A emergência da
espiritualidade natural
Há muitos que estão fartos de bens materiais e do consumismo de nossa
cultura. Como contraponto a esta situação, estamos captando a emergência do
mundo espiritual, da assim chamada espiritualidade natural e verificamos sua
premente atualidade face às muitas crises que assolam a inteira humanidade.
Em momentos assim críticos, o ser humano mergulha em seu Profundo e se
coloca questões básicas: O que estamos fazendo nesse mundo? Qual é o nosso lugar
no conjunto dos seres? Como agir para garantirmos um futuro que seja
esperançador para todos e para nossa Casa Comum?
Essa preocupação pelo mundo espiritual não é monopólio das religiões.
Ele se dá também no âmbito das buscas humanas tanto dos jovens, quanto dos
intelectuais, de famosos cientistas e – para surpresa nossa –, de grandes
empresários que se mostraram interessados acerca do tema.
O fato de eles mostrarem interesse acerca do mundo espiritual, vale
dizer, à espiritualidade, atesta as dimensões da crise que nos acomete.
Significa que os bens materiais que eles produzem, as lógicas produtivistas e
concorrenciais que praticam, o universo de valores comerciais (tudo virou
mercadoria e ganha o seu preço) que inspira suas práticas não dão conta das interrogações
sérias da vida humana. Há um vazio profundo, um buraco imenso dentro do seu
ser. Estou convencido de que o mundo espiritual, ou a espiritualidade natural,
inerente à nossa natureza, tem a capacidade de preenchê-lo.
É importante, no entanto, sermos críticos, porque há verdadeiras
empresas que manejam os discursos da espiritualidade que, não raro, falam mais
aos bolsos do que aos corações. Há líderes religiosos que são expressão do
mercado com sua pregação do evangelho da prosperidade material e, recentemente,
do domínio. Conquistam muitos fiéis de boa fé, para os interesses
monetários de si próprios como pastores.
Entretanto, os portadores permanentes do mundo espiritual são geralmente
pessoas comuns que vivem a retidão da vida, o sentido da solidariedade e
cultivam o espaço do Sagrado, seja em suas religiões e igrejas, seja no modo
como pensam, agem, interpretam a vida e cuidam no meio ambiente.
O que importa, porém, é reconhecer que mundialmente há uma demanda por
valores não materiais, porque os materiais se mostram insuficientes para
apaziguar a ânsia do ser humano por algo mais alto e melhor. Em toda parte
encontramos pessoas, especialmente jovens, indignados com o destino previamente
definido em termos de economia, quando se diz que “não há outra alternativa”
(TINA=There is no Alternative). Eles se recusam a aceitar os caminhos
que os poderosos definem para a humanidade trilhar. Esses jovens dizem: “Não
permitiremos que nos roubem o futuro. Merecemos um destino melhor, precisamos
beber de outras fontes para encontrar um novo caminho”.
Por isso, resulta importante, desde o início, introduzir uma distinção –
sem separar, mas distinguir – entre o mundo religioso e o mundo espiritual,
entre a espiritualidade natural e a religião. Aliás, o Dalai Lama o fez de
forma brilhante no livro Uma Ética Para o Novo Milênio (Sextante,
Rio de Janeiro 2000). Permito-me citar um tópico do livro de cuja compreensão
participo e faço minha.
“Julgo que religião (mundo religioso) esteja relacionada com a crença no
direito à salvação pregada por qualquer tradição de fé, crença esta que tem
como um de seus principais aspectos a aceitação de alguma forma de realidade
metafísica ou sobrenatural, incluindo possivelmente uma ideia de paraíso ou
nirvana. Associados a isso estão ensinamentos ou dogmas religiosos, rituais,
orações e assim por diante”.
“Considero que espiritualidade (mundo espiritual) esteja relacionada com
aquelas qualidades do espírito humano – tais como amor e compaixão, paciência e
tolerância, capacidade de perdoar, contentamento, noção de responsabilidade,
noção de harmonia – que trazem felicidade tanto para a própria pessoa quanto
para os outros”.
“Ritual e oração, junto com as questões de nirvana e salvação, estão
diretamente ligados à fé religiosa, mas essas qualidades interiores não
precisam ser. Não existe, portanto, nenhuma razão pela qual um indivíduo não
possa desenvolvê-las, até mesmo em alto grau, sem recorrer a qualquer sistema
religioso ou metafísico” (p.32-33).
Como se depreende, alguém pode ser religioso sem necessariamente ser
espiritual. Bem como pode ser espiritual sem ser religioso. O ideal seria ser
religioso e simultaneamente espiritual. Mas não necessariamente.
Há toda uma pesquisa, feita especialmente nos USA, que envolve
psicólogos, educadores e a new science que tem aprofundado a
espiritualidade natural, vale dizer, a espiritualidade como um dado objetivo da
natureza humana. Famoso ficou o “Manual de Psicologia e de
Espiritualidade” do Prof. Miller no qual reúne os principais estudos
sobre a psicologia e a espiritualidade natural. Aí se enfatiza que,
independente da religião, “cada criança nasce com a capacidade inata para um
desenvolvimento espiritual, capacidade que deve ser entendida como uma dimensão
natural, da integralidade do ser humano; ela garante um suporte importante e
vital para a resiliência, provê significado e propósito para o desenvolvimento
da cognição emocional, social e moral da pessoa; essa capacidade inata pode
madurar tanto dentro quanto fora da religião institucional”. À base destes
estudos, Steven Rockefeller, filósofo e um dos principais redatores da Carta da
Terra, propõe uma “democracia espiritual”, portanto um dado originário que
deveria estar presente na democracia, desde a mais tenra infância e no
currículo escolar (Spiritual Democracy,N.Y. 2022).
Viver a espiritualidade natural, dado de nossa natureza humana, com os
valores referidos acima que são também os mesmos do Jesus histórico, poderão
sinalizar caminhos que nos apontam para uma eventual saída bem-sucedida das
muitas crises dos tempos atuais. O invisível do espírito faz parte do visível.
Fonte: Por Leonardo Boff, em A Terra é Reonda
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