Vítimas desmascaram
torturador herói de Bolsonaro
O
golpe militar que no dia 31 de março de 1964 jogou o Brasil em uma ditadura
causadora de morte, tortura e desaparecimento de milhares de pessoas, tem como
um de seus principais ícones Carlos Alberto Brilhante Ustra. O coronel, que
faleceu em 2015, foi reconhecido pela Justiça como torturador. Mais que isso:
as vítimas relatam que seu nível de crueldade era insuperável. Mesmo assim, nos
últimos anos a extrema direita tenta fazer dele alguém respeitável. Ficou
tristemente marcada a “homenagem” que o então deputado Jair Bolsonaro fez a
Ustra no dia da votação do impeachment de Dilma Roussef. Bolsonaro depois o
chamaria de “herói”. Também o senador Hamilton Mourão já disse que Ustra foi um
“homem de honra”.
Os
depoimentos das três vítimas da tortura que são destaque nessa coluna confirmam
as práticas bárbaras que Brilhante Ustra exerceu durante a ditadura. Elas
sobreviveram a um criminoso a quem a Comissão da Verdade atribuiu pelo menos 45
mortes. O momento em que levou crianças de 4 e 5 anos para assistirem a mãe ser
torturada após ter sido estuprada; a sequência de choques elétricos nos ouvidos
de um preso que o fizeram perder parte da audição e o sadismo de obrigar que
uma vítima que não conseguia caminhar usasse coleira e andasse de quatro, como
um cão, não revelam somente a covardia e a bestialidade de Ustra. Colocam em
xeque os conceitos de heroísmo e honradez de Bolsonaro e Mourão, assim como de
todos os que pensam como eles. Com a palavra, as vítimas: “Mamãe, por que você ficou
azul?” Maria Amélia Teles, a Amelinha Teles (hoje com 78 anos), fazia parte do
Partido Comunista do Brasil, quando foi sequestrada por agentes da ditadura e
levada para o Doi-CODI de São Paulo, junto com o marido, Cézar, e com Carlos
Nicolau Danielli.
“Fomos
sequestrados na Vila Clementina, bem perto do Doi-CODI, e levados para lá no
dia 28 de dezembro de 1972. Logo que chegamos no pátio, arrancaram meu marido e
o Daniele do carro e passaram a dar chutes e socos no estômago e na cara. Eram
muitos homens, mas tinha um que comandava. Depois viria a saber que era o
Carlos Alberto Brilhante Ustra, na época major. Ele usava nome falso, era
chamado de dr. Silva ou dr. Tibiriçá. Por achar absurdo que tantos homens
estivessem agredindo os dois que estavam comigo, me dirigi ao Ustra e perguntei
a ele: “O sr. que está comandando esses homens, vai deixar um negócio desses
acontecer aqui? Vai permitir que eles sejam mortos?”. Antes de responder
qualquer coisa, ele me deu um safanão com as costas das mãos que me fez cair
longe, no chão do pátio. Depois gritou: “Foda-se, sua terrorista!”. Os homens
naquele momento vieram me agarrar. Então, nós três fomos levados para a sala de
tortura. Era Ustra quem comandava as torturas. Eles arrancavam as roupas dos
torturados, nunca fui torturada vestida. Chamavam aquilo de interrogatório.
Passei por diversos tipos de torturas. Tinha choque elétrico na vagina, no
seio, na boca, no ouvido. Tinha palmatória, com uma madeira toda furada, de
maneira que a pele vai soltando. Fui espancada por vários homens, além dele.
Normalmente ficavam cinco a oito homens fazendo essas agressões. Além de
espancamento, colocavam arma na cabeça, dizendo que poderiam estourar meus
miolos a qualquer momento. Naquela primeira noite mesmo eu fui estuprada por um
deles que era Lourival Gaeta, que tinha o codinome Mangabeira. Ustra dava
ordens e algumas vezes também torturava, quando não achava que os subordinados
estavam sendo violentos o suficiente. Fazia isso gritando palavrões. Um dia,
Ustra foi buscar em casa meus dois filhos, Edson, de 4 anos, e Janaína, de 5
anos, e minha irmã, Criméia, grávida de oito meses. Ele espancou a minha irmã.
E teve a desfaçatez de levar meus filhos para dentro de uma sala onde eu estava
sendo torturada, nua, vomitada, evacuada. Minha filha me olhou e perguntou:
“Mãe, por que você ficou azul?”. Eu estava toda roxa, pelos hematomas. Fiquei
ali de 28 de dezembro a 14 de fevereiro. Ustra era uma pessoa extremamente
perversa, tinha todas as características de fascista. Anunciou a morte de meu
amigo Danielli com alegria. Morreu nas mãos dele, de tanto ser torturado. ‘Vai
para a vanguarda popular celestial’, ele falou. Ustra é responsável por mais de
50 mortes. Não se trata de assunto pessoal, os outros concordavam com ele. É
uma questão institucional. Quando você está sendo torturada, quer morrer. Mas a
força da vida é grande. Pensava que tinha que sobreviver para contar ao mundo o
que acontecia ali. Quando saí, não tive tempo de fazer psicanálise, tive que
procurar emprego, lutar para recuperar a guarda de meus filhos, que Ustra
tirou. Meus filhos, sim, ficaram dilacerados e tiveram que fazer muita
psicoterapia. A tortura é uma ferida que não cicatriza na gente. E às vezes
sangra”.
Gilberto
Natalini (hoje com 71 anos) estava no terceiro ano de Medicina, se definia como
“contra o governo”, mas não era ligado a nenhuma organização. Se colocava,
inclusive, contra a luta armada. Por ter vendido o jornal de um grupo da luta
armada, foi preso em agosto de 1972.
“Fui
levado para o Doi-CODI e o próprio Ustra me interrogou. No início, foi
violência psíquica. Ele ficava com uma luz fortíssima em cima de mim, gritando,
vociferando. Alguns dias depois, já comecei a apanhar. Eles batiam, davam
socos, tapas, choque no corpo, na orelha. Eu sem roupa. Em uma noite, o próprio
Ustra me colocou descalço em cima de duas latas grandes. Jogou água no chão e
ligou os fios elétricos, para dar choques. Além disso, me batia com um cipó,
que usava como chicote. A sala estava cheia de agentes e ele me usava como uma espécie
de cobaia. Os choques eram nas mãos, nos dedos, nas orelhas. Fiquei um mês com
sangramento, porque eles machucaram meus ouvidos com choques elétricos. Acabei
ficando com 40% a menos de audição no ouvido esquerdo e 25% a menos no ouvido
esquerdo, como sequela do que o Ustra fez comigo. Eles queriam saber quem fazia
os jornais do Molipo (Movimento de Libertação Popular) chegar às universidades.
Ficamos lá quase dois meses apanhando por causa disso. A dor era intensa, mas
eu não falei. Via o Ustra quase diariamente. Quando tinha interrogatório, na
maioria das vezes ele entrava na sala, mas nem sempre sujava as mãos. Gritava,
dava ordens, sempre muito bestial. Era um monstro. Não era possível nem falar
com ele. Não dava chance, era quase uma compulsão que ele tinha pela tortura.
Havia também uma estratégia que era vir um dos agentes e bater, bater, bater
bastante. Dava choque. Aí saía esse e entrava outro, que se fingia de bonzinho,
trazia um copo d’água e dizia ‘Você tem que falar ou então você vai morrer’.
Depois recomeçava a tortura. Eu vi gente morrer lá. Aquele Benetazzo (Antonio
Benetazzo, líder estudantil e artista plástico ítalo-brasileiro) foi preso. A
gente ouvia ele gritar a noite inteirinha, urrava de dor. No dia seguinte, saiu
arrastado, morto. Mataram ele lá dentro. Meu pai, seu Urbano, morava na cidade
de Macaé (RJ) e conseguiu o bilhete de um general, escrito a lápis, como
permissão para vir a São Paulo me ver. Ele era um homem pobre, que se esforçou
para me botar na faculdade. Me deu uma bronca. Perguntou como fui me meter em
uma encrenca daquelas, prejudicando a família. Disse pra ele que ele não
precisava ir à prisão me torturar ainda mais porque ali tinha gente paga com o
imposto dele para fazer isso. Abri a boca e mostrei a mucosa da boca em carne
viva, por causa dos choques. Mostrei os braços queimados e machucados. Meu pai
teve um ataque de choro e foi preciso vir muitos homens para tirar ele dali,
porque dizia que queria ficar preso no meu lugar. Meu pai era um cara de
direita. Depois de ver o que aconteceu comigo e o que era ser de direita, ele
foi para a esquerda, virou brizolista. Aqui fora, não fiz tratamento
psicológico nenhum, administrei bem o trauma da tortura. Sabia que não tinha
feito nada errado. Esse sonho que eu tenho até hoje embalou a minha saúde
mental”.
Emilio
Ivo Ulrich (hoje com 75 anos) atuava na VPR (Vanguarda Popular Revolucionária),
grupo que praticava guerrilha urbana, sob comando de Yoshitane Fujimori. Tinha
23 anos quando foi preso, no dia 20 de novembro de 1970.
“Fui
preso no apartamento onde morava e levado para o Doi-CODI. Na chegada já
mandaram que eu tirasse a roupa, lá no pátio. Subi imediatamente para uma sala
de tortura. Fui recebido pelo Ustra e passei a ser torturado. Me perguntavam
onde estava Yoshitane Fujimori. Ustra ficava na porta, supervisionando. Ele
conversou comigo, dizendo que era gaúcho como eu, que era de Santa Maria e eu
de São Valério do Sul. Sabia que eu tinha feito o serviço militar e falou:
‘Você não vai trair o Exército’. Nos primeiros 15 dias fui muito torturado pelo
Ustra e pelas outras equipes apenas com o objetivo de dizer onde estava o
Fujimori. Não queriam saber se eu tinha assaltado banco, se eu tinha
sequestrado alguém. Eu ficava à disposição dos torturadores 24 horas. Algumas pessoas
perguntam como eu aguentei. Eu tomei a decisão de não entregar Fujimori, porque
se entregasse ele teria que entregar outros. Há 15 anos processei o Estado
brasileiro por danos morais, por conta das torturas, e ganhei. Nesse processo
está comprovado que eu era torturado até três vezes por dia. Comecei sendo
torturado pela famosa maquininha do choque elétrico. Na sequência, foi
palmatória e depois foi intensificando. Passei pelo pau-de-arara e pela cadeira
do dragão, feita de metal, que possibilita você levar choque no corpo todo.
Cada dia era um tipo de tortura. O Ustra supervisionava especialmente a
intensidade da tortura. Um dia, eu estava sendo torturado na cadeira do dragão
e achou que os agentes estavam me dando moleza. Ele mandou que eu saísse dali,
mas meus pés estavam em carne viva, por conta da palmatória. Não conseguia
andar. Ustra mandou colocar uma coleira no meu pescoço e falou para que me
arrastassem. Fui transformado em um cachorro. Me mandou para o chuveiro para
que me recuperasse. Quando achou que eu estava melhor, me mandou para o
pau-de-arara. Era assim. No dia 5 de dezembro, 15 dias após minha entrada ali,
metralharam Fujimori. Ele foi levado para o DOI-Codi, chegou vivo. Eu fui
levado para reconhecê-lo. Pouco depois, ele morreu. A partir daí, passaram a
exigir que eu entregasse um outro companheiro. Evidentemente, mantive meu
comportamento. Não entreguei ninguém. Várias vezes eu achei que não iria
resistir. Ustra foi o maior torturador que existiu no Doi Codi. Até nos dias
que estava com a família dele passeando no pátio, deixava as filhas e ia lá
torturar. Mas ele não se autoproclamou para aquele papel, o Exército Brasileiro
formou aquele monstro. As mulheres sofriam mais, já que eram estupradas. Os
oficiais do Exército estupravam as companheiras e o Ustra lá, rindo. Escrevi um
livro sobre aqueles dias que tem o título ‘A tortura não tem fim’. Porque a
prisão acaba, mas a gente carrega a tortura até morrer. Não sou um
ex-torturado, eu sou um torturado. Passei muitos anos sendo torturado pelo
Ustra todas as noites”.
Lula se encontra semanalmente com chefes
militares
Os
militares têm buscado uma reaproximação com o STF (Supremo Tribunal Federal) e
intensificado a agenda com o presidente Lula (PT), após a crise de 8 de
janeiro.
Encontros
entre Lula e os comandantes das três Forças Armadas se tornaram quase semanais
no último mês. Mediados pelo ministro da Defesa, José Múcio, o presidente tem
recebido militares no Planalto e frequentado a caserna. Os militares também têm
reconstruído pontes com o Judiciário. O general Tomás Paiva, comandante do
Exército, visitou o STF e se reuniu com ministros da Corte Suprema. Mais do que
simbólicos, os encontros mostram uma retomada das relações, abaladas desde 8 de
janeiro. Tanto o Planalto quanto o Supremo viram desleixo e até conivência por
parte das Forças Armadas –em especial do Exército, onde houve troca de comando–
nos atentados golpistas.
Lula
tem intensificado os eventos junto aos militares. Antes de ser diagnosticado
com uma pneumonia leve na semana passada, os encontros estavam se tornando
periódicos. A agenda deste mês:
No
último dia 9, recebeu o presidente do STM (Superior Tribunal Militar),
Francisco Joseli Parente Camelo, no Planalto; No dia 15, almoçou com o
almirantado da Marinha, incluindo o almirante Marcos Sampaio Olsen, na sede do
comando; No dia 16, foi à posse do ministro Francisco Joseli Parente Camelo, no
STM; No dia 20, se reuniu com Múcio e os três comandantes no Planalto; No dia
23, visitou o Complexo Naval de Itaguaí, no Rio de Janeiro, com a presença de
Olsen. O próximo encontro já está previsto para segunda-feira (3), por um
convite do comandante do Exército para um almoço no quartel-general em
Brasília. Ele também já foi convidado para as celebrações do Dia do Exército,
em 19 de abril. Lula decidiu tomar frente dos encontros, que por dois meses
estavam sendo mais encabeçados pelo vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB). Como
fruto dessa aproximação, o Planalto conseguiu avançar na despolitização das
Forças —Múcio tem trabalhado por uma PEC neste sentido. Além disso, após
reuniões com Lula, Exército, Marinha e Aeronáutica determinaram 90 dias para
que os militares da ativa com ligação partidária se desfiliassem ou fossem para
a reserva. Outro aceno do Exército foi a decisão de acabar com a leitura da
ordem do dia alusiva ao dia 31 de março, aniversário do golpe militar no
Brasil, que completa 59 anos hoje. A homenagem havia sido extinta por FHC e foi
retomada por Jair Bolsonaro (PL) em 2019. Segundo fontes da caserna, isso se
deve a uma interpretação de Tomás Paiva de que “o normal era não existir” essa
celebração.
Tomás
Paiva também tem procurado ministros do Supremo para reconstruir pontes que
ficaram estremecidas entre a Corte e as Forças Armadas após a gestão de
Bolsonaro. A interlocutores, o comandante do Exército tem dito que procura
contato com os ministros para apresentar o seu trabalho e o que planeja fazer à
frente da Força —a intenção é construir um “diálogo institucional” com o
Supremo. Na última quarta (29), ele esteve com a ministra Cármen Lúcia no tribunal.
Antes, já havia se encontrado com o decano Gilmar Mendes. Tomás Paiva e Gilmar
já são velhos conhecidos e atuaram juntos no governo FHC. O general era
ajudante de ordens do ex-presidente. Já o ministro do STF era advogado-geral da
União. Antes, o comandante já havia se reunido com a presidente Rosa Weber e o
ministro Alexandre de Moraes, presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
Paiva também deve se encontrar com o ministro Luiz Fux, ex-presidente do STF,
após a Páscoa. A aproximação ocorreu em meio à decisão de Moraes de concentrar
os casos de militares envolvidos nos atos golpistas de 8 de janeiro no Supremo.
Como mostrou o UOL, o Exército concordou com a medida. Tomás Paiva já havia
sinalizado a interlocutores do tribunal que achava que militares que praticaram
vandalismo e depredação à sede dos três Poderes cometeram crimes civis e, por
isso, deveriam responder como civis. Integrantes da Suprema Corte relataram ao
UOL que a atitude de Tomás Paiva na “difícil missão” de pacificação tem sido adequada.
A tendência, na avaliação dos magistrados, é que as relações voltem à
“normalidade institucional”.
Fonte:
UOL
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