O que Irã vai fazer
agora que seu 'Eixo da Resistência' foi destruído?
Em meio ao vidro
quebrado e às bandeiras pisoteadas, cartazes do líder supremo do Irã, o aiatolá Ali
Khamenei, permanecem rasgados no chão da Embaixada iraniana em Damasco, capital
da Síria.
Lá estão também
fotografias rasgadas do antigo líder do movimento Hezbollah, Hassan
Nasrallah (1960-2024),
morto em um ataque aéreo israelense em Beirute, no Líbano, no mês de setembro.
No lado de fora, os
ornamentados ladrilhos azul-turquesa da fachada da Embaixada estão intactos.
Mas existe uma enorme imagem deformada do ex-comandante da Guarda
Revolucionária do Irã, Qasem
Soleimani (1957-2020)
— que detinha enorme influência no país, até ser morto por ordem de Donald
Trump durante
seu primeiro mandato na presidência americana.
Esta imagem é mais
um lembrete da série de ataques sofridos pelo Irã, que culminaram no dia 8 de
dezembro, com a queda de um aliado importante: o presidente da Síria, Bashar
al-Assad.
Enquanto a
República Islâmica trata de suas feridas e se prepara para um novo mandato de
Trump, será que ela irá decidir por uma abordagem mais linha-dura? Ou irá
retomar suas negociações com o Ocidente?
·
E
até onde vai a estabilidade do regime iraniano, atualmente?
No seu primeiro
discurso após a derrubada de Assad, Khamenei manteve uma expressão grave,
frente à sua derrota estratégica. Agora com 85 anos de idade, ele enfrenta o
iminente desafio da sua sucessão, depois de permanecer no poder como a
autoridade máxima do país desde 1989.
"O Irã é forte
e poderoso — e irá se tornar ainda mais forte", afirmou ele.
Khamenei insiste
que a aliança liderada pelo Irã no Oriente Médio — que inclui o Hamas, o
Hezbollah, os houthis
no Iêmen e
as milícias xiitas iraquianas — é o "escopo
da resistência"
contra Israel e também só irá se fortalecer.
"Quanto mais
pressão vocês fizerem, mais se fortalece a resistência", prosseguiu ele.
"Quanto mais crimes vocês cometerem, mais determinada ela irá ficar.
Quanto mais vocês lutarem contra ela, mais ela irá se ampliar."
Mas a onda de
choque regional após os massacres cometidos pelo Hamas em Israel no
dia 7 de outubro de 2023 — que foram aplaudidos, se não apoiados, pelo Irã —
fizeram o regime cambalear.
A retaliação de
Israel contra seus inimigos criou um novo cenário no Oriente Médio e deixou o
Irã na defensiva.
"Todas as
peças caíram", afirma James Jeffrey, ex-diplomata americano e
ex-conselheiro adjunto de segurança nacional dos Estados Unidos, que hoje
trabalha no think tank (centro de pesquisa e debates) suprapartidário Wilson
Center.
"O Eixo da
Resistência iraniano foi esmagado por Israel e, agora, destruído pelos eventos
na Síria", prossegue ele. "O Irã não tem nenhum substituto real na
região, exceto pelos houthis no Iêmen."
O Irã ainda apoia
milícias poderosas no vizinho Iraque. Mas, segundo Jeffrey, "este é o
colapso totalmente sem precedentes de uma hegemonia regional".
A última aparição
pública de Assad ocorreu em uma reunião com o ministro de Relações Exteriores
do Irã, em 1º de dezembro. Na ocasião, ele prometeu "esmagar" os
rebeldes que avançavam sobre a capital síria. O Kremlin declarou que ele,
agora, está na Rússia, depois de fugir do país.
O embaixador
iraniano na Síria, Hossein Akbari, descreveu Assad como a "linha de frente
do Eixo da Resistência". Mas, quando chegou o fim para Bashar al-Assad, o
Irã, enfraquecido e abalado pelo súbito colapso das suas forças, não teve
capacidade nem disposição para defendê-lo.
Em questão de dias,
caiu o único outro Estado do "Eixo da Resistência", que era sua peça
central.
·
A
construção da rede
O Irã passou
décadas construindo sua rede de milícias, para manter sua influência na região
e dissuadir possíveis ataques de Israel. O início do processo data da Revolução
Islâmica, em 1979.
Na guerra que se
seguiu contra o Iraque, o então presidente sírio Hafez al-Assad (1930-2000),
pai de Bashar, apoiou o Irã. A aliança entre os clérigos xiitas no Irã e os
Assads (da minoria alauíta, ramo do xiismo) ajudou a estabelecer a base de
poder do Irã em um Oriente Médio predominantemente sunita.
A Síria também foi
uma rota fundamental para que o Irã pudesse abastecer seu aliado no Líbano, o
Hezbollah, e outros grupos armados regionais.
O Irã já saiu em socorro
de Assad anteriormente. Quando ele parecia vulnerável, após um levante popular
em 2011 se transformar em uma guerra civil, Teerã forneceu jatos, combustível e
armas. Mais de 2 mil soldados e generais iranianos foram mortos enquanto
trabalhavam ostensivamente como "consultores militares".
"Sabemos que o
Irã gastou de US$ 30 bilhões a US$ 50 bilhões [cerca de R$ 180 bilhões a R$ 300
bilhões] na Síria" desde perto de 2011, segundo Sanam Vakil, diretora do
programa para o Oriente Médio e norte da África do think tank Chatham House.
Mas, agora, a rota
que o Irã poderia tentar usar no futuro para reabastecer o Hezbollah no Líbano
— e, dali, possivelmente outros grupos — foi cortada.
Para Vakil, "o
Eixo da Resistência foi uma rede oportunista, projetada para fornecer
profundidade estratégica ao Irã e proteger o país contra ataques diretos. Esta
estratégia claramente fracassou."
O cálculo do Irã
sobre o que fazer em seguida será influenciado não só pela queda de Assad, mas
também pelo fato de que o seu próprio exército se saiu muito pior do que
Israel, nos primeiros confrontos diretos entre os dois países, ocorridos este
ano.
A maior parte dos
mísseis balísticos lançados pelo Irã contra Israel em outubro foram
interceptados, embora alguns deles tenham causado danos a diversas bases
aéreas. Já os ataques israelenses causaram sérios danos às defesas aéreas do
Irã e à sua capacidade de produção de mísseis.
"A ameaça dos
mísseis acabou sendo um tigre de papel", segundo Jeffrey.
E o assassinato em
Teerã do líder do Hamas, Ismail Haniyeh (1962-2024), ocorrido em julho, foi
outro profundo constrangimento para o Irã.
·
Rumos
futuros
A principal
prioridade do Irã de agora em diante é a própria sobrevivência da República
Islâmica.
"Ela irá
procurar se reposicionar, reforçar o que sobrou do Eixo da Resistência e
reinvestir nos seus laços regionais, para sobreviver à pressão que
provavelmente será imposta por Trump", explica Vakil.
Dennis Horak passou
três anos no Irã como encarregado de negócios do Canadá. Ele afirma que o país
tem "um regime bastante resiliente, com enormes braços de poder e muitos
mais que eles poderão colocar em ação".
Ele relembra que o
Irã ainda possui forte poder de fogo, que poderá ser utilizado contra países
árabes da região do Golfo Pérsico, no caso de um confronto com Israel. Horak
rejeita a visão de que o Irã seria um tigre de papel inofensivo.
Mas o país se
enfraqueceu profundamente no cenário internacional, com um imprevisível Donald
Trump prestes a assumir a presidência dos Estados Unidos e depois que Israel
demonstrou sua capacidade de abater os inimigos.
"O Irã
certamente irá reavaliar sua doutrina de defesa, que dependia principalmente do
Eixo da Resistência", afirma Vakil. "O país também irá analisar seu
programa nuclear e tentar decidir se é necessário maior investimento para
fornecer mais segurança ao regime."
·
Potencial
nuclear
O Irã insiste que
seu programa nuclear é totalmente pacífico. Mas ele avançou consideravelmente,
depois que Donald Trump abandonou um acordo cuidadosamente negociado em 2015,
que limitava suas atividades nucleares em troca da suspensão de parte das
sanções econômicas.
Segundo o acordo, o
Irã foi autorizado a enriquecer urânio até 3,67% de pureza. O urânio com baixo
enriquecimento pode ser usado para produzir combustível para usinas nucleares
comerciais.
A Agência
Internacional de Energia Atômica (AIEA), órgão fiscalizador da ONU, afirma que
o Irã aumentou significativamente sua taxa de enriquecimento de urânio para
60%.
O Irã declarou que
tomou esta medida em retaliação às sanções retomadas por Trump, que
permaneceram em vigor durante o governo Biden, que tentou fazer reviver o
acordo e fracassou.
O urânio em grau de
armamento, necessário para produzir bombas nucleares, é enriquecido em pelo
menos 90%.
O diretor-geral da
AIEA, Rafael Grossi, indicou que as ações do Irã podem ser uma resposta às
adversidades sofridas pelo país na região.
"É, realmente,
um quadro preocupante", segundo a especialista em proliferação nuclear
Darya Dolzikova, do think tank Royal United Services Institute. "O
programa nuclear se encontra em um ponto totalmente diferente de onde estava em
2015."
Estima-se que o
Irã, agora, possa enriquecer urânio suficiente para produzir uma arma em cerca
de uma semana, se decidir pela sua produção. Mas também precisaria construir
uma ogiva e um sistema de disparo, o que os especialistas afirmam que levaria
meses ou talvez até um ano.
"Não sabemos o
quanto eles estão próximos de uma arma nuclear que possa ser disparada",
afirma Dolzikova. "Mas o Irã adquiriu muito conhecimento, o que será muito
difícil reverter."
Os países do
Ocidente estão alarmados.
"É claro que
Trump irá tentar impor novamente sua estratégia de 'pressão máxima' contra o
Irã", segundo o pesquisador Raz Zimmt, do Instituto Israelense de Estudos
de Segurança Nacional e da Universidade de Tel Aviv, em Israel.
"Mas acho que
ele também irá tentar levar o Irã a retomar negociações, tentando convencer o
país a reverter suas capacidades nucleares", afirma ele.
Apesar do desejo
declarado do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, de mudar o regime
iraniano, Zimmt acredita que o país dará tempo ao tempo, para ver o que Donald
Trump irá fazer e como o Irã vai reagir.
É improvável que o
Irã deseje provocar um confronto em larga escala.
"Acho que
Donald Trump, como homem de negócios, irá tentar convencer o Irã a fazer um
acordo", afirma o professor de ciências políticas Nasser Hadian, da
Universidade de Teerã, no Irã. "Se isso não acontecer, ele partirá para a
pressão máxima, tentando trazer o país para a mesa de negociações."
Hadian acredita que
o acordo é mais provável do que o conflito, mas ele ressalta: "Existe a
possibilidade de que, se ele [Trump] adotar a pressão máxima, tudo possa dar
errado e possamos chegar a uma guerra que nenhum dos lados deseja."
·
'Fúria
latente generalizada'
O Irã também
enfrenta uma série de dificuldades domésticas, enquanto se prepara para a
sucessão do seu líder supremo.
"Khamenei vai
dormir preocupado com seu legado e com a transição", afirma Sanam Vakil.
"Ele está tentando deixar o Irã em posição estável."
O regime foi
gravemente abalado pelos protestos nacionais de 2022, que se seguiram à morte
da jovem Mahsa Amini. Ela foi acusada de não vestir o hijab corretamente.
O levante
questionou a legitimidade das autoridades clericais e foi brutalmente esmagado.
Existe ainda uma
fúria latente generalizada contra um regime que investiu recursos em conflitos
no exterior, enquanto muitos iranianos enfrentam o desemprego e a alta da
inflação.
A geração de
iranianos mais jovens, particularmente, está cada vez mais distante da
Revolução Islâmica. Muitos deles se irritam com as restrições sociais impostas
pelo regime.
Mulheres continuam
desafiando o regime todos os dias, arriscando-se a ir para a prisão por saírem
sem os cabelos cobertos.
Mas os observadores
indicam que isso não significa que haverá um colapso do regime, similar ao que
aconteceu na Síria.
"Não acho que
o povo iraniano vá se levantar novamente porque o Irã perdeu o seu império, que
também era muito impopular", segundo James Jeffrey.
Dennis Horak
acredita que a tolerância aos dissidentes irá diminuir ainda mais, à medida que
o país tentar garantir sua segurança interna.
Uma nova lei,
planejada há muito tempo, aumenta as punições para as mulheres que não usarem o
hijab. Ela deve entrar em vigor em breve, mas ele não acredita que o regime
esteja em risco no momento.
"Milhões de
iranianos não apoiam o regime, mas milhões ainda o aprovam", afirma Horak.
"Não acho que ele esteja em risco de cair em curto prazo."
Mas, enquanto o
regime enfrenta a irritação dentro das suas fronteiras, a perda da sua base na
Síria, depois de tantos outros golpes à sua influência regional, dificultou
muito o trabalho dos governantes iranianos.
¨
Em 1º pronunciamento após queda, Assad diz que foi
forçado a deixar a Síria
O ex-ditador Bashar al-Assad afirmou
nesta segunda-feira (16) que foi forçado a deixar a Síria em meio a um "intenso" ataque de drones dos rebeldes.
Esta foi a primeira manifestação após a queda de seu governo, no início do mês.
"A minha partida da Síria não foi planejada
nem ocorreu nas horas finais das batalhas, como alguns afirmaram. Pelo
contrário, permaneci em Damasco, cumprindo minhas obrigações até as primeiras
horas de 8 de dezembro", disse Assad.
"Conforme as forças terroristas se infiltravam
em Damasco, mudei-me para Latakia em coordenação com nossos aliados russos para
supervisionar as operações de combate. Ao chegar à base aérea [russa] de
Hmeimim naquela manhã, ficou claro que nossas forças haviam se retirado
completamente de todas as linhas de batalha e que as últimas posições haviam
caído", declarou.
O governo de Assad, que estava havia 24 anos no
poder, caiu no último dia 8, quando rebeldes do grupo Hayat Tahrir al-Sham
(HTS) tomaram a capital Damasco. O ditador deixou o país em um avião russo e, segundo a Rússia,
instruiu transição pacífica de poder. (Leia mais abaixo)
Assad afirmou ainda que "em nenhum momento
considerou renunciar ou buscar refúgio" durante a ofensiva rebelde, e
"nem tal proposta foi feita por qualquer indivíduo ou parte".
No entanto, o ex-ditador afirmou que quando chegou
à base russa de Hmeimm percebeu "uma deterioração contínua da situação no
campo de batalha", em que a própria base foi alvo de "intensos"
ataques de drones.
Diante desse cenário e sem meios
viáveis de sair da base, Moscou solicitou que o comando da base militar
organizasse sua evacuação imediata para a Rússia na noite de domingo (8),
segundo Assad. Ele e sua família receberam asilo político, segundo o Kremlin.
O ex-ditador também afirmou que a Síria "caiu
nas mãos do terrorismo" e que não havia se manifestado sobre o ocorrido
até agora por conta de tentativas fracassadas de publicação do pronunciamento
em veículos da mídia internacional. Esse atraso e também o "sumiço" de Assad durante as últimas horas de seu
governo foram atribuídos por ele a um "apagão
total nas comunicações por razão de segurança".
·
Queda da ditadura Assad
A queda do governo na Síria ocorreu cerca de dez
dias após o início de uma ofensiva-surpresa do grupo rebelde HTS que começou em Aleppo, no
norte do país, e rumou sul em direção à capital Damasco, tomando diversas cidades-chave sírias pelo caminho, como Hama e Homs.
A ofensiva rompeu uma paralisia na guerra civil na
Síria, que era travada desde 2011 entre grupos rebeldes e o Exército de Assad.
Nos últimos quatro anos, a guerra parecia estar adormecida.
Após um período sangrento de confrontos, que
deixaram cerca de 500 mil mortos e causaram um enorme êxodo de sírios, o
ditador conseguiu manter o controle sobre a maior parte do território graças ao
suporte da Rússia, do Irã e da milícia libanesa Hezbollah.
Desde então, o ditador se mantinha no poder com
apoio militar de aliados como a Rússia e o Irã. No entanto, agora a Rússia está
em guerra com a Ucrânia, e o Irã vive um conflito com Israel. O Hezbollah, por
sua vez, perdeu seus principais comandantes neste ano, mortos em ataques
israelenses.
Para os analistas, essa situação faz com que nem
Putin nem o regime iraniano estejam dispostos a entrar de cabeça em mais uma
guerra.
Um porta-voz do governo da Ucrânia disse que a
escalada do conflito na Síria mostra que a Rússia não consegue lutar em duas
guerras ao mesmo tempo.
Informações publicadas no sábado indicam que o
Hezbollah e o regime iraniano estão retirando tropas que mantêm na Síria.
O cientista político Guilherme Casarões, da
Fundação Getúlio Vargas, diz que não é uma coincidência a ofensiva ter sido
lançada agora.
"Aqueles que eram os três principais aliados
do governo Assad, Hezbollah, Irã e Rússia, estão meio que fora desse
envolvimento direto com o conflito, o que abriu uma oportunidade para que os
rebeldes tentassem retomar certas posições estratégicas dentro do país. Aleppo,
sendo a segunda maior cidade da Síria, é o primeiro destino que eles
ocuparam."
Segundo o professor, o acirramento do conflito pode
ter consequências em todo o Oriente Médio. Para ele, a queda de Assad pode
criar um vácuo de poder e escalar ainda mais as guerras que envolvem Israel,
Hamas, Hezbollah e Irã.
Fonte: BBC News
Mundo/g1
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