Agronegócio e
extrema direita impulsionam máquina de fake news sobre aquecimento global
O
ano era 2016. O mais quente do registro histórico. Preocupado com os impactos
do aquecimento global sobre o cultivo de soja, o então ministro da Agricultura
Blairo Maggi, um dos maiores exportadores do grão, convidou o cientista Carlos
Nobre para conversar com o conselho do grupo Amaggi. O ministro queria que o
pesquisador fizesse uma palestra sobre o que a ciência já sabe sobre os
potenciais danos das mudanças climáticas na produção agrícola, principalmente
na Amazônia.
Nobre,
um dos mais reconhecidos climatologistas do país e um dos maiores especialistas
em Amazônia, se preparou para a missão. Conversou com outros pesquisadores, se
debruçou sobre dezenas de trabalhos que traziam informações sobre a situação,
elaborou a palestra e foi para Cuiabá (MT).
“Os
representantes do conselho eram produtores de soja e estavam todos lá. E eu
apresentei tudo, todos os riscos. Mostrei que as mudanças climáticas podem
tornar toda aquela região sul da Amazônia e norte do Cerrado praticamente
impossível para a manutenção de uma agricultura produtiva por causa do excesso
de calor”, conta.
Nobre
disse aos conselheiros da Amaggi que máximas acima de 40 ºC podem se tornar
comuns naquela região, principalmente no inverno, e também na transição para o
verão, que é quando se planta a soja. “Nessa temperatura, a soja tem baixíssima
produtividade”, disse. E frisou: as mudanças climáticas aceleram muito a
frequência de eventos extremos como secas. Já estamos vendo isso acontecer e
tende a piorar.
Quando
ele encerrou a apresentação e abriu para as perguntas, veio a surpresa. “Porque
várias pessoas levantaram as mãos e todas falaram que não havia problema
nenhum, que a soja aumenta a sua produção com o calor – o que é completamente
falso – e que as mudanças climáticas não estão ocorrendo”, relata.
Meio
chocado, Nobre se lembra de ter olhado para Maggi e vê-lo sem graça com a
situação. Só um tempo depois ele descobriu o motivo da descrença da audiência.
“Todos aqueles produtores de soja tinham recebido antes a visita dos
negacionistas Luiz Carlos Molion e Ricardo Felício.”
Os
nomes citados por Nobre são de dois expoentes no Brasil de um grupo pequeno,
mas estridente, de pessoas ligadas à academia que negam que o planeta esteja
aquecendo ou que atividades humanas seriam capazes de provocar isso.
Questionam, ainda, o papel da Amazônia na distribuição de chuvas no país,
a dimensão das queimadas e dizem que o desmatamento não afeta o clima. Não é de
hoje que eles se contrapõem ao consenso científico, mas por décadas tiveram
poucas aparições com mais destaque. Seu alcance mudou de patamar, porém, nos
últimos anos.
Além
de fazerem palestras pelo país
a convite de associações do setor espalhando o mito de que o aquecimento global
não existe –
como no evento bancado pela Aprosoja-MT que antecedeu a fala de Nobre em 2016
–, eles foram alçados à categoria de especialistas por congressistas da bancada
ruralista no Congresso. Conquistaram espaço em canais não só do agronegócio,
como Canal Rural, Notícias Agrícolas, Terraviva e AgroMais, ambos da Band, mas
também da extrema direita, como Brasil Paralelo e Revista Oeste.
O
negacionismo climático foi incorporado na máquina de desinformação da extrema
direita e se expandiu no meio rural. A percepção de cientistas e pesquisadores
ouvidos pela reportagem é que uma parte do agronegócio – notadamente quem
está na ponta: os produtores e suas associações – se tornou refratária à
discussão séria sobre o clima. Virou terreno fértil para o negacionismo e a
desinformação ambiental.
Em
condição de anonimato, uma liderança do agronegócio afirmou à Agência Pública que o discurso negacionista “impregnou igual mantra”
no setor, principalmente entre produtores rurais. “Produtores e lideranças de
produtores. A Aprosoja não consome ciência, por exemplo. Já a indústria está
mais alinhada com tendências globais”, disse.
Ele
aponta que isso tem reflexo direto na representação política do setor,
especificamente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). Na opinião dessa
liderança, a FPA atua hoje sem embasamento técnico. “Como a gente ganha tudo
[na arena do Congresso], não precisa de embasamento técnico. Como tem muita
força política, o setor está encostado. Ninguém está de fato fazendo política
pública. A representação ficou só para o lobby. A única ‘ciência’ que eles usam
é a que serve para o lobby. Já quem quer fazer política pública e se baseia em
ciência é visto de modo negativo, como ‘ambientalista’. E, enquanto o setor não
acredita, ele não muda, não se adapta e ignora outras possibilidades.”
·
Rastreando a desinformação
Por
dois meses, a Pública, com
o apoio do Laboratório de Estudos de Internet e Mídias Sociais (NetLab) da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) , analisou anúncios na Meta
(Facebook e Instagram), vídeos no YouTube e outros conteúdos publicados em
redes sociais e em sites noticiosos ou não, com o objetivo de rastrear quem
está por trás da disseminação do negacionismo climático e da desinformação
ambiental no país.
As
fontes primárias da desinformação são basicamente um trio formado pelas duas
figuras citadas por Nobre – Ricardo Felício, professor de geografia da
Universidade de São Paulo (USP), e Luiz Carlos Molion, meteorologista e
professor aposentado da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) – e pelo
agrônomo Evaristo de Miranda, recém-aposentado da Embrapa, que se tornou guru
ambiental do agronegócio e de Jair Bolsonaro.
O
palco deles, além das associações do agronegócio que os convidam para
palestras, são os canais digitais ligados ao setor e à extrema direita. Miranda
e Felício, por exemplo, são colunistas fixos e fontes frequentes de reportagens
da Revista Oeste, publicação lançada em março de 2020 que se define
como “a primeira plataforma de conteúdo cem por cento comprometida com a defesa
do capitalismo e do livre mercado”.
Molion
é colaborador frequente do Notícias Agrícolas, que se descreve como “um dos
mais importantes meios de comunicação do agronegócio brasileiro”, com
“comunicação direta com os produtores rurais”. O site diz criar “um espaço com
ampla diversidade de opiniões e informações”, mas, conforme pesquisa da Pública na busca avançada do
Google, enquanto um negacionista como Molion tem de fato amplo espaço – foram
encontradas 250 menções ao nome dele –, além de outras reportagens com
questionamentos ao aquecimento global, há pouco espaço para pesquisadores que
levam o problema a sério. São só 29 menções a Nobre, por exemplo, apesar de no
campo científico a situação ser inversa: Molion tem 46 artigos publicados em
periódicos, segundo seu currículo Lattes, enquanto Nobre contabiliza 190.
Foi
no Notícias Agrícolas que foi publicada, em 2019, logo no início do governo
Bolsonaro, uma carta que Molion,
Felício e outros negacionistas – alguns sem nenhum vínculo com ciência –
enviaram para o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, com cópia para
vários outros membros do governo. Conforme o resumo feito pelo site, trata-se
de um documento “contestando a posição de ambientalistas que defendem
restrições na economia no sentido de minimizar os efeitos de ‘mudanças
climáticas’”.
Molion
e Miranda aparecem com frequência no Canal Rural. Em maio, o agrônomo foi o
entrevistado, por cerca de uma hora, do PodPlantar, um programa de videocasts
da empresa Sementes Jotabasso em parceria com o Rural, durante a Agrishow, a
maior feira do agronegócio que ocorre todos os anos em Ribeirão Preto. Este
ano, o evento foi símbolo do entrevero
entre o setor e o governo Lula.
Miranda
também é colunista de canais especializados da Band para o setor – o Terraviva
e o AgroMais –, além de ser frequentemente entrevistado pela Band News TV. Já
Felício é figurinha constante em programas de direita no YouTube. Uma
entrevista que deu para o programa Conversa Paralela, da produtora Brasil
Paralelo, em agosto do ano passado, para dizer que o “aquecimento global é uma
farsa”, já alcançou mais de 1,1 milhão de visualizações.
Produtora
de documentários e programas conservadores, a Brasil Paralelo se tornou um dos
principais veículos de desinformação do país, na opinião de especialistas que
investigam o assunto. No campo socioambiental, um dos vídeos considerados mais
danosos é o “Cortina de Fumaça”, de 2021, que nega o
desmatamento da Amazônia, fala que há “muito alarde” sobre queimadas e que “não
existe uma floresta sendo destruída, mas uma floresta sendo preservada”.
·
“Infodemia socioambiental”
Somente
no período entre 31 de março e 27 de junho deste ano, a reportagem contabilizou
31 aparições dos três cientistas negacionistas na mídia – em colunas semanais e
entrevistas – e em eventos presenciais. Mas a disseminação desse conteúdo vai
muito além deles e foi incorporada por deputados e senadores da FPA, além de
influenciadores ligados ao agro e à extrema direita.
É
um comportamento que foi apelidado pela equipe do NetLab, liderada pela
pesquisadora Marie Santini, de “infodemia socioambiental”, em que a
desinformação ambiental se tornou “uma das pautas centrais na propaganda
política da extrema direita brasileira, servindo de argumento para o desmonte
da proteção do meio ambiente e o avanço sistemático de atividades extrativistas
no Brasil”. Essa explicação está em um relatório lançado
pelo grupo no começo do ano, após análise do debate socioambiental entre janeiro
de 2021 e novembro de 2022, os dois últimos anos da gestão Bolsonaro.
Em
geral, os pesquisadores captaram políticos e influenciadores endossando teorias
negacionistas e defendendo ações do governo nas questões ambientais. No período
eleitoral, disputas sobre os números do desmatamento da Amazônia e propaganda
positiva sobre a atuação do agronegócio brasileiro foram predominantes.
A
pedido da Pública, o NetLab
complementou o levantamento, incluindo postagens dos primeiros meses deste ano.
Sob o governo Lula, o conteúdo dos anúncios na Meta mudou um pouco. Passaram a
focar, por exemplo, em fatos políticos em debate, como a CPI do MST, ou a
discussão sobre o marco temporal para terras indígenas. Foram detectados vários
anúncios da FPA, pagos pelo Instituto Pensar Agro, com desinformações sobre o
agro, por exemplo, além de críticas à política ambiental do novo governo.
Santini
e os colegas Débora Gomes Salles e Carlos Eduardo Barros deram atenção especial
à desinformação veiculada em anúncios pagos, que alcançam “de forma sistemática
e segmentada, os públicos mais vulneráveis nessas plataformas”.
Por
conta da falta de
regulamentação jurídica, a transparência desse tipo de negócio ainda é baixa
no país. Somente Google e Meta possuem acervos públicos que indicam os anúncios
veiculados no Brasil, mas “ainda com graves lacunas na transparência de dados
que permitam responsabilizar quem publica conteúdos falsos e, muitas vezes,
criminosos”, aponta o grupo. O YouTube, por exemplo, apesar de ter uma política que visa conter a
divulgação de negacionismo climático, continua ganhando dinheiro com isso.
Nas
duas plataformas, os pesquisadores do NetLab identificaram anúncios de
entidades que se relacionam de alguma maneira com o agro com “informações
distorcidas e falaciosas sobre o impacto da ação humana no clima e no meio
ambiente”. O material foi dividido em dois principais tipos de conteúdos com
potencial de produzir falsas crenças sobre esses temas: anúncios promovendo
teorias da conspiração que apresentam todo tipo de pauta ambientalista como
alarmismo ou exagero de “fanáticos do clima”; e anúncios que buscam apresentar
uma “ciência alternativa” àquela que aponta graves níveis de desmatamento e
mudança climática.
No
primeiro caso, eles destacam como exemplo anúncios da produtora Brasil Paralelo
promovendo o “Cortina de Fumaça” e da Revista Oeste sobre
reportagem das “ameaças da governança global”. “Eles não questionam diretamente
evidências científicas, mas retratam a emergência climática como se fosse mera
politicagem ou narrativa manipulada para mascarar interesses ‘globalistas’ de
ONGs, veículos da imprensa e governos estrangeiros”, explica o trio de
pesquisadores do NetLab.
“Ou
seja, para desqualificar uma pauta baseada no conhecimento científico, esses
anúncios tentam arrastar a disputa da opinião pública para fora do campo da
ciência, como se o que estivesse em jogo não fossem evidências, mas sim
narrativas”, complementam.
No
segundo caso, o NetLab destaca a ocorrência de anúncios que “afirmam não haver
nenhuma relação entre o agronegócio brasileiro e a destruição do bioma
amazônico ou qualquer outro”. Eles citam como exemplo uma postagem que o
deputado federal Rafael Pezenti (MDB-SC) impulsionou na qual afirma que “quem
acredita nisso [que o agronegócio desmata] é retardado ou mal (sic)
caráter”.
O
então candidato pagou à Meta entre R$ 500 e R$ 599 para impulsionar esse
conteúdo e alcançou entre 150 mil e 175 mil impressões. O anúncio também
convoca o público a “combater as mentiras divulgadas sobre o agro” e diz que os
agricultores e pecuaristas brasileiros preservariam uma área de floresta
equivalente a 16 países. O mesmo discurso aparece na publicidade da Brasil
Paralelo, veiculada na Meta.
É
um dado que deriva de um estudo de Evaristo de Miranda, de quando ele ainda
estava na Embrapa. A pesquisa virou uma espécie de “bíblia” do agro, mas é
bastante criticada por outros cientistas da área, que o acusam de distorcer cálculos e
gerar falsas controvérsias. Em meados deste mês, o próprio Miranda afirmou que “o
agronegócio não desmata”, em um anúncio pago do Canal Rural e veiculado no
Google para promover a entrevista concedida ao PodPlantar, da Jotabasso.
Nessa
entrevista, ele lança mão de mais um dado não corroborado por outros
pesquisadores: de que R$ 3 trilhões estariam imobilizados em propriedades
rurais no Brasil por causa da área que precisa ser mantida preservada em
cumprimento do Código Florestal. Ele apresentou esse cálculo pela primeira vez
em 2018, em palestra do Foro de Agricultura da América Latina, considerada um
marco da desinformação ambiental iniciada antes mesmo de Bolsonaro ser eleito.
O vídeo principal soma mais de 440 mil visualizações no YouTube, mas há
diversos cortes dele espalhados pela rede que aumentaram seu alcance.
Em
vídeo curto publicado no Dia Mundial do Meio Ambiente deste ano no canal
Terraviva, ele voltou a citar o dado. “Hoje, 5 de junho, é o Dia Mundial do
Meio Ambiente. Deveria ser também aqui no Brasil, um dia para se homenagear o
mundo rural, em particular os produtores rurais. Porque não existe neste país
ninguém que dedique tanto tempo, tantos recursos à preservação do meio ambiente
quanto o produtor rural e mesmo assim muito maltratado nesse tema”,
enaltece.
Pouco
mais de duas semanas depois, o dado foi repetido pelo presidente da
Aprosoja, Antonio Galvan, em artigo no Notícias Agrícolas. A reportagem
encontrou várias outras menções a esse dado, que não tem respaldo da academia,
na voz de influencers do setor em entrevistas à Brasil Paralelo, por exemplo.
No
começo de maio, foi a vez de outro político, o senador Marcio Bittar (União
Brasil-AC), impulsionar anúncio na Meta citando outro número difundido por
Miranda – de que 66% do país se mantém preservado. Esse é um dos dados mais
alardeados tanto por representantes da bancada ruralista quanto por apoiadores
do setor. “O Brasil, que tem 66% do seu território intacto, enquanto a
Inglaterra tem apenas 10% de floresta nativa”, disse Bittar ao criticar
cobranças que o rei Charles III, da Inglaterra, fez a Lula.
Nesse
caso, trata-se de promover uma interpretação distorcida a partir de um dado
real. De fato, o país tem cerca de 66% do território com vegetação
remanescente, mas ela está bem longe de estar intacta ou “tal qual Pedro
Álvares Cabral encontrou quando chegou ao Brasil” ou como era “no tempo de Adão
e Eva”, como dizem entrevistados do “Cortina de Fumaça”.
Estudos
com análise de imagem de satélite mostram que boa parte desses remanescentes já
sofreu algum tipo de degradação. Pesquisa liderada pela Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp) publicada no início deste ano na revista científica Science,
uma das mais importantes do mundo, mostrou que só na Amazônia cerca de 40% do que
sobra da floresta já sofreu algum tipo de degradação, o que reduz sua
capacidade de prover todos os serviços ambientais e fica muito mais sujeita à
destruição pelo fogo, por exemplo.
Bittar
chamou atenção nos últimos anos por alçar Molion e Felício à categoria de
referências em clima. Ele convidou os dois para participar de um evento promovido
pelas comissões de Relações Exteriores (CRE) e de Meio Ambiente (CMA) do Senado em maio de
2019. O vídeo da TV Senado disponível no YouTube com as três horas do evento já
teve mais de 44 mil visualizações. O canal próprio do senador publicou um vídeo
menor de uma conversa dele com os dois no mesmo dia que teve mais quase 8 mil
visualizações.
Agora
relator da CPI das ONGs, Bittar convidou Molion e Miranda para prestarem
depoimento na comissão.
·
Objetivo é atacar a ciência que ampara leis
ambientais
O
sociólogo Jean Miguel, professor associado ao Departamento de Política Científica
e Tecnológica do Instituto de Geociências da Unicamp, publicou um artigo no
começo do ano passado analisando a relação entre o negacionismo climático e o
que ele chamou de “impedimento da
governamentalização ambiental no Brasil”.
Para
ele, não é possível cravar que o principal bastião do negacionismo no Brasil é
o agronegócio. Estudando o fenômeno por uma perspectiva histórica, ele vê
relação com outros elementos caros à extrema direita, como patriotismo,
armamentismo, soberania, religiosidade (a ideia de que o ser humano ganhou de
Deus a natureza para usufruir dela).
O
pesquisador aponta, no entanto, que há um elemento muito pragmático na forma
como uma parcela do agronegócio incorporou o negacionismo não só do aquecimento
global como também da ciência que revela os impactos da devastação ambiental,
em especial pelo desmatamento.
“É
uma forma de produção da ignorância planejada para atingir leis ambientais
específicas. Não é toda a ciência que é atacada por negacionistas, mas aquela
ciência que faz parte do processo regulatório das leis ambientais e dos acordos
internacionais. Aquela ciência que cria um certo processo de regulamentação
ambiental, que dá fundamento objetivo para o aconselhamento político nas
decisões ambientais”, disse à Pública.
Ele
afirma que a meteorologia, por exemplo, é importante para o agro, por isso
Molion encontra tanto espaço para falar com esse público. Suas palestras – em
entrevista à BBC, ele disse serem 50 por ano – em geral começam com as
estimativas de curto prazo sobre como estará o clima para a lavoura na próxima
estação, mas depois descambam para o negacionismo. Molion diz que vai ocorrer um
resfriamento do planeta nas próximas décadas – contrariando todas as
estimativas que apontam para o oposto disso.
“Mudança climática não interessa para o setor
quando ela reforça a necessidade de ação contra o desmatamento ou reforça as
regras para proteção ambiental dentro da propriedade”, continua Miguel. O
pesquisador defende que essa negação não ocorreu de modo contínuo na história
recente, mas foi particularmente atuante em momentos em que algo importante na
esfera ambiental estava acontecendo, como, por exemplo, a conferência Rio+20,
em 2012, que marcava os 20 anos da Rio-92 e trazia a expectativa de acordos
internacionais mais robustos de proteção ao ambiente.
Naquele
ano, nos meses que antecederam a cúpula, diversos veículos de imprensa deram
espaço para quem negava o aquecimento, em uma tentativa controversa de trazer
“equilíbrio” para o debate, tratando os dois lados com pesos iguais, quando
essa não é a realidade da ciência do clima. Há um consenso científico em torno
do tema. Quem nega o aquecimento global ou que ele seja causado pelas
atividades humanas e emissões em excesso dos gases de efeito estufa é uma
minoria de 1% da comunidade científica mundial.
Foi
assim que Ricardo Felício, que nunca publicou um artigo científico sequer sobre
a questão climática em toda a sua carreira, foi parar no
programa do Jô Soares – evento que alimentou toda uma geração de conspiracionistas.
Ele disse que “não tem prova científica do aquecimento global”, que “não há
elevação do nível do mar” e que “a Floresta Amazônica se reconstituiria em 20
anos após ser desmatada”.
Foi
também em 2012 que foi aprovada no Congresso a reformulação do Código
Florestal, a mais importante lei ambiental do país, que define as regras para a
proteção da vegetação dentro das propriedades privadas. Nessa mudança, quem
teve protagonismo foi Evaristo de Miranda, que convenceu todo mundo de que
sobrava pouca terra para a produção no Brasil diante de tanta área que era
protegida de alguma maneira. Isso é contestado pela maioria dos pesquisadores
da área no país, mas foi encampado pela bancada ruralista.
Para
Miguel, esses discursos ganharam tração em momentos-chave da história recente,
mas foi com o bolsonarismo que os negacionistas encontraram “solo fértil”. “É
uma visão de mundo coerente, um modo de vida completo, e o negacionismo vai
estar lá também”, diz.
Nesse
contexto, a disseminação desses discursos em canais do agro e da extrema
direita serve para legitimá-los. “O negacionismo passa a ser legitimado como
narrativa científica. Dentro da ciência eles não têm legitimidade, mas na
interface com o agronegócio eles adquirem essa legitimidade”, completa,
·
Críticas sob anonimato
O
anonimato na hora de falar contra os argumentos do negacionismo climático
brasileiro é uma condição quase unânime para quem lida diretamente com atores
do mundo agro – mesmo quando a intenção é ampliar a produtividade no campo. O
receio é que apoiar a boa ciência – e, por consequência, expor a relação direta
entre práticas predatórias como o desmatamento com as mudanças climáticas –
feche portas.
É
o caso de um profissional com passagem por empresas do setor que pediu à
reportagem que não fosse identificado. “Se falo sobre sustentabilidade e clima,
a pessoa já olha de volta com desconfiança, como se fosse uma nova forma de
colonialismo. Ela reproduz o que é inventado, e o que se repete vira verdade”,
afirma. “É uma barreira muito grande a vencer antes de debater como transformar
a agricultura para melhor.”
Outra
pessoa entrevistada que atua junto ao agro e que também pediu anonimato
descreve a disseminação de desinformação no setor como regra. “Quando falo de
mudanças climáticas, a primeira coisa que respondem é: ‘Você pode me explicar,
mas não vai mudar minha opinião’.”
A
posição tem um efeito prático negativo para o próprio agronegócio. Como Nobre
tentou alertar na reunião com o conselho da Amaggi, as mudanças climáticas já
afetam a produtividade agrícola. A cientista Ludmila Rattis, ligada ao Woodwell
Climate Research Center, dos Estados Unidos, e ao Instituto de Pesquisa
Ambiental da Amazônia (Ipam), publicou em 2021 um estudo na
revista Nature Climate Change demonstrando que 30% das áreas
produtoras de soja e milho do Centro-Oeste saíram do ideal climático para a
produção. Segundo suas projeções, se as alterações continuarem, até 70% das
propriedades dessa região estarão em áreas impróprias para o cultivo nos
próximos 20 anos.
“Muitos
agricultores que poderiam se adaptar acham que essas instabilidades que estamos
assistindo nos últimos 20 anos vão passar”, conta Ludmila. “Se você não usa a
palavra clima e pergunta ‘A temperatura está diferente? A chuva mudou um
pouquinho?’, eles dizem que sim. Mas, na hora que usa a palavra clima, eles
falam que não tem mudança. E aí atrapalha muito a adoção de práticas mais adaptadas
à nova realidade climática.”
A
cientista tem buscado caminhos para convencer sobre os riscos que as mudanças
climáticas colocam sobre a produção brasileira. “O que reverte essa situação
são os ganhos financeiros que práticas agrícolas mais sustentáveis têm, e
quando planilhas e gráficos são mostrados. Não é só bom para o ambiente, é bom
para o seu bolso também. Essa é a maior arma que a gente tem hoje contra o
negacionismo climático.”
Assim
como Ludmila, o pesquisador Phillipe Käfer, responsável pelo programa do Brasil
do laboratório de inovações financeiras do Climate Policy Initiative, vê como o
negacionismo atrapalha a adoção de sistemas mais sustentáveis de produção
rural. “Sabemos, que a agropecuária não somente afeta o clima em razão de suas
emissões, como também é afetada pelas alterações nos regimes naturais de chuvas
e temperatura. A resistência em reconhecer a relação impede que o setor seja
protagonista na mudança e ainda ser remunerado por isso.”
Por
outro lado, conta, tem crescido o interesse sobre agricultura regenerativa, com
insumos biológicos, rotação de culturas e outras práticas que trazem mais
fertilidade para o solo e ajudam o produtor a lidar com as questões climáticas.
Ou
seja, para adaptar a agricultura brasileira às mudanças climáticas e evitar
perdas graves para os produtores, parece que a chave é não falar sobre mudanças
climáticas.
·
Um curso para trazer o clima para dentro do debate
O
engenheiro agrônomo Marcos Jank, que foi executivo de associações de classe,
como a União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), e de empresas do
setor, como BRF, e hoje coordena o Insper Agro Global, está apostando numa
estratégia oposta, que é justamente criar esse diálogo. Ele está coordenando a
elaboração de um novo curso chamado Agro e Meio Ambiente, que tem como objetivo
trazer o agronegócio para entender as mudanças climáticas e se preparar para
lidar com elas.
Questionado
pela Pública sobre
como pretende fazer essa abordagem considerando o negacionismo que prevalece em
parte do setor, Jank reconheceu que há uma dificuldade enorme de concertação.
Mas afirmou acreditar que, em termos práticos, o negacionismo vai acabar sendo
sobreposto pela necessidade de mudanças impostas pelas pressões que estão sendo
colocadas mundialmente sobre as cadeias produtivas.
Ele
admite, porém, que hoje o produtor rural vê a questão climática como um
passivo. “Quando na verdade deveria ser um ativo. O produtor deveria ser o
primeiro a defender o fim do desmatamento ilegal. Por causa da lei, não porque
o [presidente da França, Emmanuel] Macron quer, ou porque o [presidente dos
Estados Unidos, Joe] Biden quer, mas porque é fora da lei. Tem de ser
combatido. E o agro deveria ser vocal sobre isso. Mas não é”, diz.
Com
esse comportamento, argumenta Jank, o produtor não está enxergando as
oportunidades que lidar com o problema podem trazer. “Na minha visão, a única
coisa que é ameaça é o lado vilão do Brasil com desmatamento ilegal. É uma
ameaça que, se não for resolvida, nada vai dar certo. A gente vai continuar
sendo visto pelo lado vilão. Agora, se a gente reduzir o desmatamento e se a
gente incorporar – seja através de incentivo, seja com política pública, seja
com mercados de carbono – modelos produtivos de baixo carbono, a gente tem
chance de ir muito mais longe do que os nossos concorrentes. Mas ainda existe
uma dificuldade imensa do produtor enxergar isso.”
·
Outros lados
Todas
as pessoas, veículos e instituições citados nesta reportagem foram procurados
pela reportagem. Somente quatro deram retorno até a publicação.
Aleksander
Horta, chefe de redação do Notícias Agrícolas, afirmou: “O jornalismo do
Notícias Agrícolas é pautado pela premissa de ouvir especialistas que sejam
experientes o bastante para tratarem dos temas propostos, como é o caso do Dr.
Luiz Carlos Molion e a climatologia. Nosso papel, enquanto repórteres, é apenas
o de promover debates, ouvir contraposições e garantir que nossa audiência
tenha sempre, e constantemente, informações responsavelmente apuradas.”
Também
disse que as reportagens apontam “a existência de uma linha de pesquisa
contrária e intensamente divulgada sobre o chamado ‘aquecimento global’ (termo
que mais tarde, por conta de contestações, viria a ser substituído por
‘Mudanças Climáticas’) e promover o debate sobre o tema que – gostem ou não,
certo ou errado – tem embasamento técnico e científico minuciosamente elaborado
pelo Dr. Molion que, diga-se de passagem, não está sozinho nesta discussão.”
Molion
apenas fez referência à resposta que o Notícias Agrícolas nos enviou e disse
que não teria tempo para atender à reportagem porque daria uma palestra
presencial nesta quinta-feira, 29, em Goiás. “Quem sabe em uma outra
oportunidade em que eu tenha tempo disponível. Acho que você deveria ver esses
assuntos com um olhar mais crítico e não aceitar tudo que você ouve. Sucesso!”,
acrescentou.
Em
nota, o Grupo Bandeirantes de Comunicação afirmou que os veículos do
conglomerado (como Terraviva e AgroMais) “estão sempre abertos a ouvir as mais
diversas opiniões em todos os setores, proporcionando constantemente uma
cobertura ampla e diversificada. Evaristo de Miranda é colaborador dos canais
por assinatura, assim como tantos outros profissionais que expõem seus mais
diferentes pontos de vista”.
A
Brasil Paralelo chegou a procurar a Pública pedindo mais explicações sobre o conteúdo, mas disse
que preferia não se manifestar.
Fonte:
Por Giovana Girardi, Cristina Amorim, Álvaro Justen e Rafael Oliveira em
Agencia Pública
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