“Carne
sintética”: as razões do “sim”
No Dia Mundial da Terra 2023 (o Dia
da Terra, iniciativa nascida em 1969 para sensibilizar sobre o impacto da
atividade humana no planeta), publicaremos a nossa entrevista com o
prof. Giulio Marchesini, ex-professor de Ciências e Técnicas Dietéticas e
chefe da Estrutura de Dietética Clínica, do Hospital Universitário
Sant'Orsola-Malpighi, de Bolonha, que dedicou atenção especial em seus
estudos às correlações entre alimentos, energia e meio ambiente. No dia 6 de
maio, ele coordenará o debate Cuidar da casa comum, com Vittorio Marletto, Vincenzo Balzani e o jesuíta
pe. Mauro Bossi.
A entrevista é de Giordano Cavallari, publicada
por Settimana News, 22-04-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
<<< Eis a entrevista.
·
Professor, no último dia 28 de março o Conselho de
Ministros aprovou, em regime de urgência, um projeto de lei que proíbe a
produção de "carnes sintéticas". O texto fala de defesa da saúde dos
cidadãos e dos modelos produtivos e culturais tipicamente italianos, bem como
de autonomias alimentares. Qual é a sua primeira avaliação a esse respeito?
Digo que, mais uma vez, o projeto de lei não
manifesta nenhuma visão de futuro, neste caso em relação à alimentação do futuro. Eu não sou um defensor a
todo custo das carnes vegetais e cultivadas − depois explicaremos melhor o que
esses termos significam − mas sou um defensor convicto da necessidade de sair
da ideia que nos leva a “continuar a comer como sempre comemos”, porque essa
lógica já não se sustenta sob vários pontos de vista. O que me incomoda, neste
caso em particular, é a forma como querem impedir qualquer tentativa
de fazer nascer o futuro por uma pura preservação da tradição,
por perfis de interesse certamente importantes, por razões de
popularidade e, no fundo, por motivos eleitorais: é uma política
muito míope que pode dar frutos no curto prazo, mas que pode resultar
prejudicial para um futuro sustentável.
·
Vamos tentar esclarecer. O que se entende por carnes
sintéticas?
Há anos existem no mercado produtos à base de
proteínas vegetais que imitam a aparência e o sabor da carne, mas não é disso
que estamos falando. O projeto de lei tem por objeto as chamadas
"carnes cultivadas", ou seja, produtos obtidos a partir da criação
em biorreatores de células retiradas de músculos de animais vivos,
que podem ser multiplicadas por meio de processos produtivos já bem
codificados. Muitos fármacos "biológicos" e até fármacos
comuns – a insulina, por exemplo – há muito são produzidos com
essas técnicas. Trata-se de fazer com que poucas células originais se
multipliquem, fornecendo-lhes nutrientes, principalmente aminoácidos
de origem vegetal e energia na forma de carboidratos,
em meios de cultura adequados. Imitar as características físicas e até mesmo as
características de sabor comestível das carnes animais é o objetivo.
·
Como é possível imitar as características
organolépticas de alimentos típicos?
Já está sendo feito. Não há sabor que não possa ser
imitado ou reproduzido "quimicamente", sempre se reportando à
natureza. O sabor do bife ou do embutido típico
provavelmente sempre seria outra coisa. Eu também gosto de comer
com satisfação de paladar. Mas eu me pergunto e pergunto: o que é mais
importante hoje? Qual é a alimentação mais ética para o futuro da
humanidade?
Precauções
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A ingestão dessas "carnes" poderia causar
problemas de saúde a longo prazo?
O único problema que vejo são as eventuais alergias:
alguns sujeitos poderiam manifestá-las quando são ingeridas, como acontece com
muitos produtos "naturais". Mas o problema das alergias alimentares é
bem conhecido e independe das técnicas de produção dos alimentos. É claro que
a introdução de novos alimentos deveria ser cuidadosamente
monitorada, por um princípio de precaução.
Francamente, portanto, não vejo nenhum risco
particular em que a saúde humana possa incorrer. Pelo contrário, essas
técnicas poderiam eliminar alguns dos riscos que a alimentação
com carne de criadouros animais hoje comporta. Nos biorreatores
de crescimento − ambientes estéreis e controlados − não haveria de fato a
necessidade do uso de antibióticos ou hormônios de crescimento, hoje amplamente
utilizados na criação animal. A menção à tutela da saúde no projeto de lei a
que você se referiu não tem, a meu ver, nenhuma motivação científica.
·
Existe potencial na Itália para a produção de
proteínas desse tipo?
Certamente existem estruturas científicas
na Itália que trabalham com o "alimento do futuro". Elas
correm o risco de serem totalmente eliminadas por medidas legislativas como
aquela proposta. Além disso, o projeto de lei - se transformado em lei - não
poderia impedir a importação de "carnes cultivadas" de outros países,
em particular de países europeus e ocidentais como resultado de acordos de
mercado existentes, países nos quais os testes estão chegando rapidamente à
fase de mercado. Nem mesmo o consumo na Itália, embora presumivelmente
muito limitado, poderia ser impedido. Não parece ser um bom negócio econômico
para o nosso país.
·
Esses produtos, contudo, ainda seriam caros. Nem
todos poderiam pagar por eles.
Obviamente ainda existem problemas de preço, mas com
as economias de escala que seriam atingidas com
a entrada maciça no mercado, as diferenças de preços poderiam
ser rapidamente eliminadas, até que preços competitivos e até mais convenientes
fossem obtidos: o objetivo é sem dúvida esse.
<<< Comer carne faz mal?
·
Pergunto agora ao médico: continuar comendo carnes
animais faz mal?
Não sou a favor das ênfases segundo as
quais o consumo de carne aumentaria o risco de
desenvolver tumores a ponto de exigir, como fazem alguns, que o
perigo seja impresso na embalagem, como se faz com os cigarros: há uma
parte de verdade nisso, mas o mesmo poderia ser dito de outros alimentos. O que
se pode afirmar com certeza, do ponto de vista científico, é que nosso
corpo está continuamente sujeito a estresse pelos alimentos que ingerimos:
quanto mais submetemos o nosso corpo a estresse alimentar mais provável é que
ocorram erros de reprodução celular. A obesidade por excesso
alimentar continua sendo provavelmente a causa mais comum de tumor.
Portanto, minha objeção fundamental ao projeto de
lei não é primeiramente sanitária. Em vez disso, quero argumentar que o
"cultivo" de alimentos - assim como as técnicas de agricultura
vertical - pode em breve se tornar fundamental para garantir alimento
para 8 bilhões de seres humanos na face da terra. Temos de encontrar as
condições para uma alimentação ambientalmente sustentável: esse é o ponto.
·
Dê-nos um exemplo para entender melhor sua
preocupação.
Em 1960, na China, consumia-se em média 40
gramas de proteína per capita diárias, e disso apenas 3-5 gramas de origem
animal: praticamente nada. Hoje, na mesma China, tende-se a comer
"como entre nós", ou seja, com o mesmo teor de proteína animal,
equivalente a cerca de 50 gramas por dia. Agora multipliquemos esse valor por
1,5 bilhão de pessoas: esse cálculo pode nos dar uma ideia das enormes e crescentes quantidades totais de proteína animal que devem ser produzidas hoje, só na China. Neste momento,
tenho diante de mim a foto de um prédio de 26 andares para a criação de 26.000
porcos, certamente entupidos de antibióticos e hormônios, em Ezhou: é
impressionante!
Claro que esse é apenas um exemplo. Vamos pensar no
mundo inteiro e no direito que todos os seres humanos têm de consumir uma
quantidade adequada de proteína todos os dias. Fica evidente que simplesmente
não é possível que todos possam se alimentar como nós, ocidentais, sem que isso
implique numa dívida ecológica insustentável. Por isso considero que seja
necessário "abrir-se" e praticar - já hoje - todas as alternativas
possíveis e praticáveis. Isso também é profundamente ético.
·
A alternativa à carne animal é a alimentação
totalmente vegetal? Isso seria sustentável?
Alimentar 8 bilhões de pessoas − com todos os
nutrientes indispensáveis − é um grande desafio. Mas é muito mais provável que
tenha sucesso com alimentos e proteínas vegetais do que com proteínas animais.
Trata-se obviamente de uma questão de encontrar as proporções certas. Eu não
sou a favor da alternativa tudo ou nada.
Consideremos que, atualmente, um quarto, senão um
terço, da produção de cereais é direcionada para a criação de animais
destinados à alimentação humana: nessa passagem alimentar, são perdidas cerca
de 70% das calorias que de outra forma poderiam sustentar, diretamente, as
demandas alimentares dos homens e das mulheres deste planeta. Sem considerar o
custo ambiental dessa etapa.
Fiquei profundamente impressionado, em minha
consciência, ao saber, por exemplo, que o conteúdo dos primeiros navios
graneleiros liberados na guerra da Ucrânia foram para fazendas de
criação animal na Europa, e não para as pessoas famintas nos campos de
refugiados da África.
<< Carne animal e efeitos ambientais
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Você pode dizer brevemente quais são os efeitos
ambientais do consumo de carne animal?
São necessários cerca de 100 metros quadrados de
terra cultivada para produzir um quilo de carne, enquanto são suficientes entre
3 e 9 metros quadrados para produzir um quilo de frutas ou verduras. Para
produzir um quilo de carne são necessários cerca de 15.000 litros de água,
enquanto para produzir um quilo de frutas ou de verdura são necessários entre
100 e 600 litros de água.
Mais ainda: para produzir um quilo de carne bovina, são emitidas na
atmosfera quantidades de dióxido de carbono – gases de efeito estufa –
até 500 vezes maiores do que as emitidas por uma quantidade similar de frutas e
verduras, sem sequer considerar o benefício da captura de gás carbônico de
parte das plantas para a fotossíntese.
Além disso, há o impacto ambiental produzido pelos
dejetos animais a considerar.
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Qual a importância das proteínas animais na
alimentação humana? Poderíamos viver sem elas?
O organismo humano não pode prescindir de alguns
aminoácidos essenciais. Os alimentos vegetais não suprem a necessidade desses
aminoácidos. À população estritamente vegana, portanto, eu mesmo recomendo
a integração dos aminoácidos dos quais são ou poderiam ser deficientes: mas é
preciso dizer que são quantidades mínimas. Tanto é assim que o que recomendo
aos veganos, não preciso recomendar aos vegetarianos: de
fato, lacto-vegetarianos e os ovo-vegetarianos − ou seja,
aqueles que consomem produtos como laticínios e ovos, mas não a carne − podem viver sem nenhum problema de saúde ligado à sua escolha
alimentar. Uma atenção especial deve ser dedicada à alimentação durante as fases de crescimento. Mas, dito isso,
qualquer nutricionista pode dizer que dá para viver muito bem mesmo sem
consumir carne.
<<< A ética é fundamental
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Na sua visão alimentar, também há uma consideração
pela condição animal?
Certamente. Não sou um ativista ideológico dos
direitos dos animais, mas a vida dos animais e, acima de tudo, as condições da
vida dos animais nas fazendas de criação intensiva me preocupam. Como já disse,
me impressiona e me incomoda ver animais amontoados em criadouros cada vez mais
intensivos, onde a vida animal é considerada pura mercadoria: carne para ser
consumida. Você nem precisa ir à China para ver cenas como essa.
Também o "ponto de vista animal" é uma parte importante da grande
questão ética que temos pela frente.
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Estamos, portanto, diante de uma nova ética
alimentar?
As novidades e potencialidades da pesquisa
científica podem ajudar a sair da lógica antropocêntrica em que nos metemos. É
cada vez mais evidente que o homem não é dono do meio em que vive, não pode se
permitir explorá-lo além de certos limites e, sobretudo, não pode proceder sem
se preocupar com o futuro. É necessária
uma ética cientificamente fundamentada – e como! – e
é fundamental. Tenho 75 anos, 2 filhos e 5 netos. Empenhando-me nessas
questões, considero que estou trabalhando agora para o futuro deles: não apenas
para um futuro melhor, mas para que haja um futuro que ainda seja humano.
Fonte: Entrevista com Giulio Marchesini, para Giordano Cavallari, para
Settimana News. Tradução de Luisa Rabolini, para IHU
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