terça-feira, 17 de dezembro de 2024

O que Irã vai fazer agora que seu 'Eixo da Resistência' foi destruído?

Em meio ao vidro quebrado e às bandeiras pisoteadas, cartazes do líder supremo do Irã, o aiatolá Ali Khamenei, permanecem rasgados no chão da Embaixada iraniana em Damasco, capital da Síria.

Lá estão também fotografias rasgadas do antigo líder do movimento Hezbollah, Hassan Nasrallah (1960-2024), morto em um ataque aéreo israelense em Beirute, no Líbano, no mês de setembro.

No lado de fora, os ornamentados ladrilhos azul-turquesa da fachada da Embaixada estão intactos. Mas existe uma enorme imagem deformada do ex-comandante da Guarda Revolucionária do Irã, Qasem Soleimani (1957-2020) — que detinha enorme influência no país, até ser morto por ordem de Donald Trump durante seu primeiro mandato na presidência americana.

Esta imagem é mais um lembrete da série de ataques sofridos pelo Irã, que culminaram no dia 8 de dezembro, com a queda de um aliado importante: o presidente da Síria, Bashar al-Assad.

Enquanto a República Islâmica trata de suas feridas e se prepara para um novo mandato de Trump, será que ela irá decidir por uma abordagem mais linha-dura? Ou irá retomar suas negociações com o Ocidente?

·        E até onde vai a estabilidade do regime iraniano, atualmente?

No seu primeiro discurso após a derrubada de Assad, Khamenei manteve uma expressão grave, frente à sua derrota estratégica. Agora com 85 anos de idade, ele enfrenta o iminente desafio da sua sucessão, depois de permanecer no poder como a autoridade máxima do país desde 1989.

"O Irã é forte e poderoso — e irá se tornar ainda mais forte", afirmou ele.

Khamenei insiste que a aliança liderada pelo Irã no Oriente Médio — que inclui o Hamas, o Hezbollah, os houthis no Iêmen e as milícias xiitas iraquianas — é o "escopo da resistência" contra Israel e também só irá se fortalecer.

"Quanto mais pressão vocês fizerem, mais se fortalece a resistência", prosseguiu ele. "Quanto mais crimes vocês cometerem, mais determinada ela irá ficar. Quanto mais vocês lutarem contra ela, mais ela irá se ampliar."

Mas a onda de choque regional após os massacres cometidos pelo Hamas em Israel no dia 7 de outubro de 2023 — que foram aplaudidos, se não apoiados, pelo Irã — fizeram o regime cambalear.

A retaliação de Israel contra seus inimigos criou um novo cenário no Oriente Médio e deixou o Irã na defensiva.

"Todas as peças caíram", afirma James Jeffrey, ex-diplomata americano e ex-conselheiro adjunto de segurança nacional dos Estados Unidos, que hoje trabalha no think tank (centro de pesquisa e debates) suprapartidário Wilson Center.

"O Eixo da Resistência iraniano foi esmagado por Israel e, agora, destruído pelos eventos na Síria", prossegue ele. "O Irã não tem nenhum substituto real na região, exceto pelos houthis no Iêmen."

O Irã ainda apoia milícias poderosas no vizinho Iraque. Mas, segundo Jeffrey, "este é o colapso totalmente sem precedentes de uma hegemonia regional".

A última aparição pública de Assad ocorreu em uma reunião com o ministro de Relações Exteriores do Irã, em 1º de dezembro. Na ocasião, ele prometeu "esmagar" os rebeldes que avançavam sobre a capital síria. O Kremlin declarou que ele, agora, está na Rússia, depois de fugir do país.

O embaixador iraniano na Síria, Hossein Akbari, descreveu Assad como a "linha de frente do Eixo da Resistência". Mas, quando chegou o fim para Bashar al-Assad, o Irã, enfraquecido e abalado pelo súbito colapso das suas forças, não teve capacidade nem disposição para defendê-lo.

Em questão de dias, caiu o único outro Estado do "Eixo da Resistência", que era sua peça central.

·        A construção da rede

O Irã passou décadas construindo sua rede de milícias, para manter sua influência na região e dissuadir possíveis ataques de Israel. O início do processo data da Revolução Islâmica, em 1979.

Na guerra que se seguiu contra o Iraque, o então presidente sírio Hafez al-Assad (1930-2000), pai de Bashar, apoiou o Irã. A aliança entre os clérigos xiitas no Irã e os Assads (da minoria alauíta, ramo do xiismo) ajudou a estabelecer a base de poder do Irã em um Oriente Médio predominantemente sunita.

A Síria também foi uma rota fundamental para que o Irã pudesse abastecer seu aliado no Líbano, o Hezbollah, e outros grupos armados regionais.

O Irã já saiu em socorro de Assad anteriormente. Quando ele parecia vulnerável, após um levante popular em 2011 se transformar em uma guerra civil, Teerã forneceu jatos, combustível e armas. Mais de 2 mil soldados e generais iranianos foram mortos enquanto trabalhavam ostensivamente como "consultores militares".

"Sabemos que o Irã gastou de US$ 30 bilhões a US$ 50 bilhões [cerca de R$ 180 bilhões a R$ 300 bilhões] na Síria" desde perto de 2011, segundo Sanam Vakil, diretora do programa para o Oriente Médio e norte da África do think tank Chatham House.

Mas, agora, a rota que o Irã poderia tentar usar no futuro para reabastecer o Hezbollah no Líbano — e, dali, possivelmente outros grupos — foi cortada.

Para Vakil, "o Eixo da Resistência foi uma rede oportunista, projetada para fornecer profundidade estratégica ao Irã e proteger o país contra ataques diretos. Esta estratégia claramente fracassou."

O cálculo do Irã sobre o que fazer em seguida será influenciado não só pela queda de Assad, mas também pelo fato de que o seu próprio exército se saiu muito pior do que Israel, nos primeiros confrontos diretos entre os dois países, ocorridos este ano.

A maior parte dos mísseis balísticos lançados pelo Irã contra Israel em outubro foram interceptados, embora alguns deles tenham causado danos a diversas bases aéreas. Já os ataques israelenses causaram sérios danos às defesas aéreas do Irã e à sua capacidade de produção de mísseis.

"A ameaça dos mísseis acabou sendo um tigre de papel", segundo Jeffrey.

E o assassinato em Teerã do líder do Hamas, Ismail Haniyeh (1962-2024), ocorrido em julho, foi outro profundo constrangimento para o Irã.

·        Rumos futuros

A principal prioridade do Irã de agora em diante é a própria sobrevivência da República Islâmica.

"Ela irá procurar se reposicionar, reforçar o que sobrou do Eixo da Resistência e reinvestir nos seus laços regionais, para sobreviver à pressão que provavelmente será imposta por Trump", explica Vakil.

Dennis Horak passou três anos no Irã como encarregado de negócios do Canadá. Ele afirma que o país tem "um regime bastante resiliente, com enormes braços de poder e muitos mais que eles poderão colocar em ação".

Ele relembra que o Irã ainda possui forte poder de fogo, que poderá ser utilizado contra países árabes da região do Golfo Pérsico, no caso de um confronto com Israel. Horak rejeita a visão de que o Irã seria um tigre de papel inofensivo.

Mas o país se enfraqueceu profundamente no cenário internacional, com um imprevisível Donald Trump prestes a assumir a presidência dos Estados Unidos e depois que Israel demonstrou sua capacidade de abater os inimigos.

"O Irã certamente irá reavaliar sua doutrina de defesa, que dependia principalmente do Eixo da Resistência", afirma Vakil. "O país também irá analisar seu programa nuclear e tentar decidir se é necessário maior investimento para fornecer mais segurança ao regime."

·        Potencial nuclear

O Irã insiste que seu programa nuclear é totalmente pacífico. Mas ele avançou consideravelmente, depois que Donald Trump abandonou um acordo cuidadosamente negociado em 2015, que limitava suas atividades nucleares em troca da suspensão de parte das sanções econômicas.

Segundo o acordo, o Irã foi autorizado a enriquecer urânio até 3,67% de pureza. O urânio com baixo enriquecimento pode ser usado para produzir combustível para usinas nucleares comerciais.

A Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), órgão fiscalizador da ONU, afirma que o Irã aumentou significativamente sua taxa de enriquecimento de urânio para 60%.

O Irã declarou que tomou esta medida em retaliação às sanções retomadas por Trump, que permaneceram em vigor durante o governo Biden, que tentou fazer reviver o acordo e fracassou.

O urânio em grau de armamento, necessário para produzir bombas nucleares, é enriquecido em pelo menos 90%.

O diretor-geral da AIEA, Rafael Grossi, indicou que as ações do Irã podem ser uma resposta às adversidades sofridas pelo país na região.

"É, realmente, um quadro preocupante", segundo a especialista em proliferação nuclear Darya Dolzikova, do think tank Royal United Services Institute. "O programa nuclear se encontra em um ponto totalmente diferente de onde estava em 2015."

Estima-se que o Irã, agora, possa enriquecer urânio suficiente para produzir uma arma em cerca de uma semana, se decidir pela sua produção. Mas também precisaria construir uma ogiva e um sistema de disparo, o que os especialistas afirmam que levaria meses ou talvez até um ano.

"Não sabemos o quanto eles estão próximos de uma arma nuclear que possa ser disparada", afirma Dolzikova. "Mas o Irã adquiriu muito conhecimento, o que será muito difícil reverter."

Os países do Ocidente estão alarmados.

"É claro que Trump irá tentar impor novamente sua estratégia de 'pressão máxima' contra o Irã", segundo o pesquisador Raz Zimmt, do Instituto Israelense de Estudos de Segurança Nacional e da Universidade de Tel Aviv, em Israel.

"Mas acho que ele também irá tentar levar o Irã a retomar negociações, tentando convencer o país a reverter suas capacidades nucleares", afirma ele.

Apesar do desejo declarado do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, de mudar o regime iraniano, Zimmt acredita que o país dará tempo ao tempo, para ver o que Donald Trump irá fazer e como o Irã vai reagir.

É improvável que o Irã deseje provocar um confronto em larga escala.

"Acho que Donald Trump, como homem de negócios, irá tentar convencer o Irã a fazer um acordo", afirma o professor de ciências políticas Nasser Hadian, da Universidade de Teerã, no Irã. "Se isso não acontecer, ele partirá para a pressão máxima, tentando trazer o país para a mesa de negociações."

Hadian acredita que o acordo é mais provável do que o conflito, mas ele ressalta: "Existe a possibilidade de que, se ele [Trump] adotar a pressão máxima, tudo possa dar errado e possamos chegar a uma guerra que nenhum dos lados deseja."

·        'Fúria latente generalizada'

O Irã também enfrenta uma série de dificuldades domésticas, enquanto se prepara para a sucessão do seu líder supremo.

"Khamenei vai dormir preocupado com seu legado e com a transição", afirma Sanam Vakil. "Ele está tentando deixar o Irã em posição estável."

O regime foi gravemente abalado pelos protestos nacionais de 2022, que se seguiram à morte da jovem Mahsa Amini. Ela foi acusada de não vestir o hijab corretamente.

O levante questionou a legitimidade das autoridades clericais e foi brutalmente esmagado.

Existe ainda uma fúria latente generalizada contra um regime que investiu recursos em conflitos no exterior, enquanto muitos iranianos enfrentam o desemprego e a alta da inflação.

A geração de iranianos mais jovens, particularmente, está cada vez mais distante da Revolução Islâmica. Muitos deles se irritam com as restrições sociais impostas pelo regime.

Mulheres continuam desafiando o regime todos os dias, arriscando-se a ir para a prisão por saírem sem os cabelos cobertos.

Mas os observadores indicam que isso não significa que haverá um colapso do regime, similar ao que aconteceu na Síria.

"Não acho que o povo iraniano vá se levantar novamente porque o Irã perdeu o seu império, que também era muito impopular", segundo James Jeffrey.

Dennis Horak acredita que a tolerância aos dissidentes irá diminuir ainda mais, à medida que o país tentar garantir sua segurança interna.

Uma nova lei, planejada há muito tempo, aumenta as punições para as mulheres que não usarem o hijab. Ela deve entrar em vigor em breve, mas ele não acredita que o regime esteja em risco no momento.

"Milhões de iranianos não apoiam o regime, mas milhões ainda o aprovam", afirma Horak. "Não acho que ele esteja em risco de cair em curto prazo."

Mas, enquanto o regime enfrenta a irritação dentro das suas fronteiras, a perda da sua base na Síria, depois de tantos outros golpes à sua influência regional, dificultou muito o trabalho dos governantes iranianos.

 

¨      Em 1º pronunciamento após queda, Assad diz que foi forçado a deixar a Síria

O ex-ditador Bashar al-Assad afirmou nesta segunda-feira (16) que foi forçado a deixar a Síria em meio a um "intenso" ataque de drones dos rebeldes. Esta foi a primeira manifestação após a queda de seu governo, no início do mês.

"A minha partida da Síria não foi planejada nem ocorreu nas horas finais das batalhas, como alguns afirmaram. Pelo contrário, permaneci em Damasco, cumprindo minhas obrigações até as primeiras horas de 8 de dezembro", disse Assad.

"Conforme as forças terroristas se infiltravam em Damasco, mudei-me para Latakia em coordenação com nossos aliados russos para supervisionar as operações de combate. Ao chegar à base aérea [russa] de Hmeimim naquela manhã, ficou claro que nossas forças haviam se retirado completamente de todas as linhas de batalha e que as últimas posições haviam caído", declarou.

O governo de Assad, que estava havia 24 anos no poder, caiu no último dia 8, quando rebeldes do grupo Hayat Tahrir al-Sham (HTS) tomaram a capital Damasco. O ditador deixou o país em um avião russo e, segundo a Rússia, instruiu transição pacífica de poder. (Leia mais abaixo)

Assad afirmou ainda que "em nenhum momento considerou renunciar ou buscar refúgio" durante a ofensiva rebelde, e "nem tal proposta foi feita por qualquer indivíduo ou parte".

No entanto, o ex-ditador afirmou que quando chegou à base russa de Hmeimm percebeu "uma deterioração contínua da situação no campo de batalha", em que a própria base foi alvo de "intensos" ataques de drones.

Diante desse cenário e sem meios viáveis de sair da base, Moscou solicitou que o comando da base militar organizasse sua evacuação imediata para a Rússia na noite de domingo (8), segundo Assad. Ele e sua família receberam asilo político, segundo o Kremlin.

O ex-ditador também afirmou que a Síria "caiu nas mãos do terrorismo" e que não havia se manifestado sobre o ocorrido até agora por conta de tentativas fracassadas de publicação do pronunciamento em veículos da mídia internacional. Esse atraso e também o "sumiço" de Assad durante as últimas horas de seu governo foram atribuídos por ele a um "apagão total nas comunicações por razão de segurança".

·        Queda da ditadura Assad

A queda do governo na Síria ocorreu cerca de dez dias após o início de uma ofensiva-surpresa do grupo rebelde HTS que começou em Aleppo, no norte do país, e rumou sul em direção à capital Damasco, tomando diversas cidades-chave sírias pelo caminho, como Hama e Homs.

A ofensiva rompeu uma paralisia na guerra civil na Síria, que era travada desde 2011 entre grupos rebeldes e o Exército de Assad. Nos últimos quatro anos, a guerra parecia estar adormecida.

Após um período sangrento de confrontos, que deixaram cerca de 500 mil mortos e causaram um enorme êxodo de sírios, o ditador conseguiu manter o controle sobre a maior parte do território graças ao suporte da Rússia, do Irã e da milícia libanesa Hezbollah.

Desde então, o ditador se mantinha no poder com apoio militar de aliados como a Rússia e o Irã. No entanto, agora a Rússia está em guerra com a Ucrânia, e o Irã vive um conflito com Israel. O Hezbollah, por sua vez, perdeu seus principais comandantes neste ano, mortos em ataques israelenses.

Para os analistas, essa situação faz com que nem Putin nem o regime iraniano estejam dispostos a entrar de cabeça em mais uma guerra.

Um porta-voz do governo da Ucrânia disse que a escalada do conflito na Síria mostra que a Rússia não consegue lutar em duas guerras ao mesmo tempo.

Informações publicadas no sábado indicam que o Hezbollah e o regime iraniano estão retirando tropas que mantêm na Síria.

O cientista político Guilherme Casarões, da Fundação Getúlio Vargas, diz que não é uma coincidência a ofensiva ter sido lançada agora.

"Aqueles que eram os três principais aliados do governo Assad, Hezbollah, Irã e Rússia, estão meio que fora desse envolvimento direto com o conflito, o que abriu uma oportunidade para que os rebeldes tentassem retomar certas posições estratégicas dentro do país. Aleppo, sendo a segunda maior cidade da Síria, é o primeiro destino que eles ocuparam."

Segundo o professor, o acirramento do conflito pode ter consequências em todo o Oriente Médio. Para ele, a queda de Assad pode criar um vácuo de poder e escalar ainda mais as guerras que envolvem Israel, Hamas, Hezbollah e Irã.

 

Fonte: BBC News Mundo/g1

 

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