Histórias de liberdade: banco de dados
resgata cartas de alforria na Bahia
Antônio, natural da costa da África, foi
escravizado em Alagoas no início do século 17 e obteve sua liberdade por 350
mil-réis. No entanto, mesmo após seis anos de alforria, seu antigo senhor,
Joaquim do Ó, tentou voltar a escravizá-lo repetidamente. Para proteger sua
liberdade, Antônio registrou sua carta de alforria em um tabelionato distante
do seu ex-senhor, em Salvador.
Em outro caso, Joaquim teve sua alforria
escrita em 1825, quando tinha sete anos. Mas a carta só foi registrada seis
anos depois e, mesmo assim, seu antigo senhor impôs a condição de que ele
continuasse como seu acompanhante e fosse submetido a castigos domésticos.
Esses são apenas alguns dos mais de cinco
mil casos documentados no banco de dados de cartas de alforria (“Manumission Papers
Database”)
que o historiador e pesquisador freelancer Urano Andrade desenvolve há mais de
uma década. Digitalizando registros históricos armazenados no Arquivo Público
do Estado da Bahia, Andrade está construindo uma base de dados sobre a história
da escravidão e da liberdade no estado, cuja capital, Salvador, chegou a ser o
maior porto de comercialização de escravizados das Américas.
O projeto começou em 2012, em parceria com
a professora Kristin Mann, da Universidade Emory, nos Estados Unidos. Ela
procurou o pesquisador para mapear escravizados e ex-escravizados de um
comerciante baiano que não listou descendentes ou parentes em seu
inventário, mas deixou bens para as pessoas escravizadas – tema do estudo de
Kristin.
A partir dessa demanda, Andrade expandiu o
trabalho para incluir cartas de alforria registradas nos livros de notas do
Arquivo Público do Estado da Bahia, “onde se registram as compras e vendas de
imóveis e diversas outras demandas da sociedade”, explica. Com financiamento
parcial da Biblioteca Britânica, foram digitalizadas 325 mil imagens de documentos
como parte do Endangered Archives
Programme,
projeto focado na preservação e cópia de arquivos importantes e vulneráveis.
“Essa digitalização dos livros de notas
realizada por mim com financiamento da Biblioteca Britânica possibilitou que
mais pessoas tenham acesso [às cartas de alforria]. O banco de dados
estruturado, com cartas de alforria de 1800 a 1850, foi publicado no Journal of
Slavery and Data Preservation Dataverse, com acesso público disponível no
Harvard Dataverse (repositório de dados de pesquisas acadêmicas mantido pela
Universidade Harvard, nos Estados Unidos). Já as imagens digitalizadas do
Arquivo Público do Estado da Bahia, com os registros desde 1664, podem ser
consultadas no site do Endangered
Archives Programme, mantido pela Biblioteca Britânica
O projeto de Andrade oferece um olhar sobre
a complexidade das relações entre escravizados, libertos e senhores, assim como
as estratégias para conquistar e preservar a liberdade. Ao catalogar os
documentos, o pesquisador descobriu que as cartas eram obtidas frequentemente
em troca de dinheiro, serviços ou sob condições específicas impostas pelos
senhores. “A carta de alforria era negociada entre o escravizado e o seu
senhor”, diz. “Não é nada de graça, muitas das cartas são condicionais, e o
banco de dados formula isso”, explica.
Andrade cita algumas histórias registradas
nesses documentos, como o de uma escravizada obrigada a cozinhar para sua
antiga senhora em visitas ocasionais, mesmo após a liberdade. Em outro
caso, uma mulher resgatou sua própria filha da escravidão, comprando-a
como escrava por 190 mil- réis, e, em seguida, a libertou. Anacleta Maria do
Rosário, natural da Costa da Mina, foi escravizada na Bahia e separada de sua
filha, que ficou na África. Ao garantir sua liberdade, Anacleta soube do
paradeiro de sua filha, que também foi escravizada. Após comprá-la, ela deveria
escrever a carta de alforria e, por não ser alfabetizada, primeiro procurou
alguém para redigir o documento de sua filha, batizada com o nome simbólico de
Felicidade.
O historiador diz que, durante algum tempo
havia uma linha muito tênue entre a escravidão e a liberdade, já que a
liberdade garantida na carta de alforria poderia ser revertida. “Há diversos
casos de reescravização [de alforriados]. Aí a pessoa escravizada registra [a
carta] em tabelionato de notas para ter a segurança de que, se perder aquela
carta, ela pode requerer uma cópia”, conta.
Ainda no século 17, muito antes da
abolição, que ocorreu no século 19, o pesquisador diz que já havia
registros de pedidos de alforria. Ele lembra que, antes da Lei Áurea, assinada
em 13 de maio de 1888, outras leis criaram dispositivos para libertação de
pessoas escravizadas, entre elas a Lei Eusébio de Queiroz, em 1850, e a Lei do
Ventre Livre, em 1871. A primeira proibiu o tráfico transatlântico de
escravizados para o Brasil, enquanto a segunda concedia liberdade a filhos de
mulheres escravizadas, com a condição de que as crianças permanecessem sob a
tutela dos senhores de suas mães até os oito anos, podendo ser entregues ao
Estado (que concedia uma indenização ao escravista) ou continuar a trabalhar
para o senhor até os 21 anos.
Outra estratégia para garantir a liberdade
conquistada era, segundo o pesquisador, a construção de redes de apoio entre
escravizados na movimentação entre o Brasil e a costa da África. Durante a
travessia, eles estabeleciam conexões de apoio e troca de informações sobre
parentes libertos e escravizados separados entre os continentes.
Uma das evidências da existência dessas
redes é o compartilhamento das testemunhas em cartas de alforria. “Havia sempre
as mesmas testemunhas que iam assinar essas cartas, o mesmo procurador”,
explica o pesquisador.
Além disso, os escravizados também contavam
com apoio das sociedades abolicionistas,
ajudavam a pleitear a liberdade na Justiça, seja com pagamento de
alforrias, ou patrocínio de ações judiciais, ou, ainda, sequestrando escravos
de seus senhores. Um exemplo foi a Sociedade Dois de julho, formada por
estudantes baianos que cursavam direito em Pernambuco.
·
Resgate histórico
O banco de dados organiza as cartas de
alforria em uma planilha, incluindo detalhes do escravizador, informações da
pessoa escravizada, além das condições impostas para a alforria e informações
adicionais. A leitura e a transcrição dos documentos são um desafio técnico por
si só, devido à caligrafia arcaica e muitas vezes ilegível dos escrivães da
época. Andrade recorre a técnicas paleográficas (estudo da escrita antiga) para
interpretar esses textos e organizá-los em um formato acessível. Ele também usa
ferramentas modernas de digitalização, como o reconhecimento de caracteres
(OCR), para acelerar o processo.
Embora financiado por uma universidade
estrangeira, Andrade diz que o apoio para projetos que visam à manutenção de
arquivos vem aumentando no Brasil. Ele lembra que, recentemente, um edital de R$ 250
milhões para recuperação e preservação de acervos foi lançado pelo Ministério
da Cultura e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.
O resgate histórico que o banco de cartas
de alforria promove auxilia estudos genealógicos e cruzamentos de dados,
permitindo reconstruir trajetórias de escravizados e seus descendentes. Segundo
Andrade, os dados podem ser cruzados com outros bancos e plataformas online
(como o FamilySearch ou o SlaveVoyages) – ferramentas que
foram utilizadas nos levantamentos do Projeto
Escravizadores da Agência Pública –,
o que possibilita um mapeamento amplo, desde a chegada das pessoas escravizadas
ao Brasil, o momento de libertação e até mesmo seus testamentos e retorno à
África.
Na Pública, contamos sobre as dificuldades
de mapear a genealogia
de pessoas negras, que passam por relatos de migração, acesso aos documentos e
apagamento de memórias. O pesquisador acredita que isso acontece porque “na
construção de uma história documental é óbvio que pessoas mais abastadas deixam
mais registros, pois elas compram mais, vendem mais, inventariam seus bens.
Elas têm um controle documental sobre aquilo. Pessoas mais simples, mais
humildes, como libertos e escravizados, poucos registros têm”, conclui.
O pesquisador diz que o banco de dados
ainda está sendo atualizado e que, futuramente, ele deve se tornar
colaborativo, ou seja, será possível adicionar informações de outros estados.
“A gente pretende fazer um modelo como o do SlaveVoyages, que é um banco de
dados sobre o tráfico transatlântico de escravos. Queremos reunir cartas de
todo o Brasil, e os pesquisadores que tiverem bancos de dados locais irem
colaborando e preenchendo com o nosso banco de dados. E aí a gente vai ter uma
dimensão de Brasil.”
A expansão do trabalho é, para o
pesquisador, uma forma de “salvar vidas do passado e do presente”. Ele acredita
que “ao publicizar as cartas de alforria, o trabalho traz à tona histórias de
famílias”. “Essas pessoas não são pessoas de luto, são Felicidades, são Marias,
são Joanas, são Joaquins e Pedros, que tratam da sua história, vivenciam a sua
história. E se essa documentação não fosse preservada, jamais a gente poderia
contar essas histórias.”
A investigação foi feita com apoio do Pulitzer
Center
Fonte: Por Bianca Muniz, da, Agência Pública
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