Jair de Souza:
Lula, a democracia relativa, os meios de comunicação capitalistas e a luta de
classes
Estão
causando furor entre os representantes da mídia corporativa (proprietários e
serviçais) as recentes declarações sobre a democracia feitas por Lula durante
uma entrevista dada à Rádio Guaíba, de Porto Alegre.
Ao
se referir à Venezuela e dizer que a democracia é uma questão relativa, Lula
transgrediu os limites que os controladores dos meios de comunicação
capitalistas traçaram com o objetivo de isolar o regime venezuelano e impedir
sua sobrevivência.
Com
isso, estão colocando em prática um plano semelhante ao que já vêm aplicando
contra Cuba há mais de 70 anos.
Em
primeiro lugar, gostaria de esclarecer que, do ponto de vista de quem defende
os postulados do grande capital sediado nos centros imperialistas do planeta,
assim como para os que lhes são associados nos países periféricos, o
significado que as forças chavistas vem atribuindo à democracia na Venezuela
realmente representa um mau exemplo e, por isso, deveria ser extirpado o mais
rapidamente possível.
Aqui
no Brasil, os comunicadores a serviço dos órgãos alinhados aos interesses das
classes dominantes estão furiosos por Lula não ter se referido expressamente ao
governo venezuelano como antidemocrático.
Citam
como exemplo patente de arbitrariedade, entre outras coisas, o fato de a líder
procapitalismo da Venezuela, Maria Corina Machado, ter sido declarada
inelegível. Esta é a alegação mais recente que essa gente está levantando para
reforçar suas desqualificações contra o regime venezuelano.
No
entanto, depois de ter apoiado todo o processo lavajatista que redundou na chegada
do bolsonarismo ao comando do Estado, essa mesma mídia acabou por dar-se conta
de que, sob o comando de Bolsonaro, os objetivos estratégicos das classes que
representa corriam sérios riscos.
Embora
as diretrizes econômicas de viés neoliberal adotadas pelo ministro Paulo Guedes
estivessem sempre em total sintonia com as aspirações dos setores hegemônicos
dessas classes dominantes cuja vozeria é expressada por nossa mídia
corporativa, a inabilidade política, a incapacidade cognitiva e a notória imprudência
do ex-capitão representavam um fator de instabilidade que representava uma
ameaça para a continuidade do processo de apropriação em seu benefício
exclusivo da riqueza produzida pelo trabalho coletivo de nosso povo.
Por
isso, a decretação da inelegibilidade de Bolsonaro foi compreendida e aceita
por quase todos os órgãos procapitalistas.
Até
este momento, não se observou nenhuma condenação séria ao julgamento que
determinou a proibição de o ex-presidente miliciano voltar a participar em
pleitos eleitorais pelos próximos oito anos por causa de sua conduta indevida
durante a reunião em que convocou embaixadores estrangeiros para criticar nosso
sistema eleitoral.
Porém,
se fôssemos comparar as razões aludidas para a condenação de Bolsonaro com as
que se aplicaram no caso de Maria Corina Machado na Venezuela, chegaríamos à
inevitável conclusão de que, lá, os crimes cometidos foram ainda mais graves e
as justificativas para a aplicação da inelegibilidade foram muito bem
fundamentadas.
Maria
Corina Machado estava umbilicalmente vinculada ao governo fantoche de Juan
Guaidó, aquele que os Estados Unidos e os demais países imperialistas criaram
para tentar derrotar o presidente que o povo venezuelano tinha escolhido nas
urnas.
Mas,
esse fato não seria nada em vista dos outros crimes que foram perpetrados por
aqueles que o implementaram.
Basta
lembrar que quase todos os recursos do Estado venezuelano que estavam
depositados em bancos da Inglaterra foram confiscados (roubados) e transferidos
para o controle da quadrilha de Juan Guaidó e Maria Corina Machado.
Além
disso, a grande empresa distribuidora de derivados de petróleo que a Venezuela
mantinha nos Estados Unidos (CITGO) para possibilitar a distribuição de seus
produtos nos Estados Unidos foi confiscada e entregue à gangue controlada por
Juan Guaidó e Maria Corina Machado.
Em
consequência do roubo de recursos vitais para o funcionamento do aparelho de
Estado na Venezuela durante o período da pandemia de COVID-19, todo o povo
venezuelano padeceu com mais intensidade os graves efeitos que essa nova
enfermidade acarretou.
Enquanto
as maiorias humildes sofriam os rigores causados pelo coronavírus, Juan Guaidó,
Maria Corina Machado e seus associados dilapidavam os recursos públicos para a
arquitetação de seu plano de comandar a nação a despeito de não terem sido os
escolhidos para esse fim.
Se
Maria Corina Machado tivesse se envolvido em projeto semelhante nos Estados
Unidos, na Inglaterra, ou em qualquer dos outros países do bloco imperialista,
ela muito provavelmente não teria sido declarada inelegível. Ela simplesmente
teria sido condenada à morte por alta traição à pátria.
Vamos
recordar o que está acontecendo com Julian Assange tão somente por ele ter
revelado ao mundo as provas dos crimes de guerra praticados pelas forças
invasoras dos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão.
Porém,
as linhas editoriais de nossos meios de comunicação controlados pelo grande
capital nunca puseram os Estados Unidos em suas manchetes como sendo um país
evidentemente antidemocrático.
E
por que não?
Exatamente
por aquilo a que Lula fez referência na já mencionada entrevista: a democracia
é sempre uma questão relativa.
Não
existe a tal democracia absoluta, aquela democracia que serve igualmente para
todo mundo, para todos os setores da sociedade. A democracia é, sempre foi e
sempre será, dependente da correlação de forças existentes em cada país onde
esteja sendo praticada ou escamoteada.
Em
um artigo que publiquei em agosto de 2022, procurei mostrar como havia visões e
percepções muito diferenciadas entre aqueles que estavam empenhados na luta
para a derrota do governo bolsonarista que por então infernizava nosso país.
Todos
nós enfatizávamos nosso desejo de defender a democracia e a necessidade de
derrotar o bolsonarismo. Mas, conforme tentei deixar evidente naquele texto,
nem todos nutríamos o mesmo entendimento do que seria essa democracia pela qual
dizíamos estar batalhando.
Havia
grupos de pessoas cuja oposição à gestão bolsonarista se devia a que o
comportamento desordenado e intempestivo de seu comandante afetava
negativamente a previsibilidade que o mercado requer para que seus negócios
possam ser viabilizados com perspectivas de futuro.
Em
outras palavras, um bom número de empresários estava descontente com o
bolsonarismo porque com ele seus negócios não contavam com as garantias
necessárias para assegurar boa lucratividade aos investimentos que fossem
feitos.
Sim,
para esses empresários a principal importância da democracia é criar condições
para que eles possam investir sem correr risco nenhum.
Parece
contraditório o que acabei de dizer? Sim, mas é exatamente isto o que quis
expressar.
Em
outras palavras, éramos e somos os que vemos validade na democracia desde que
ela sirva para ajudar-nos a eliminar as desigualdades e possibilite que um
maior nível de justiça social seja alcançado.
Para
os que assim pensamos, a democracia não é uma formalidade. Não existe igualdade
de direitos entre um bilionário e um mendigo, por mais que se diga que todos
são iguais perante a lei.
Não
existe justiça e meritocracia quando os filhos de pobres precisam disputar
espaços com os oriundos de famílias acaudaladas.
Como
um jovem que teve de começar a trabalhar quando ainda era criança vai poder
disputar uma vaga para algum cargo administrativo de prestígio com aqueles que
sempre receberam tudo o necessário para sua devida preparação?
Para
que as leis possam ser justas e terem aplicabilidade geral é preciso que haja
igualdade de condições entre os que vão estar submetidos aos dispositivos
legais.
É
claro que as classes dominantes e todos aqueles que defendem suas posições não
gostam da visão de democracia que acabei de expor.
Para
nós, para que haja democracia de verdade, essa democracia precisa amparar
aqueles que partiram de condições precarizadas.
Nenhum
regime pode ser democrático num sentido que reflita os interesses das maiorias
se não levar em consideração que os mais fragilizados precisam ser amparados
para que possam ser tratados em pé de igualdade com os detentores de
privilégios advindos de sua situação econômica.
É
por isso que as classes dominantes e seus bajuladores só podem aceitar a
democracia desde que ela não afete sua realidade concreta, essa realidade que
lhes garante que continuarão a usufruir das riquezas que as maiorias produzem.
Não
foi à toa que toda essa gente se sentiu ultrajada com a concepção de
relatividade que Lula aplicou à democracia.
A
democracia nunca eliminou a luta de classes, inclusive na hora de sua própria
interpretação.
Fonte:
Viomundo
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