HEROÍNA DA
INDEPENDÊNCIA DA BAHIA: A história de como Maria Felipa ganhou um rosto
O
rosto é a primeira apresentação de alguém, mas são os olhos, se mais redondos
ou caídos, por exemplo, que podem transmitir altivez ou ingenuidade. Por isso,
quando Filomena Orge analisou o olho esquerdo que desenhou em um papel
descartou o rascunho e disse: “Essa não é Maria Felipa”. Os olhos não pareciam
os de uma guerreira.
A
perita criminal e desenhista Filomena Orge estava empenhada em dar um rosto a
Maria Felipa, cuja imagem, por mais de um século, só existia na memória oral de
moradores da Ilha de Itaparica. Há dois meses, ela estudava a mulher que é tida
como uma das heroínas da Independência na Bahia por parte dos historiadores e
baianos.
Até
aquele junho de 2004, quando recebeu o convite de uma faculdade privada para um
desenho artístico do rosto e do busto de Maria Felipa, Filomena nunca tinha
ouvido falar nessa personagem histórica. “Me surpreendi quando recebi o
convite”, lembra.
Era
esperado que se sentisse assim. Como perita, trabalhava com retratos falados de
criminosos, a partir do depoimento de vítimas, não de personagens históricos.
O
início do trabalho da desenhista, graduada em Belas Artes pela Universidade
Federal da Bahia (Ufba) e especialista em desenho de faces, convergiu com o
período em que Maria Felipa começava a ganhar destaque nas narrativas sobre o 2
de Julho.
No
festejo da Independência daquele 2004, Felipa apareceu representada pela
primeira vez no cortejo que vai da Lapinha até o Campo Grande, por iniciativa
do Conselho da Comunidade Negra da Bahia.
De
acordo com a tradição oral, Maria Felipa se destacou na defesa de Itaparica, em
1823, como parte da Campanha da Independência, que reunia índios, negros livres
e escravizados na luta pela liberdade. Nesse percurso, ela surrou portugueses
com folhas de cansanção. Mas a existência dela não é consenso – mais adiante
nesta reportagem, você entenderá o porquê.
Filomena
leu e ouviu à exaustão os supostos feitos e características de Maria Felipa até
se sentar, em casa, para desenhar o primeiro rosto que descartou no lixo.
Voltou ao papel em seguida e depois de cinco dias, a apagar ali e acrescentar
luzes acolá, surgiu, agora sim, a face da mulher que seria conhecida por Maria
Felipa.
Ela
tinha a maçã do rosto alta, maxilar e queixos marcados e um olhar que parece te
enxergar. Ao ver aqueles olhos, Filomena sentiu verdade, diferentemente da
primeira experiência. "Vi veracidade e possibilidade e comunicação. O
resto veio sem dificuldade”, conta Filomena.
Antes
de entregar o retrato falado final, no entanto, um acidente doméstico quase
jogou fora os dias de trabalho, que pode ser visitado na Casa de Maria Felipa,
no bairro do Curuzu, em Salvador.
• Como foi a pesquisa para desenhar o
rosto de Maria Felipa?
Mulher
negra de origem sudanesa. Natural de Itaparica. Capoeirista. Corpulenta, alta e
forte o suficiente para surrar portugueses. Essas eram algumas das referências
bibliográficas que Filomena recebeu e aprofundaria nos meses de pesquisa.
O
convite para realizar o retrato falado veio da escritora e mestre em Educação
Eny Kleyde Vasconcelos Farias, que só em 2010 publicaria o livro Maria Felipa,
Heroína da Independência da Bahia”.
À
época, Eny era professora da Faculdade Olga Mettig, envolvida em uma pesquisa
sobre a guerreira Felipa, que, até então, não tinha rosto.
O
grupo envolvido no trabalho acadêmico, afinal, não havia encontrado
fotografias, nem pinturas da guerreira, apenas relatos em livros e falas da
memória oral. A fotografia chegou ao Brasil em 1840, 13 anos depois da
Independência na Bahia e restrita à nata da elite econômica.
Um
colega de Filomena da época da Escola de Belas Artes da Ufba quem a indicou
para Eny, que visitou Filomena para explicar melhor o que precisavam e, mais
importante, apresentar Maria Felipa.
O
retrato falado é a imagem de uma pessoa construída a partir da memória de quem
a viu, como vítimas ou testemunhas de um crime. "Você viu alguém e lembra
dela, que sumiu, mas você tem a lembrança. A partir das informações abstratas,
o desenhista cria um rosto", explica Filomena. É um trabalho que combina
técnica e subjetividade.
Técnica
porque os desenhistas seguem métodos para construir um retrato falado, como o
fato de o rosto humano obedecer a distâncias entre o chamado triângulo de
identificação: olhos, nariz e boca. E subjetivo pois são esses profissionais
quem assimilam as informações e ilustram o que lhes dizem, as pessoas ou
livros.
Para
colocar a abstração no papel e dar rosto ao que é memória, o desenhista
primeiro pergunta ao informante as características gerais da pessoa retratada
(como se ela é homem ou mulher, idosa ou jovem), as específicas (a cor do
cabelo, a profundidade dos olhos) e as particularizantes (sinais que
identificam uma pessoa, como deformações).
Na
elaboração de retratos falados de criminosos, o procedimento era mais simples:
ouvir quem precisava ser ouvido e desenhar. Mas para perfilar no papel uma Maria
Felipa havia algumas pedras pelo caminho. A maior delas era o fato de que
ninguém que viu a dita heroína poderia contar a Filomena detalhes do rosto e
corpo dela.
• Esta é Maria Felipa: o que dizem os
livros sobre a heroína
Restavam
à desenhista os livros sobre Maria Felipa, a pesquisa sobre o contexto em que
ela viveu e entrevistas a pessoas que se dizem descendentes dela.
As
obras escritas já apresentavam as características físicas gerais de Felipa. Foi
em um deles, por exemplo, que Filomena descobriu que a retratada era de
linhagem sudanesa (povos da África Ocidental, sem ligação com o Sudão). Ao
consultar outras referências escritas, Filomena descobriu o que isso poderia
significar fisicamente.
Os
sudaneses são descritos como altos e corpulentos, “inclinados a movimentos
revolucionários”, no livro Fluxo e Refluxo, resultado de 20 anos de pesquisa do
etnógrafo francês Pierre Verger sobre o tráfico de escravos do Golfo do Benim
para a Baía de Todos-os-Santos.
Ao
encontrar supostos descendentes de Felipa, Filomena constatou neles algumas
dessas características e acrescentou novas ao repertório de referências. A
testa alta foi um dos elementos físicos acrescidos a esse mosaico.
Para
ver Maria Felipa, Filomena ainda precisava entender o que era ser uma mulher
negra, escravizada liberta, no século 19, na Ilha de Itaparica. "Era
preciso saber como uma mulher negra daquele período estaria vestida, como se
comportava, o que fazia”, conta. A bata e torso combinavam com as informações
disponíveis em museus.
O
trabalho para revelar uma Maria Felipa ao mundo era feito nos momentos de folga
de Filomena. Se tinha intervalos no almoço, sentava para desenhar. O desenho
custou R$ 150 e Filomena cedeu os direitos de imagem. “Pedi o valor que pedia
para qualquer outro desenho [...] No momento que aceitei, sabia que estava
assumindo um compromisso muito sério, uma missão”, afirma.
Filomena
sempre começa seus desenhos pelo olho direito. Se não transmitirem uma
humanidade palpável, apaga tudo ali mesmo. Quando achou ter concluído o retrato
de Maria Felipa, levou-o para que colegas de trabalho vissem e respondessem a
uma pergunta: “O que vocês sentem ao ver esse rosto?”.
Todos
foram unânimes: “uma guerreira”. Ali Filomena teve certeza de que a tarefa
estava cumprida.
No
dia marcado para entregar o desenho, ela decidiu fazer os últimos reparos no
rosto de Felipa. Enquanto preparava o almoço, no entanto, cortou o dedo na
cozinha. Sem se dar conta do volume de sangue que jorrava dele, Filomena viu um
pingo vermelho cair sobre o nariz pronto de Maria Felipa.
"Aí
eu corri, peguei um algodão, tentando sugar aquele sangue, pedindo a Deus. Só
sei que o sangue desapareceu"
Às
13h30, a professora Eny Kleyde chegou à casa da desenhista para buscar o
retrato, protegido sob uma folha de papel manteiga. Quando tirou a capa de
proteção e viu a imagem, ela chorou. “Meu deus, é Maria Felipa”, disse Eny.
• Maria Felipa existiu ou simboliza
mulheres negras na luta por Independência?
Maria
Felipa nasceu escrava, mas conseguiu a liberdade e fez dela a luta da sua vida,
segundo Eny Kleyde Vasconcelos Farias em Maria Felipa, Heroína da Independência
da Bahia. Ela era "alta e cedo aprendeu a trabalhar como marisqueira e
lutar capoeira" e usava bata, saias rodadas, torso e chinelo, mesmo que fosse
para vigiar dia e noite trincheiras de batalhas e "prevenir a chegada do
exército inimigo".
A
primeira vez que Maria Felipa aparece na literatura é no livro A Ilha de
Itaparica: História e Tradição, escrito por Ubaldo Osório Pimentel mais de um
século depois da guerra e publicado em 1953. Pimentel é avô do também escritor
João Ubaldo Ribeiro e deu à filha o nome de Maria Felipa.
Em
2010, quando publicou um livro sobre Felipa, Eny Kleyde se juntou ao catálogo
de referências sobre a dita heroína da Independência.
A
história de Maria Felipa, no entanto, é objeto de divergência entre
historiadores. Principalmente porque a existência dela não está confirmada por
documentos históricos, embora viva na memória oral e seja exaltada na Ilha de
Itaparica.
Há
historiadores que afirmam que Felipa, na verdade, simboliza uma parcela das
pessoas que lutaram pela Independência da Bahia – as mulheres negras. Outros,
como Jaime Nascimento, negam a existência dela.
"Qual
é a prova cabal? Nenhuma. E aí o pessoal foge para a tal da história oral. Eu
sei o que é história oral. Essa conversinha fiada não convence ninguém. Não sou
eu que diz que ela não existiu, quem diz que ela existiu me prova como?"
Para
Jaime, Felipa é uma personagem fictícia de Osório Ribeiro. "Se quiser me
convencer com provas, ok, ou então diga que é como uma questão mítica, como dos
fundadores de Roma (os gêmeos Rômulo e Remo, segundo a lenda, foram
arremessados no rio para que morressem, mas uma loba os alimentou. Rômulo
fundou Roma)”, diz.
A
representação narrativa da participação de mulheres nas lutas pela
independência na Bahia surge nos anos 1920, mas restrita a Joana Angélica e
Maria Quitéria. “Quitéria, apesar de ter lutado e sido condecorada por Dom
Pedro, só teria o nome discutido com mais força 100 anos depois”, afirma a
historiadora Victoria Fares.
Isso
porque a historiografia oficial costumava destacar as figuras masculinas, como
a do Corneteiro Lopes e Madeira de Melo. Para Victoria, o ingresso de mais
mulheres (a maioria, brancas) nas universidades, a partir dos anos 70,
contribuiu para novos trabalhos sobre a participação feminina na luta pela
liberdade na Bahia.
A
partir de 2010, a intensificação das pesquisas sobre gênero e raça, continua a
historiadora, também impactou na diversidade das pesquisas historiográficas:
mulheres e homens negros e indígenas que não viam suas tradições escritas,
passaram a contá-las e reivindicar mais espaço para elas.
"Acredito
que existiu uma Maria Felipa. Mas acredito que existiram diversas e pouco
reconhecidas Marias Felipas que foram essenciais em todo o processo que culmina
no 2 de Julho"
Na
última década, o debate sobre Maria Felipa cresceu a ponto de uma nova imagem
ser associada a ela e figurar em revistas e redes sociais. Na foto, uma mulher
negra, com torso e brinco nas orelhas, olha para câmera fixamente.
"Mas
ela não é Maria Felipa. Esse retrato é de um fotógrafo chamado Alberto Henschel
e é de 1870"
Ícone,
mulher ou a força de uma ideia, Maria Felipa tem um rosto – e ele é de batalha.
Fonte:
Correio
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