Aumenta a violência
em conflitos de terra com empresa de óleo de palma na Amazônia
Uma
nova onda de conflitos de terra entre a maior exportadora de óleo de palma do
país e comunidades tradicionais foi deflagrada nos últimos dias na Amazônia,
gerando preocupação sobre a escalada da violência na região.
Comunidades
indígenas e quilombolas do Pará acusam a Brasil BioFuels S.A. (BBF) de ataques
violentos durante atos de reintegração de posse de uma área em disputa na
região do Acará. A empresa nega as acusações e alega que foram as comunidades
locais que atacaram seus funcionários. As autoridades estão investigando o
caso.
Uma
fonte do povo indígena Tembé, que pediu para não ser identificada por razões de
segurança, descreveu à Mongabay o ataque de 12 de abril: “Eles passaram
praticamente a semana ameaçando os quilombolas e os indígenas. Os seguranças da
empresa chegaram armados, para nós desocuparmos as áreas”. A fonte disse que os
indígenas resistiram e que “eles acabaram não nos machucando”, mas logo em
seguida os seguranças foram para a área ocupada pelos quilombolas e “dispararam
tiros” contra eles. “Eles não resistiram, acabaram saindo pelo ataque”, disse a
fonte em uma mensagem de áudio.
Os
quilombolas tomaram a iniciativa de construir um portão junto com líderes
indígenas, disse a fonte, na divisa da área reivindicada como terra ancestral,
para dificultar o acesso dos seguranças armados. “Foi aí que a BBF [se]
revoltou de novo contra nós”, disse a fonte, relatando que na madrugada de 15
para 16 de abril “veio muita polícia, muito segurança” e que mais de 20
viaturas que expulsaram os quilombolas e destruíram o portão.
Desde
2021, a Mongabay tem publicado investigações com denúncias de grilagem de
terra, violência, contaminação da água por agrotóxicos e outros crimes
ambientais atribuídos a empresas de óleo de palma no Pará. No caso do BBF, a
“guerra do dendê”, como reportado pela Mongabay em outubro, resultou na
suspensão da compra de multinacionais.
A
área em disputa está localizada nos arredores da sede da Fazenda Vera Cruz, da
BBF. Em resposta por e-mail, a BBF disse que um grupo de 30 funcionários da
fazenda “permaneceu em cárcere privado por três dias inteiros devido ao
bloqueio da estrada em que fica localizada a fazenda” e que “um grupo armado
formado por lideranças quilombolas impediu que os funcionários recebessem
alimentos, água, medicamentos e combustível para a geração de energia no
local”.
A
empresa informou que seus funcionários só foram liberados em 16 de abril
“graças a uma ação da Polícia Militar”, cumprindo a liminar deferida pelo juiz
de plantão no Fórum de Acará, Giordano Grilo. “Os funcionários relataram ter
vivido momentos de terror, devido às ameaças e à falta de alimentos, água e
combustível”.
A
BBF também acusa um grupo de 30 quilombolas de ter invadido a fazenda Vera Cruz
em 12 de abril para roubar óleo de palma. “Durante a ação, eles ameaçaram de
morte funcionários da empresa e invadiram as instalações do Polo Vera Cruz, com
o objetivo de destruir equipamentos e maquinários. A Polícia Militar retirou os
invasores do local, mas eles retornaram à fazenda da empresa no dia 14, fazendo
novas vítimas”.
A
empresa informou que registrou quatro boletins de ocorrência “por invasões
promovidas pelo grupo de indígenas e quilombolas” somente na semana de 12 de
abril. Segundo a BBF, desde 2021 já foram registrados mais de 750 boletins de
ocorrência pela empresa contra as comunidades “noticiando os mais diversos
tipos de crimes como roubo, furtos, incêndios criminosos, tentativas de
estupro, agressões de trabalhadores, tentativas de homicídio, disparos de armas
de fogo, entre outros”.
As
comunidades negaram as acusações de violência contra os funcionários da BBF. De
acordo com a fonte Tembé, a estrada bloqueada é um acesso secundário não
pavimentado à fazenda, conhecido como ramal, e não a via principal. “A gente
estava só colocando os pilares para a demarcação da área e o que nós não
aceitávamos era que os seguranças passassem armados para nos atacar da forma
com que fizeram [no dia 12]”.
• Denúncias de abusos e milícias na mira
de investigações
Denúncias
de abusos nas disputas de terra e ações de retomada estão sendo investigadas
pelas autoridades do Pará. O Ministério Público Federal informou que está
investigando a ação de milícias armadas e empresas de segurança privada na
região, bem como denúncias de crimes e irregularidades por parte dessas
empresas, disse um porta-voz em uma mensagem de voz.
A
promotora de Justiça Ione Nakamura disse à Mongabay vai apurar as denúncias de
abuso policial nas ações de retomada assim que receber provas e indícios dessas
irregularidades. Ela requereu uma audiência com o juiz da Vara Agrária,
agendada para 28 de abril, para ouvir as partes e dirimir o conflito.
Nakamura
disse que estava liderando as negociações para “a construção de um acordo de
convivência enquanto os órgãos públicos destinam a área a quem de direito”,
dado que os quilombolas alegam que parte da fazenda se sobrepõe ao seu território.
Mas, enquanto houver conflito, disse a promotora em uma mensagem de texto, não
há como destinar a área. “Infelizmente, com acirramento do conflito e situações
de violência, não tem condições de diálogo. Por isso, pedi a audiência”.
Em
uma declaração por e-mail, a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do
Pará informou que equipes especializadas das polícias civil e militar
realizaram “uma ação integrada” para “desocupação e o desbloqueio das vias de
acesso” à fazenda, em cumprimento a uma decisão judicial de 16 de abril. “A
ação foi acompanhada por um oficial de justiça e não houve disparos de arma. Um
inquérito será instaurado para apuração dos fatos”.
A
defensora pública Andreia Barreto, porém, questionou a legitimidade da liminar,
que foi emitida por uma Vara Cível e não pela Vara Agrária. “Para a defensoria,
houve uma violação da competência técnica do juízo, já que no estado do Pará a
Vara Agrária tem competência para conflitos coletivos pela posse e propriedade
da terra”, disse ela à Mongabay por mensagem de voz. Ela afirmou também que
tanto o juiz da Vara Agrária quanto ela estavam de plantão em 16 de abril.
Barreto
disse que não é a primeira vez que a BBF recorre à Vara Cível para obter
liminares de reintegração de posse, “violando inclusive a organização do
judiciário com relação à competência”. “Parece que as varas cíveis concedem a
reintegração com cautelas reduzidas comparadas às varas agrárias e acabam
deferindo o pedido da empresa”.
Guarani Kaiowá protestam contra
condomínio de luxo e são presos
Em
Dourados (MS), a cidade cresce e “engole” áreas reivindicadas pelos Guarani
Kaiowá. É uma luta que já dura mais de 100 anos, e está longe de ter um fim. No
último dia 8 de abril, dez indígenas foram presos após participarem de um protesto
contra a construção de um condomínio de luxo nos limites da zona urbana. A
Tropa de Choque da Polícia Militar efetuou a prisão em flagrante. Menos de 48
horas depois, uma casa de pau a pique de uma família indígena de um dos presos
foi incendiada. Mulheres e crianças dormiam no local.
O
atentado na madrugada do dia 10 faz parte de uma série de violências contra os
Guarani Kaiowá. Fogo, tiros, mortes, ameaças e presenças de jagunços compõem
essa história. O embate com fazendeiros e contra a especulação imobiliária
ficou mais intenso na última década. A área do futuro loteamento residencial,
chamada pelos indígenas de tekoha (território) Yvu Vera, é reivindicada por
eles, assim como o local onde ficava a residência que virou cinzas, no tekoha
Aratikuty.
Os
dez indígenas detidos são acusados de associação criminosa, dano ao patrimônio
privado e ameaça, além de lesão corporal, posse de armas e até esbulho
possessório. De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), eles
negaram em depoimento à Polícia Civil essas práticas e informaram que estavam
no local lutando por direitos.
O
juiz Rubens Petrucci Junior, da 2ª Vara Federal de Dourados, decidiu manter as
prisões, revertidas de flagrantes a preventivas. Doze dias após o conflito,
nove lideranças Guarani Kaiowá e Terena continuam na Penitenciária Estadual de
Dourados. Apenas um idoso de 77 anos foi liberado. A Defensoria Pública da
União e o Ministério Público Federal (MPF) pedem a soltura dos indígenas,
alegando que as prisões foram arbitrárias por falta de materialidade e que
houve uso de força desproporcional.
A
Defensoria Pública da União apresentou um pedido de habeas corpus em conjunto
com o Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Povos Indígenas e da
Igualdade Racial e Étnica (Nupiir), Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso
do Sul, Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Observatório Sistema de
Justiça Criminal e Povos Indígenas e Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
(Apib). “Toda e qualquer prisão antes do trânsito em julgado da sentença
condenatória deve revestir-se de natureza cautelar, constituindo-se em medida
excepcional, devidamente justificada pelos requisitos da cautelaridade e com a
indicação da prova convincente da necessidade de custódia”, diz trecho do
pedido.
Em
nota à imprensa, a DPU informa que o caso foi levado às Cortes Internacionais
de Direitos Humanos, por ser grave “a tentativa de criminalização” dos Guarani
Kaiowá.
·
Lesão
corporal, furto e ameaça
A
ação de prisão dos indígenas tramita na 11ª Turma do Tribunal Regional Federal
da 3ª Região (TRF3). No inquérito, a Defensoria Pública da União informa que
vai questionar a prática dos delitos atribuídos aos indígenas pela Polícia
Militar (PM).
A
Amazônia Real procurou a PM para questionar sobre a operação que resultou nas
prisões, e, por meio de nota, a corporação disse ter sido acionada após um
grupo de indígenas entrar em uma propriedade privada com o objetivo de impedir
a construção do condomínio. A instituição alegou ainda que havia denúncias de
que estavam agressivos e portando facas, facões e armas de fogo. “Também a
referida denúncia foi para atendimento de lesão corporal, furto e ameaça, tendo
em vista que o grupo ameaçou com a referida arma de fogo e lesionou um homem
que é caseiro da chácara ao lado do local”, diz a corporação.
De
acordo com o que foi registrado no boletim de ocorrência, ao chegarem ao local
os policiais “foram recebidos com ameaças” e o grupo de indígenas não quis
falar com eles. Segundo a PM, essa situação motivou a convocação do Batalhão de
Choque da corporação, que se deslocou de Campo Grande (MS) até Dourados.
A
reportagem tentou ouvir representantes dos indígenas sobre o protesto e as
prisões, mas eles sentem medo de sofrerem outras violências devido ao histórico
de uso desproporcional de força contra suas manifestações.
A
empreiteira Corpal Incorporadora e Construtora afirma que a área onde pretende
construir o condomínio é fruto de uma parceria com os proprietários do local.
Relata, por meio de sua assessoria, que o projeto ainda é “embrionário”, não
tem nome e nem campanha de vendas.
No
entanto, ainda que a empresa afirme ter paralisado a obra assim que recebeu um
pedido de informações do MPF sobre o loteamento, um muro de concreto estava
sendo erguido no local e foi isso que levou os indígenas a protestar, pois eles
se sentiram ameaçados pelo empreendimento.
Por
meio de nota, a empresa afirma que prestou os esclarecimentos solicitados pelo
MPF e tem as autorizações e licenças exigidas pelos órgãos responsáveis para
tocar a obra. Destaca também que “mantém contato permanente e diálogo aberto
com representantes das comunidades indígenas residentes nas áreas vizinhas ao
empreendimento.” E afirma que tem o compromisso de gerir um negócio que
“promova o bem-estar da população e contribua para o crescimento sustentável
das cidades”. A empreiteira nega qualquer relação com o incêndio na casa no
tekoha Aratikuty.
A
empresa possui 30 empreendimentos já lançados, outros 30 em desenvolvimento e
cerca de 10 mil clientes em seis Estados do Brasil. A Reserva de Dourados fica
a apenas cinco quilômetros da área urbana. Também ficam próximas as áreas
reivindicadas pelos Guarani Kaiowá, como os tekohas Yvu Vera e Aratikuty.
·
Insuficiência
de espaço
A
defensora regional de Direitos Humanos no Mato Grosso do Sul, Daniele Osório,
explica que a Reserva Indígena de Dourados possui uma das maiores concentrações
de indígenas do País e, por causa da insuficiência de espaço territorial e dos
conflitos internos, a comunidade busca a retomada de suas terras tradicionais
nas redondezas, ocasionando desentendimentos com proprietários rurais e, nos
últimos tempos, com empreiteiros.
Para
ela, não existem os requisitos (neste caso) para prisão preventiva dos
indígenas. “Essa é uma medida extrema, que só deve ser decretada quando existem
motivos que a justifiquem”, afirma.
Segundo
a defensora, os indígenas ainda não foram sequer denunciados oficialmente pelos
supostos crimes atribuídos a eles. Além disso, nem o MPF, responsável pela
acusação nas ações penais, nem o delegado que registrou as prisões em flagrante
solicitaram as prisões preventivas.
“Entendemos
que o juiz não poderia, sem haver pedido dessas duas partes do processo, ter
decretado a prisão de ofício”, avalia a defensora. “Eles não foram denunciados
ainda, existe apenas uma análise preliminar. A autoridade policial apontou
crimes que talvez não se concretizem numa ação penal.”
Além
das prisões, o incêndio na casa da família indígena aumenta o clima de tensão e
medo na região. O coordenador do Cimi Regional Mato Grosso do Sul, Matias Benno
Rempel, afirma que alguns ataques a indígenas são possíveis de identificar,
como em casos de envolvimento de fazendeiros e até do Estado. Em outros casos,
essa identificação é mais difícil.
·
Atentados
contra os indígenas
Levantamento
do Cimi aponta alto número de atentados contra os Guarani Kaiowá,
principalmente no período entre 2015 e 2016, quando foram registradas ao menos
quatro ocorrências violentas por mês. Em 2015 foi assassinado o líder Guarani
Kaiowá Simeão Vilhalva, no tekoha Nhenderú Marangatu, em Antônio João (MS), a
130 km de Dourados. Em 2016, uma ação paramilitar realizada por fazendeiros na
região de Caarapó (MS) resultou no assassinato do jovem Clodieldo de Souza
Guarani-Kaiowá, aos 26 anos. No atentado, mais seis pessoas foram feridas à
bala, inclusive uma criança de 12 anos baleada no abdômen.
Em
2021, o indígena Guarani Kaiowá Vitorino Franco, de 37 anos, foi espancado por
jagunços. “Eles já chegaram batendo e xingando, chamando de vagabundo, que só
queremos roubar a terra deles e que a gente tinha que morrer”, narrou. Ele
levou uma “bicuda na barriga” e pancadas com a arma na cabeça. Foram tantos
golpes que o indígena desmaiou e só acordou no dia seguinte, jogado na vala de
uma rodovia.
Em
2022, no auge da política antiindigenista do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL),
no mês de junho, o indígena Guarani Kaiowá Vítor Fernandes, de 42 anos, foi
assassinado por policiais militares no tekoha Guapoy Mirim Tujury, em Amambai
(MS). E em julho, a liderança Guarani Kaiowá Leila Rocha, de 61 anos, foi
ameaçada de morte ao se opor aos arrendamentos ilegais que têm ocorrido na
retomada da Tekoha Yvy Katu, em Japorã (MS). “Eu caio morta aqui, mas não saio,
não arredo o pé da terra de meus ancestrais e vocês não vão tocar os seus dedos
sujos no meu território”, afirmou em resposta aos arrendatários.
O
indigenista Matias Benno Rempel, do Cimi, explica que o conflito em questão é
secular e remonta ao período entre 1910 e 1940, quando os indígenas foram
removidos do território originário, visados para a agropecuária, e levados para
a Reserva de Dourados. Desde então, nunca houve paz ou concordância com essa
medida e a insatisfação perdura até os dias de hoje. A insatisfação é expressa
inclusive através do alto índice de suicídios na região. “Eles seguem
resistindo de diversas formas nessa luta desigual, é muito complicado”, lamenta
Matias.
Os
indígenas em Dourados vivem cercados por um entorno racista, tanto na reserva
como em áreas de retomada. Além da violência explícita, eles encontram
dificuldades para conseguir trabalho e enfrentam a insegurança alimentar. Lutam
para sobreviver.
Fonte:
Mongabay/Amazônia Real
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