se não se
tornou ainda mais vertiginoso.
Nesse contexto,
chama a atenção dos especialistas o avanço do consumo na Europa, ao mesmo tempo
em que a droga comercializada no continente fica cada vez mais pura e potente.
Um novo relatório
da Agência de Drogas da União Europeia (Euda), divulgado em junho de 2024,
aponta que quase 4 milhões de pessoas entre 15 e 64 anos usaram cocaína nos
países da União Europeia (UE) no último ano — algo em torno de 1% dos cidadãos
desta faixa etária.
Esse total inclui
desde pessoas que experimentaram a droga apenas uma vez nos últimos 12 meses
até usuários regulares.
Mas, entre as quase
60 mil pessoas que receberam algum tipo de tratamento para vício em cocaína em
qualquer um dos países da UE, 27% relataram o uso diário da droga.
"Quanto mais
tempo as pessoas usam cocaína, mais elas consomem", alerta Pietschmann.
Segundo a Euda, os
países com maior prevalência no uso de cocaína entre a população adulta foram
Holanda, Espanha, Irlanda, Noruega e Dinamarca.
A agência também
identificou um aumento de 80% nos traços de cocaína encontrados nas águas
residuais de diversas cidades no centro e sudeste da Europa desde 2011.
Somado a isso, a
pureza média da cocaína disponível para venda na Europa atingiu um nível 45%
maior em 2022 do que o registrado uma década antes, ao mesmo tempo em que os
preços permaneceram estáveis.
"Estamos
observamos consequências na saúde pública causadas por esse cenário, mas também
na segurança", diz Laurent Laniel, analista do órgão.
Segundo Laniel,
cada vez mais países na Europa enfrentam problemas de violência nas ruas
relacionados ao consumo e tráfico da cocaína.
"Temos visto
traficantes matando uns aos outros — e, às vezes, matando pessoas que não estão
envolvidas com o tráfico."
·
Avanço
do crack
Os dados do
relatório da Euda apontam ainda um avanço significativo do crack entre a
população europeia.
O crack é produzido
a partir do cloridrato de cocaína diluído em água e acrescido de bicarbonato de
sódio, ou amônia, e aquecido.
O resultado é uma
forma cristalizada da cocaína que pode ser fumada — e que é extremamente
viciante e capaz de provocar comportamento violento nos usuários.
O aumento na
disponibilidade de cocaína no mercado, portanto, pode ter levado também à maior
disponibilidade de crack.
Ao mesmo tempo,
estudos apontam que muitos dos usuários de crack passam por um estágio de uso
de cocaína antes de migrar para a droga mais pesada.
Entre 2017 e 2002,
os centros de atendimento a usuários em toda a Europa registraram 42% mais
novos pacientes tratados para dependência em crack ou que tem a substância como
droga primária.
Mas os principais
efeitos da popularidade do crack são vistos nas ruas de algumas das grandes
cidades europeias, que desenvolveram
"cracolândias" próprias.
Na Alemanha, por
exemplo, as autoridades locais tem sofrido para controlar os efeitos negativos
dos milhares de usuários que se reúnem todos os dias em regiões de cidades como
Frankfurt, Berlim, Hamburgo e Hanover.
Frankfurt, aliás,
passa por um processo observado não só na Alemanha, mas em todo o continente,
de transição do uso de drogas injetáveis como a heroína para a cocaína e o
crack.
O crescimento da
cocaína e do crack na Europa contrasta com o que ocorre nos Estados Unidos, uma
região que ainda é a número um em termos de consumo, mas que viu seu mercado
contrair nas últimas décadas.
Segundo Thomas
Pietschmann, os cartéis de droga sul-americanos têm encontrado um caminho mais
fácil para escoar sua produção para os países europeus do que para os Estados
Unidos.
"Para traficar
para os Estados Unidos, eles precisam usar pessoas no México como
intermediárias, enquanto na Europa eles conseguem fazer isso diretamente e
lucrar mais", diz.
"Eu diria
também que a cocaína tem uma imagem melhor entre os europeus. O crack causou
muitos estragos nos Estados Unidos e passou a ser associado com violência e
favelas. Na Europa, a cocaína ainda é, em parte, uma droga da elite."
A associação entre
a classe social e o consumo, aliás, também ajuda a explicar o crescimento da
cocaína em todo o mundo, segundo o pesquisador da ONU.
"Onde quer que
haja uma nova classe média surgindo, há um aumento na cocaína. Não que toda a
classe média use a droga, mas algumas pessoas neste grupo começam a frequentar
mais festas e comprar mais drogas a medida que melhoram de vida."
Pietschmann cita
China e Índia como dois países onde o consumo da cocaína é historicamente
baixo, mas onde tem ocorrido um aumento nas últimas décadas.
·
O
Brasil como país de trânsito
Em meio a um
cenário de crescimento geral da droga, os chamados países de trânsito da
cocaína mundial também têm experimentado uma disparada no consumo.
Na América do Sul,
uma das nações mais utilizadas para transporte e escoamento da produção é o
Brasil, por seu acesso estratégico ao Oceano Atlântico.
No levantamento
feito pelo UNODC sobre os países de onde os carregamentos apreendidos em todo o
mundo entre 2019 e 2022 foram escoados, o Brasil só ficou atrás da Colômbia.
As apreensões
locais também evidenciam o papel brasileiro no mercado de cocaína global: entre
2013 e 2023, a Polícia Federal apreendeu 730 toneladas de cocaína no país.
Nesse período, o
crescimento das apreensões foi de 73,7%, segundo o 18º Anuário Brasileiro de
Segurança Pública.
E, de acordo com o
UNODC, a droga é geralmente transportada para o Brasil e depois escoada para a
África, de onde posteriormente é enviada para a Europa e Ásia, ou por vezes
diretamente para o Velho Continente.
Além disso, o país
é atualmente o segundo mercado de cocaína no mundo, atrás apenas dos Estados
Unidos, de acordo com a ONU.
Quando analisado o
consumo de crack, o Brasil aparece no topo da lista, com consequências
devastadoras para a saúde pública e as políticas habitacionais de grandes
cidades como São Paulo.
De acordo com o
Ministério da Saúde, o número de mortes atribuídas a distúrbios causados pelo
uso de cocaína — em todas as duas formas — no Brasil cresceu mais de 600% entre
2000 e 2022.
Segundo Thomas
Pietschmann, a elevada oferta da cocaína nos países vizinhos, assim como a
grande circulação de carregamentos pelo território brasileiro, contribui para
esse cenário.
"Em muitos
países de trânsito, as pessoas envolvidas no tráfico são pagas em cocaína, e a
droga acaba sendo comercializada no mercado local", diz Pietschmann.
"Com mais
cocaína sendo exportada, isso também cresceu nos últimos anos."
·
Queda
na produção de opioides
Ao mesmo tempo em
que a cocaína cresce, os especialistas observaram uma queda brusca na produção
de opioides (drogas como heroína, morfina, fentanil, metadona) no mundo.
Esse cenário é
impulsionado principalmente por uma proibição ao cultivo de ópio instaurada
pelo grupo Talebã no Afeganistão.
O país costumava
produzir mais de 80% de todo o ópio do planeta. E a heroína produzida com o
ópio afegão representava 95% do mercado europeu.
Mas em abril de
2022, o líder supremo do Talebã, Haibatullah Akhundzada, decretou que o cultivo
da papoula — da qual é extraído o ópio, o principal ingrediente da heroína —
fosse rigorosamente proibido.
Qualquer pessoa que
violasse a proibição teria seu campo destruído e sofreria as penas de acordo
com as leis da Sharia, a lei islâmica.
Um porta-voz do
Talebã declarou à BBC que a proibição foi imposta devido aos efeitos
prejudiciais do ópio e porque contraria suas crenças religiosas.
Com a mudança, as
Nações Unidas registraram uma queda de 74% na produção global de ópio em 2023.
Enquanto, no Afeganistão, esse total desmoronou em 95%, Mianmar surgiu como
alternativa no cultivo de papoulas, equilibrando o resultado final.
Fato é que a
diminuição da produção de opioides e, consequentemente, da confecção de novos
carregamentos de heroína, gerou rumores de um possível impacto indireto no
aumento do consumo de outras drogas, em especial a cocaína.
Alguns
especialistas temiam que usuários e, especialmente, traficantes buscassem
alternativas à heroína para manter seu mercado.
Em um cenário de
explosão na produção de cocaína, a droga vinda da América do Sul parecia a
substituta perfeita.
Mas, segundo os
dados compilados pelas Nações Unidas, a queda na produção ainda não produziu um
impacto na oferta nos mercados e no consumo de heroína e outros opioides no
mundo, já que os traficantes se anteciparam e acumularam estoques consideráveis
antes do corte na produção.
O escritório da ONU
sobre drogas e crime afirma, porém, que o cenário pode mudar no futuro, caso o
cultivo no Afeganistão continue proibido.
Fonte: BBC News
Brasil
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