Impulsionado por lobby, gás natural acumula vitórias em 2024
no Brasil
No tabuleiro da produção energética no Brasil, o peão
do gás natural avançou várias casas em 2024. A vitória mais recente ocorreu na
semana passada, quando o lobby do setor conquistou a aprovação de um jabuti –
trecho em um projeto de lei (PL) sem relação com o tema original – que o
favorece no PL que regulamenta as eólicas offshore.
Mas houve outras conquistas ao longo do ano. No Pará, a
instalação de um gigantesco complexo termelétrico está acelerada, e durante a
reunião do G20 (grupo das nações mais ricas), o ministro Alexandre Silveira, de
Minas e Energia (MME), assinou um memorando de entendimento com a Argentina
para importação do gás de Vaca Muerta, que pode ajudar a baratear o combustível
fóssil no país.
Em um momento em que o Brasil deveria estar, na visão
de especialistas, reduzindo o uso de combustíveis fósseis, os principais
responsáveis pelas mudanças climáticas, a previsão é de crescimento. O Plano
Decenal de Expansão de Energia 2034, produzido pela Empresa de Pesquisa
Energética (EPE), ligada ao MME, estima mais que dobrar a produção bruta do gás
natural, chegando a 315 milhões de metros cúbicos por dia nos próximos 10 anos.
A defesa do crescimento do combustível de origem
fóssil, que conta com o apoio de Silveira, se baseia em dois argumentos principais
que são fortemente rechaçados por ambientalistas.
O primeiro é de que o gás natural seria fundamental
para a transição energética do país. “O gás natural é fóssil, mas é o mais
limpo dos fósseis. Quem quer excluir o gás natural no Brasil da transição
energética é míope e quer que a energia fique mais cara, quer que o país não
tenha segurança energética”, defende Adriano Pires, diretor do CBIE (Centro
Brasileiro de Infraestrutura) e uma das principais vozes pró-gás natural do
país.
De fato, o gás natural é menos poluente que outros
fósseis, como petróleo e carvão, e é visto como importante combustível de
transição em países que dependem muito dessas duas fontes, como ocorreu nos
Estados Unidos. Mas não é o caso do Brasil. Aqui, na maior parte dos casos, o
gás não está entrando como substituto de fósseis mais poluentes, mas como
acréscimo.
Ou seja, em vez de reduzir as emissões de gases de
efeito estufa, o aumento da presença de gás vai sujar a nossa matriz elétrica,
apontam especialistas. Além de, ao contrário do que diz Pires, aumentar a conta
de luz. Gás é mais caro que água, sol ou vento.
<><> Por que isso importa?
- Aumento da presença do combustível
fóssil na nossa matriz elétrica pode aumentar nossas emissões de gases de
efeito estufa e o preço da conta de luz
- País planeja dobrar produção de gás
nos próximos dez anos, apesar de compromisso global por transição para
longe dos combustíveis fósseis, necessária para conter o aquecimento
global
“O que o setor do gás quer é correr atrás de um tempo
perdido que não vai voltar”, afirma Ricardo Baitelo, gerente de projetos do
Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema). “O único lugar que ainda se pode
argumentar que o gás deve fazer parte é a indústria. Mas, fora isso, o gás só
atrasa a transição energética. Quanto mais tempo ficarmos com o gás natural,
mais vai demorar para dar escala a outras alternativas.”
O segundo argumento pró-gás remete ao apagão do início
dos anos 2000, quando o abastecimento de energia elétrica no país era quase
completamente dependente de fontes hidrelétricas, e uma seca intensa obrigou o
governo a promover um racionamento de energia. Foi quando várias termelétricas
foram construídas no Brasil para evitar o desabastecimento.
De lá para cá, no entanto, a participação de outras
fontes renováveis, como solar e eólica, aumentou significativamente, reduzindo
a dependência das chuvas. A partir de então, a justificativa passou a ser que
essas duas fontes são intermitentes e, portanto, não seriam confiáveis como as
fontes fósseis.
“Existem soluções para lidar com a intermitência dessas
fontes, como o armazenamento de energia em baterias e o aumento da
transmissão”, aponta Baitelo. “Em algumas épocas do ano estamos desperdiçando
energia renovável adoidado. O Brasil está com energia sobrando, com leilões
sendo cancelados. Não é falta de energia, é falta de planejamento, falta de um
sistema robusto”, complementa
O Iema, onde Baitelo atua, é um dos membros da Coalizão
Energia Limpa, que em junho deste ano publicou o relatório “Regressão
Energética: como a expansão do gás fóssil atrapalha a transição elétrica
brasileira rumo à justiça climática”. O estudo sistematiza os acontecimentos
do setor de gás natural nos últimos anos e aponta os problemas da expansão do
uso do combustível fóssil, que responde pela maior parte das emissões do setor
elétrico brasileiro.
Com o aumento das emissões de gases do efeito estufa, o
planeta fica cada vez mais distante da meta de conter o aquecimento global em
1,5 °C. O resultado disso é o crescimento de eventos climáticos extremos,
incluindo chuvas avassaladoras, como as que atingiram
o Rio Grande do Sul,
secas prolongadas como as que vêm
afetando a bacia do rio Amazonas e ondas
de calor.
O gás natural também está associado a danos ambientais
locais, como riscos de vazamento, supressão de vegetação nativa, uso intensivo
de água e poluição do ar – com possíveis impactos na saúde respiratória da
população que vive na região da termelétrica. Segundo um
estudo do C40,
uma organização de cidades preocupadas com o meio ambiente, a poluição causada
pelo gás natural pode resultar em mais de 48 mil mortes prematuras extras no
Brasil até 2050.
·
Térmicas-jabuti vão
encarecer conta de luz e aumentar emissões
Apontado como principal conquista do lobby do gás
natural em 2024, o jabuti inserido no PL que regulamenta as eólicas offshore
(em alto mar) é fruto de uma dobradinha com o ainda mais poluente carvão
mineral. O projeto, que originalmente visava fortalecer uma fonte de energia
limpa, acabou gerando benefícios também para os combustíveis fósseis.
O texto modifica um jabuti anterior que o setor
tinha emplacado na lei que permitiu a privatização da Eletrobras, em 2021. Há
três anos, tinha sido inserida a obrigatoriedade de instalação de 8 gigawatts
(GW) de usinas térmicas. Mas como essa quantidade não se mostrou viável
economicamente, o novo jabuti diminuiu a previsão para 4,25 GW. E criou dispositivos
econômicos que
favorecem empresas como a de Carlos Suarez, dono da Termogás e conhecido como
“rei do gás”, como apontou reportagem d’O Globo.
O que se mantém é a inflexibilidade das usinas.
Atualmente, a maior parte das térmicas do país só é acionada em caso de
necessidade – como ocorreu neste ano diante da seca que atingiu as
hidrelétricas. É o que gera a chamada bandeira vermelha. Quando a situação se
estabiliza, elas são desligadas, e o preço volta ao normal. Com isso, as
térmicas operam, em média, apenas 20% a 30% por ano. Mas os jabutis colocados
tanto na lei da Eletrobrás quanto no PL das eólicas offshore estabelece que as
térmicas devem operar obrigatoriamente por 70% do tempo.
De acordo com os cálculos da Coalizão Energia Limpa,
essas mudanças têm o potencial de emitir
274,4 milhões de toneladas de CO2 equivalente ao longo dos
próximos 25 anos. Além de gerar um custo adicional para o consumidor de até R$
658 bilhões, cerca de R$ 25 bilhões por ano. Isso pode representar um aumento
de 11% na conta de luz.
“Como as usinas são inflexíveis, o país vai ter de
deixar de gerar energia de fontes mais baratas e menos poluentes, como a
eólica, solar ou até a hidrelétrica. Vai se contratar uma energia cara, uma
energia suja, e todo esse custo adicional poderia estar sendo redirecionado não
só para a transição energética, mas também para investimentos em produção de
energia renovável”, aponta Anton Schwyter, gerente de energia do Instituto
Arayara.
Para Baitelo, o investimento obrigatório nas
térmicas-jabuti pode gerar “ativos encalhados”, já que a redução do uso de
combustíveis fósseis será cada vez mais imperativo nas próximas décadas. “Os
contratos são de 15 de anos, algumas estariam começando [a operar] em 2026,
outras em 2028. Isso significa criar térmicas e gasodutos que se estenderiam
pelo menos até 2043, ou um pouco a mais. Vale a pena construir essa
infraestrutura?”, questiona.
Os efeitos poluentes e no bolso do consumidor dos
jabutis inseridos no PL das eólicas offshore não param por aí: o carvão mineral
conseguiu emplacar o prolongamento até 2050 de usinas previstas para encerrar
as atividades em 2028 – o que beneficia empresas como a Âmbar Energia, do grupo
econômico dos irmãos Joesley e Wesley Batista.
O aumento da conta de energia é questionado por Adriano
Pires, do CBIE. Para ele, os números são “completamente equivocados” e fruto de
um “lobby burro e irresponsável” pró-eólica e solar. “Não vai ter picos de
preço como a gente teve nos últimos anos e vai trazer mais segurança ao sistema
elétrico brasileiro. Até mais segurança para a própria geração eólica e solar”,
diz Pires.
Para o economista, que presta consultoria para empresas
do setor, o aumento na emissão de gases do efeito estufa se justifica. “O
grande emissor de gases do Brasil não é o setor energético. Tudo na vida tem um
custo. Se a gente precisa ter segurança energética, a gente tem, às vezes, que
aumentar um pouquinho a emissão de gases. Agora, o benefício da segurança é
maior. Por quê? Porque o aumento é mínimo”, diz.
Aprovado no Senado após ganhar os jabutis na Câmara, o
projeto aguarda sanção presidencial. Segundo o líder do governo no Congresso,
senador Randolfe Rodrigues (PT-AP), os dispositivos pró-fósseis serão vetados
por Lula (PT). O senador afirmou que a questão será judicializada em caso de
derrubada do veto pelo Congresso.
·
Subsídios para fósseis
seguem muito maiores do que para renováveis
Na contramão do processo de fazer a transição para
longe dos combustíveis fósseis, como definido pela Conferência do Clima da ONU
de Dubai (COP28), em 2022, o Brasil segue institucionalmente e financeiramente
apoiando fontes não renováveis e poluentes.
Segundo um
relatório produzido
pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), os subsídios federais à
produção e ao consumo de fontes fósseis chegaram a R$ 81,74 bilhões em 2023,
valor muito superior ao destinado a fontes renováveis, que foi de pouco mais de
R$ 18 bilhões. Para cada R$ 1 investido em fontes renováveis, R$ 4,52 foram
destinados para fontes fósseis. Nos cinco anos anteriores, entre 2018 e 2022,
os subsídios aos fósseis foram cinco vezes maiores do que às renováveis.
A predileção pelos fósseis também aparece no Plano
Plurianual (PPA) 2024-2027, que estabelece o planejamento orçamentário do
governo para o período. O PPA enviado ao Congresso Nacional destinou ao
Programa Transição Energética somente 0,2% do valor alocado para o Programa
Petróleo, Gás, Derivados e Biocombustíveis, segundo nota
técnica do
Inesc.
O favorecimento aos combustíveis não renováveis foi
constatado pelo Tribunal de Contas da União (TCU). No final de novembro, após
auditoria nas políticas públicas e ações do governo federal em relação à
transição energética, o TCU fez uma série de determinações e recomendações para
o MME.
Na
justificativa para seu voto, o ministro Walton Alencar Rodrigues destacou que “o
sistema é pouco adequado para objetivos mais ambiciosos de reindustrialização
verde”, apontando que a presença de investimentos em combustíveis fósseis no
novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) é bem maior do que a de
energias renováveis ou de baixo carbono: 62% contra 38%.
Além das isenções e subsídios federais, vários projetos
relacionados ao setor de gás natural são financiados pelo BNDES. Nos últimos
anos, o banco de desenvolvimento financiou projetos na cidade paraense de
Barcarena (UTE Novo Tempo, em R$ 1,8 bilhão) e nas fluminenses São João da
Barra (UTE GNA Porto do Açu III, R$ 3,9 bilhões) e Macaé (UTE Marlim Azul, R$ 2
bilhões).
O gás natural também é protagonista de uma
iniciativa do
ministério de Minas e Energia, comandado por Alexandre Silveira. Trata-se do
“Gás para Empregar”, instituído via decreto do presidente Lula em agosto. O
programa tem como objetivo diversificar e aumentar a oferta de gás natural no
mercado doméstico e diminuir o preço para o consumidor final, além de
atrair investimentos privados para a infraestrutura necessária.
Uma das iniciativas ligadas ao programa foi a
assinatura do memorando de entendimento entre Brasil e Argentina durante a
reunião do G20, no mês passado, para viabilizar a importação de gás natural
argentino a partir do ano que vem. O montante, inicialmente de dois milhões de
metros cúbicos por dia, pode chegar a 30 milhões de m³/dia em 2030.
O acordo, celebrado por Silveira, vai importar gás do
controverso campo de Vaca Muerta, a segunda maior reserva de gás fóssil não
convencional do mundo. A extração por lá se dá por meio do fracking, técnica
criticada por ambientalistas por conta de seu impacto
socioambiental.
O fracking, muito popular nos EUA, é proibido em países
como França, Alemanha e Reino Unido, além de estados brasileiros como Paraná e
Santa Catarina. Apesar disso, é frequentemente defendido por Silveira,
que já
afirmou que
o veto à técnica “pode trazer grandes prejuízos ao Brasil”.
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Em Barcarena, gás avança a
passos largos
No Pará, em um município colado a Belém, que será sede
da próxima Conferência do Clima da ONU (COP30), no ano que vem, uma subsidiária
da multinacional New Fortress Energy (NFE) conseguiu avançar a passos largos em
seu complexo de gás natural. Em fevereiro, a empresa inaugurou em Barcarena o
primeiro terminal de importação de gás natural liquefeito (GNL) da região Norte
e estacionou uma Unidade Flutuante de Armazenamento e Regaseificação (FSRU, na
sigla em inglês) no porto local.
Também avançou nas obras da primeira etapa da usina
termelétrica (UTE) Novo Tempo, que terá mais de 600 megawatts (MW) de
capacidade instalada e tem previsão de inauguração em julho do ano que vem. Mas
o projeto não para por aí: no final do ano passado a NFE assumiu o contrato de
um projeto originalmente planejado para ser construído em Caucaia (CE),
transferindo-o para Barcarena. A UTE Portocém, com capacidade prevista de 1,6
gigawatts (GW), também está
em obras e
tem o início da operação previsto para o início de 2027.
Segundo documentos internos da NFE enviados ao Ibama, o
complexo termelétrico (que engloba a Novo Tempo e a Portocém) pode atingir a
capacidade instalada de 2,6 GW ao final de todas as obras, se tornando o maior
da América Latina. O valor equivale a quase 20% da capacidade instalada de
Itaipu, a maior produtora de energia do Brasil.
Como mostrou a Agência Pública em reportagem
publicada em julho,
o vultoso empreendimento de gás natural está se instalando em um município com
um histórico de dezenas de acidentes ambientais e uma população saturada dos
impactos causados pelas empresas com a leniência do poder público.
“Todo ano tem novos desastres e todo ano são instalados
novos empreendimentos, sem nenhum controle sobre os que já existem. Os
desastres são praticamente iguais, a poluição é comprovada e aumenta o tempo
todo, e mesmo assim o [governo do] estado chama mais empresas para se
instalarem. Barcarena é uma bomba prestes a explodir”, disse à época o
professor e pesquisador da Universidade Federal do Pará (UFPA) Marcel Theodoor
Hazeu.
·
Nem tudo são flores para o
gás natural
Nem só de conquistas viveu o setor de gás natural em
2024, no entanto.
Para Adriano Pires, consultor da área e voz pró-gás
natural, frustrou a falta de novos leilões de energia por parte do governo
federal e a manutenção do domínio da Petrobras na comercialização do gás – o
que, para ele, dificulta a redução no preço do combustível.
Paralelamente a isso, uma demanda antiga do setor, a
ampliação da infraestrutura, subiu no telhado: a discussão sobre o Brasduto,
uma malha nacional de gasodutos a ser construída com dinheiro público, sequer
voltou a dar as caras, depois de tentativas frustradas em 2022 e 2023.
Parte das derrotas do setor se deve à resistência de
setores da sociedade civil contra o avanço do combustível fóssil.
Em Caçapava (SP), localizada a 115 km da capital, a
Natural Energia encontrou dificuldades para fazer andar o processo de
licenciamento ambiental da UTE São Paulo, que tem previsão de gerar 1,74 GW de
energia e ser integrada ao Sistema Interligado Nacional (SIN). Os possíveis
impactos socioambientais e climáticos, incluindo a emissão de 6 milhões de
toneladas de CO2 equivalente por ano, têm feito com que ativistas e
especialistas lutem contra a instalação do empreendimento.
No início do ano, em janeiro, a mobilização social fez
com que o Ministério Público Federal (MPF) entrasse com uma ação civil pública
que conseguiu barrar a realização de uma audiência pública e suspender o
licenciamento.
A
despeito de um parecer contrário do próprio Ibama em abril, apontando
problemas no Estudo de Impacto Ambiental (EIA), a Natural Energia conseguiu
retomar o andamento do projeto, com novas audiências públicas sendo marcadas
para o início de julho. Novamente, a mobilização social impediu que as
audiências se concretizassem, dessa vez por
meio de manifestações populares que inviabilizaram a realização.
No início de agosto, a empresa protocolou um EIA
atualizado no sistema do Ibama, mas não houve novos avanços no licenciamento
até o momento. Ainda não há perspectivas de realização de novas audiências
públicas.
Além de movimentos e organizações ambientalistas, a
possível instalação do empreendimento também despertou reações de outros
setores. O Instituto de Defesa de Consumidores (Idec), por exemplo,
capitaneou um
manifesto contrário à UTE. E as câmaras de vereadores de 12 municípios da região
do Vale do Paraíba, incluindo a de Caçapava, aprovaram moção de repúdio contra
a instalação da térmica a gás fóssil.
Fonte: Por Rafael Oliveira, da Agência
Pública
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