10 anos após o
golpe de Estado no Egito: Como estão os direitos humanos
Assinala-se,
esta segunda-feira (03.07), uma década desde o golpe de Estado que deu origem
ao atual governo do Egito. A 3 de julho de 2013, os militares egípcios
destituíram do poder o primeiro Presidente democraticamente eleito no país e
instauraram um governo provisório.
Na
altura, com o país a atravessar uma grave crise política e económica, um
general de topo do exército egípcio, Abdel-Fattah al-Sissi, explicava aos seus
concidadãos que os militares haviam deposto o Presidente Mohamed Morsi porque
este não tinha conseguido criar "um consenso nacional". Garantia
ainda que os militares não tinham interesse em manter o poder político e
facilitariam o regresso a um governo democrático.
Dez
anos passaram e al-Sissi ainda está no poder. A qualidade de vida do cidadão
comum egípcio está pior do que nunca. A economia está em crise, sobrecarregada
com a dívida externa, com uma inflação crescente e com uma moeda que se
desvalorizou quase para metade. Estima-se que um terço dos 105 milhões de
egípcios viva na pobreza.
Para
além disso, cada vez mais jornalistas independentes e ativistas anti-Governo
têm sido perseguidos ou detidos.
O
"think tank" norte-americano Freedom House classifica o Egito como um
país "não livre" e que tem, nos últimos cinco anos, vindo a cair no
seu ranking anual que avalia os parâmetros dos direitos políticos e liberdades
individuais de cada país. O Egito caiu dos 26 pontos em 100 em 2018, para os 18
em 100 em 2023. Para efeitos de comparação, Marrocos obtém 37 pontos em 100,
enquanto a Alemanha obtém 94.
O
país tornou-se também líder mundial em matéria de pena de
morte.
E a nova legislação, incluindo uma lei que obriga as organizações não
governamentais a registarem-se junto do Estado, reduziu ainda mais o espaço
para a atuação da sociedade civil ou o ativismo.
·
Abordagem
equilibrada precisa-se
Observadores
ouvidos pela DW afirmam que, tanto os vizinhos regionais do Egito , como os
aliados ocidentais, têm tido uma abordagem desequilibrada em relação a estas
questões. Isto porque abordam regularmente os problemas económicos do país,
deixando de lado o seu historial em matéria de direitos humanos.
No
início de 2022, mais de 170 deputados de vários parlamentos europeus escreveram
uma carta aberta aos seus próprios diplomatas e embaixadores no Conselho dos
Direitos Humanos das Nações Unidas, pedindo a criação de um órgão especial para
acompanhar a deterioração da situação dos direitos humanos no Egito. A carta
foi enviada pouco antes da reunião anual do Conselho.
"Estamos
extremamente preocupados com o fracasso persistente da comunidade internacional
em tomar qualquer medida significativa para resolver a crise dos direitos
humanos no Egito", escreveram os políticos. "Este fracasso,
juntamente com o apoio continuado ao governo egípcio e a relutância em falar
contra os abusos generalizados, só contribuiu para o aprofundar do sentimento
de impunidade das autoridades egípcias".
Um
ano mais tarde, pouco antes da reunião anual seguinte do Conselho, sete ONG de defesa
dos direitos humanos publicaram outra carta aberta, abordando a questão.
Não
houve "qualquer seguimento consequente (...) apesar da situação dos
direitos humanos no Egito se ter deteriorado ainda mais", diz a carta,
assinada por sete organizações, incluindo a Amnistia Internacional, a Human
Rights Watch e a Repórteres Sem Fronteiras.
De
visita à Alemanha no verão passado, Sanaa Seif, irmã de Abdel-Fattah, um dos
presos políticos mais conhecidos do mundo árabe, queixou-se do mesmo.
"Não
faz sentido quando vejo os políticos alemães a evitarem falar de direitos
humanos", disse Seif à DW na altura. "É como se não quisessem ser
ouvidos".
·
O
que justifica este silêncio?
Para
Timothy Kaldas, diretor-adjunto do Instituto Tahrir para a Política do Médio
Oriente, há uma série de fatores.
Situado
na intersecção entre a África, a Ásia e a Europa, o Egito tem uma localização
estratégica muito importante e, dada a dimensão da sua população e do seu
exército, tem sido frequentemente considerado uma potência regional importante.
Como tal, tem sabido colocar diferentes aliados internacionais uns contra os
outros.
"Quando
o Egito é pressionado pelos Estados do Golfo, pode recorrer aos EUA e, quando é
pressionado por estes, pode recorrer a França", explica Timothy Kaldas, que
acrescenta:
"Isto
surge frequentemente nas reuniões. Se formos às reuniões dos ministérios dos
negócios estrangeiros ou em instituições financeiras internacionais e falarmos
de condicionamentos [em matéria de direitos humanos], vai haver alguém a dizer:
'bem, e depois se eles forem para aquele outro sítio e nós perdermos o
acesso?'”.
O
Egito também tem sido hábil na construção de laços bilaterais através de
grandes negócios de armas, explica Kaldas. Um relatório anual francês sobre a
venda de armas, publicado no final de 2022, mostra que o país tem sido o
principal importador de armas de França desde 2012. É também um dos maiores
compradores de armas da Alemanha. O volume de exportações de armas para o Egito
aumentou durante o governo de al-Sissi e transformou o país no terceiro maior
importador de armas do mundo.
E
as razões não se ficam por aqui. Apesar do autoritarismo de al-Sissi, o Egito é
um país relativamente estável no Médio Oriente, especialmente quando comparado
com a Síria ou o Iémen.
"Ou
seja, é mais fácil justificar a injeção de dinheiro no Estado egípcio, na
esperança de que este mantenha a estabilidade". Até porque, continua o
diretor-adjunto do Instituto Tahrir para a Política do Médio Oriente, "o
Egito tem 100 milhões de habitantes". Para uma Europa, incessantemente
assombrada pelo espetro da migração ilegal e pela potencial reação política
populista à mesma, "isso é muito importante", diz.
Ainda
assim, argumenta Timothy Kaldas e outros analistas, nenhuma destas razões
desculpabiliza o silêncio sobre os direitos humanos no país.
"O
problema é que, fundamentalmente, os Estados ocidentais não conseguem muitas
vezes avaliar a falta de visão da sua abordagem. Não é tanto que estejam a
obter estabilidade em troca de olharem para o lado em relação às violações dos
direitos humanos. Na verdade, as violações dos direitos humanos estão a
contribuir diretamente para a instabilidade económica do Egito. A crise
económica no país deve-se ao facto de a estratégia [de al-Sissi] da última
década ter sido a de utilizar o Estado de forma imprudente para financiar a sua
consolidação do poder e a sua rede de clientelismo", diz o analista.
·
Mega-projetos
Um
estudo recente do Instituto Alemão para os Assuntos Internacionais e de
Segurança em África e no Médio Oriente, intitulado "Empréstimos ao
Presidente", dava conta que "os fundos disponíveis não são
canalizados para investimentos produtivos para o futuro, mas sim para projetos
de infraestruturas economicamente questionáveis e servem, pelo menos indiretamente,
para financiar a repressão policial".
O
mesmo documento dava conta que foram os militares egípcios os que mais
beneficiaram deste dinheiro, em grande parte proveniente de empréstimos
estrangeiros.
"Este
foi um fator decisivo para a consolidação do poder do Presidente
al-Sissi", disse Stephan Roll, responsável pela investigação em África e
no Médio Oriente. "Para [al-Sissi], a lealdade das forças armadas tem sido
o pré-requisito mais importante para impor uma ampla repressão
policial-estatal... Dezenas de milhares de presos políticos e um número
dramático de sentenças de morte e execuções, mesmo para os padrões egípcios,
são uma expressão deste desenvolvimento."
Tanto
Stephan Roll como Timothy Kaldas sugerem uma solução semelhante: reconhecer as
ligações entre o dinheiro que entra no Egito e as violações dos direitos
humanos cometidas pelo Estado.
"Não
cabe a uma potência externa forçar o Egito a tornar-se uma democracia",
diz Kaldas. "Mas a tarefa é deixar de subsidiar a autocracia e facilitar a
transformação do Egito numa ditadura".
Fonte:
Deutsche Welle
Nenhum comentário:
Postar um comentário