‘Nenhum centímetro
de terra indígena’: como o governo Bolsonaro agiu para cumprir promessa
De
todas as promessas feitas por Jair Bolsonaro (PL) antes das eleições de 2018,
uma foi inegavelmente cumprida: seu governo não demarcou nenhum centímetro de
terra indígena ao longo de quatro anos. Mas a paralisia no processo de
demarcação não ficou restrita à fase de homologação – a que depende da caneta
presidencial. Nas etapas anteriores, que cabiam à Funai e ao Ministério da
Justiça, o governo usou uma série de recursos e justificativas para retardar
todo o processo de demarcação de centenas de territórios. Nos poucos casos em
que houve avanços, eles ocorreram por força de decisões judiciais – e nem todas
foram cumpridas. Além disso, vários processos andaram para trás.
Com
base em dezenas de pedidos de Lei de Acesso à Informação (LAI), portarias
publicadas em Diário Oficial, relatórios governamentais e outros produzidos por
organizações sociais, além de entrevistas com indígenas, indigenistas,
servidores e ex-servidores da Funai, a Agência Pública destrinchou como se deu
esse retrocesso no período Bolsonaro.
Os
documentos e as fontes ouvidas revelam as principais estratégias utilizadas
pela Funai comandada pelo bolsonarista Marcelo Xavier para atrasar o avanço das
demarcações. Na parte do processo que cabe ao órgão, Xavier se valeu da
nomeação de profissionais sem qualificação, com histórico de relação com
ruralistas ou lotados a milhares de quilômetros do território. Também publicou
portarias com alterações mínimas e sem efeito prático, e dedicou valor ínfimo
às viagens de campo necessárias para a identificação das áreas.
O
terceiro mandato de Lula (PT) começou sinalizando para o lado oposto disso
tudo. Foi criado o Ministério dos Povos Indígenas, comandado por Sonia
Guajajara. Além disso, houve a nomeação, pela primeira vez, de uma indígena
para a renomeada Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que agora é
presidida por Joenia Wapichana.
Mas
o tamanho do desmonte promovido pela gestão Bolsonaro/Xavier impôs ao governo
Lula a necessidade de fazer esforços ainda maiores para que a garantia dos
direitos territoriais dos indígenas não fique apenas no discurso. Essa é a
principal demanda dos povos originários na 19ª edição do Acampamento Terra
Livre, que acontece essa semana e tem como tema “O futuro indígena é hoje. Sem
demarcação, não há democracia!”, destacando a importância das demarcações para
frear o desmatamento no Brasil.
• Sem pontapé inicial
O
delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier esteve à frente da Funai entre julho
de 2019 e o fim do ano passado. Nesse período, nenhuma terra indígena foi
identificada e delimitada – parte do processo que cabe ao órgão. A título de
comparação, foram 11 identificações nos
cerca de dois anos e meio de Michel Temer (MDB), e 44 nos pouco mais de
cinco anos de Dilma Rousseff (PT).
A
tentativa de frear o avanço dos processos de demarcação começou ainda nos
documentos técnicos de planejamento. Enquanto o Plano Plurianual (PPA) de
2016-2019 do governo federal falava em “delimitar 25 terras indígenas”, não há
nenhuma meta quanto à demarcação nem no PPA 2020-2023, nem no Planejamento
Estratégico da Funai 2020-2023. No Plano Anual de Ação 2022, a “Política de
Demarcação de Terras Indígenas” é a única das 11 que não tem meta qualitativa.
Na
prática, a primeira estratégia utilizada por Xavier foi não constituir novos
grupos técnicos (responsáveis por fazer os estudos iniciais sobre territórios
pleiteados), a não ser que o Judiciário obrigasse.
A
Pública identificou a constituição de 18 novos GTs durante o governo Bolsonaro
(alguns são responsáveis por identificar mais de uma área). Apesar de não haver
dados sobre isso para os governos anteriores, o número foi considerado baixo
por especialistas consultados pela reportagem. Se essa média anual fosse
mantida, seriam necessários 108 anos para constituir grupos técnicos que dessem
conta de realizar a identificação das quase 500 demandas que a Funai afirmava
ter em julho passado.
Pelo
menos 17 dos novos GTs só foram iniciados por ação do Judiciário. Ainda assim,
em julho do ano passado, havia ao menos 35 decisões determinando a constituição
de grupo técnico que ainda não foram cumpridas, algumas delas datadas de 2013.
·
44,5%
do orçamento para não indígenas, 0,33% para viagens de campo
A
paralisia promovida por Xavier na fase de identificação pode ser demonstrada
pelos números da sua gestão.
De
acordo com dados inéditos obtidos pela Pública via LAI, foram realizadas apenas
16 viagens de campo para 14 diferentes áreas reivindicadas durante todo o
mandato de Bolsonaro. Nesse ritmo, considerando que há 138 terras em
identificação atualmente, a Funai precisaria de 39 anos para que cada área
recebesse ao menos uma visita de campo. O valor descentralizado pela
Coordenação-Geral de Identificação e Delimitação (CGID) no período para as
atividades de campo foi de R$ 389 mil.
Ao
longo desse período, somente o grupo técnico responsável pela identificação da
Terra Indígena do Planalto Santareno (PA) foi para campo mais de uma vez. Não
foi por boa vontade com a terra reivindicada pelos povos Munduruku e Apiaká.
Isso ocorreu porque Xavier havia se tornado réu por improbidade administrativa
após seguidos descumprimentos do acordo judicial que determinava o avanço na
demarcação. Ele também foi multado, como pessoa física, em R$ 270 mil.
O
valor despendido nas atividades de campo representa 0,33% dos R$ 114,6 milhões
gastos pelo órgão na ação orçamentária “20UF”, que inclui atividades
relacionadas à regularização, demarcação e fiscalização de terras indígenas e
proteção dos povos indígenas isolados. Por outro lado, o órgão destinou pouco
mais de R$ 51 milhões (44,5% do total da ação 20UF) para o pagamento de
“benfeitorias de boa-fé”, destinado a ocupantes não indígenas.
Essa
indenização, paga a pessoas que não estavam cientes de que se tratava de uma
área indígena no início da ocupação, está prevista no decreto que estabelece as
regras das demarcações. No governo Bolsonaro, porém, a porcentagem destinada a
esses pagamentos foi mais que o dobro dos quatro anos anteriores, quando 21% do
orçamento foi para o pagamento de benfeitorias, de acordo com dados do
Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
“As
indenizações são parte importante do processo demarcatório, não dá para gente
ser leviano dizendo que isso em si é um absurdo. Mas, considerando o contexto
geral, mostra uma atuação que priorizou os interesses de quem está na disputa
territorial com os indígenas, e não os direitos dos indígenas”, aponta a
antropóloga Leila Saraiva, assessora política do Inesc e uma das coordenadoras
técnicas do estudo “Fundação Anti-Indígena – Um retrato da Funai sob o governo
Bolsonaro”, feito em parceria com a Indigenistas Associados (INA).
Para
Luis Ventura, secretário-adjunto do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o
pagamento de benfeitorias teria de ser acompanhado de avanços nas outras
etapas, o que não ocorreu. “De um lado, o governo abandona sistematicamente
toda política de regularização, fiscalização e demarcação de terras indígenas,
ocasionando um aumento exponencial dos conflitos, das invasões e da exploração
ilegal de bens naturais. De outro lado, atende os interesses dos particulares,
repassando os recursos destinados à indenização”, aponta.
·
As
estratégias para engambelar o Judiciário
Xavier
usou as mais variadas artimanhas para protelar o avanço dos processos. Mesmo
com a criação de alguns novos grupos e a modificação de outros nove
constituídos anteriormente, houve pouco avanço nos trabalhos. Nenhum estudo foi
publicado no período, apesar de haver pelo menos 54 decisões judiciais
determinando a conclusão e a publicação dos relatórios de identificação e delimitação.
Em
vários GTs, houve uma reiterada publicação de portarias alterando a composição
dos membros, sem que isso resultasse em qualquer avanço prático. Além disso,
Xavier promoveu a substituição de quadros qualificados por pessoas sem formação
em antropologia ou até com histórico comprovado de atuação anti-indígena, como
relatou a Pública na época. A lista inclui um ex-assessor do ex-presidente da
Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) e figuras que já deram declarações
contrárias à demarcação de terras indígenas, trabalharam pela redução de áreas
de indígenas isolados e na elaboração da Instrução Normativa nº 9/2020 da
Funai, que permitiu a certificação de fazendas dentro de terras indígenas.
As
nomeações foram questionadas na Justiça e revertidas pela Funai em alguns dos
casos.
Também
chama a atenção a nomeação, em pelo menos três GTs, de servidores da Funai
lotados a milhares de quilômetros do local da terra reivindicada, o que aumenta
os gastos com passagens aéreas e indica desconexão entre o profissional nomeado
e o povo estudado. Duas terras indígenas em Rondônia receberam como técnicos
funcionários da Funai de Santa Catarina e da região de Minas Gerais e Espírito
Santo – nos dois casos, a mais de 3 mil km de distância. Já terras indígenas no
Rio Grande do Sul receberam servidores do Mato Grosso e da Bahia – ambos a mais
de 2 mil km de distância.
A
reportagem também identificou ao menos 24 relatórios que foram entregues pelos
grupos técnicos entre 2011 e 2022 que ficaram travados internamente no órgão
nos últimos quatro anos. Segundo o relatório “Fundação Anti-Indígena”, outros
nove processos demarcatórios prontos para serem encaminhados ao Ministério da
Justiça foram devolvidos pela presidência da autarquia à Diretoria de Proteção
Territorial (DPT), sem justificativa ou motivação técnicas.
·
As
justificativas oficiais para não avançar
Ao
longo dos últimos anos, a Funai de Marcelo Xavier adotou várias justificativas
para explicar a falta de avanços reais na fase do processo que cabe ao órgão.
A
primeira foi sobre a indefinição quanto à responsabilidade das demarcações no
primeiro ano de Bolsonaro. Na reforma administrativa feita no início do
mandato, ele transferiu a Funai do Ministério da Justiça para o da Mulher, da
Família e dos Direitos Humanos e transferiu a responsabilidade pela
identificação e demarcação para o Ministério da Agricultura. As medidas foram
revertidas pelo Congresso naquele mesmo ano. A indefinição durou dez meses, mas
foi apontada como motivo para a paralisia no primeiro ano de gestão.
Quase
na sequência veio a pandemia de covid-19, e a Funai interrompeu as visitas
alegando os riscos que poderiam ocasionar – decisão que tem amparo nas
orientações das autoridades de saúde, mas chama atenção por ir no sentido
oposto ao que o governo de Jair Bolsonaro pregou em sua condução da pandemia.
A
gestão de Xavier também se ancorou, no início, no Parecer 001, feito pela
Advocacia-Geral da União (AGU) no governo Temer, que considerava a tese do
Marco Temporal vinculante e proibia a revisão de demarcações já realizadas que
tivessem como objetivo ampliá-las. A tese, que tem julgamento no Supremo
Tribunal Federal (STF) marcado para junho, considera que só devem ser
demarcadas as terras que estavam ocupadas pelos povos indígenas na data da
promulgação da Constituição de 1988.
O
parecer foi suspenso pelo ministro Edson Fachin até o julgamento definitivo da
questão, mas a Funai passou, então, a utilizar a própria liminar do juiz para
justificar a paralisia. Na decisão, Fachin estabeleceu que o órgão não pode
usar o Parecer 001 para fazer os processos retrocederem. Também mandou
suspender as ações judiciais que pedem a anulação de processos demarcatórios.
Mas destacou que nada disso poderia incorrer em “prejuízo dos direitos
territoriais dos povos indígenas”. Xavier, porém, interpretou que a decisão
impedia a Funai de avançar na identificação de terras.
“[Essa
interpretação] não faz sentido. O governo poderia ter avançado nas demarcações
que não tinham processo de judicialização impedindo a continuidade do procedimento
ou anulando a demarcação. A decisão do STF não suspende nem paralisa a
continuidade do procedimento administrativo de demarcação”, aponta Luis
Ventura, do Cimi.
A
Pública tentou contato com Marcelo Xavier por e-mail e telefone, mas não obteve
retorno até a publicação. O espaço segue aberto caso o ex-presidente da Funai
queira se manifestar.
·
No
Ministério da Justiça, retrocessos inéditos
Na
fase do processo demarcatório que cabia ao Ministério da Justiça, nem Sergio
Moro, nem André Mendonça, nem Anderson Torres declararam uma terra indígena
sequer. Pelo contrário.
O
hoje senador Moro (UB-PR) não apenas não publicou nenhuma portaria declaratória
como, em 2019, mandou de volta para a Funai processos de demarcação de 17
terras indígenas que já estavam em sua mesa quando ele assumiu o ministério. 12
aguardavam a portaria declaratória e cinco só precisavam da homologação
presidencial. A decisão foi tomada com base no Parecer 001 da AGU.
Anderson
Torres, por sua vez, não declarou nenhuma terra e ainda tomou uma decisão
inédita. Atualmente preso por seu envolvimento nos atos antidemocráticos de 8
de janeiro, ele desaprovou a identificação da Terra Indígena Menku, feita pela
Funai em 2012. A decisão não tem precedentes, já que o habitual sempre foi
aprovar a identificação, tornando a terra “declarada”, ou encaminhá-la de volta
para a Funai para que novas diligências fossem feitas. Com o ato de Torres,
feito sob a justificativa de “decadência da possibilidade” de revisar a
primeira demarcação, o processo terá que recomeçar do zero caso o novo governo
não invalide a decisão.
Ao
longo do governo Bolsonaro também não houve nenhuma homologação ou registro de
terra indígena. Na prática, os poucos avanços – todos por força de decisão
judicial –, ocorreram na fase de estudos, e não houve nenhum processo remetido
de um órgão para outro.
·
No
governo Lula, só retórica pró-indígenas não será suficiente
Desde
a campanha presidencial no ano passado, Lula se posicionou contra a postura de
Bolsonaro para a questão indígena e indicou que ela seria uma prioridade em seu
novo mandato. Além do inédito Ministério dos Povos Indígenas (MPI), e a
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) ganhou espaço institucional,
emplacando lideranças indígenas tanto na pasta, quanto na Funai e na Secretaria
Especial de Saúde Indígena (Sesai).
No
relatório apresentado pelo Grupo Técnico de Povos Indígenas ao Gabinete de
Transição, foi recomendada a homologação de 13 terras nos primeiros 30 dias de
governo – depois, o número subiu para 14 –, a expedição de portaria
declaratória das 12 terras devolvidas por Moro à Funai e o cumprimento das
decisões judiciais relacionadas aos estudos de identificação.
Até
o momento da publicação desta reportagem, porém, as homologações e as portarias
declaratórias propostas não se concretizaram. Há expectativa de que pelo menos
parte das homologações saia ainda nesta semana, durante o Acampamento Terra
Livre. Por outro lado, Joenia Wapichana, presidente da Funai, já criou ou
modificou ao menos 13 GTs de identificação e equipes já estão indo a campo para
dar seguimento aos estudos.
A
demora mostra que a missão de avançar com as demarcações não é trivial.
Para
especialistas e lideranças ouvidas pela Pública, a efetivação das promessas
feitas por Lula passa pela ampliação de recursos financeiros e de recursos
humanos. Nos últimos anos, com o aumento populacional indígena, o número de
servidores por 1000 indígenas caiu de 2,59 para 0,8.
A
Coordenação-Geral de Delimitação e Identificação é um exemplo. O setor acumula
atribuições como a realização e a apreciação dos estudos técnicos de
identificação e as respostas às contestações aos processos. Desde 2012, ainda
na gestão de Dilma, a Funai deixou de remunerar profissionais externos na
realização dos estudos, aumentando a carga de trabalho da coordenação, que hoje
tem cerca de 12 servidores. O número é considerado insuficiente para atender
toda a demanda da Funai nessa fase da demarcação.
As
pessoas ouvidas também destacam a importância da implementação do plano de
carreira indigenista defendido pelos servidores da autarquia e que está em
análise pelo governo Lula. A Funai tem tido dificuldades para manter seu quadro
de funcionários, já que os salários estão abaixo da média.
Na
visão de Maurício Terena, coordenador jurídico da Apib, além de recursos
financeiros e vontade política, é preciso que o Estado brasileiro “mude a
chave”, que historicamente foi de tutela, para garantir autonomia aos povos
indígenas.
Ele
também destaca a necessidade de que a tese do marco temporal seja superada no
STF e ressalta o papel da gestão Lula no processo: “O governo precisa ter um um
posicionamento mais incisivo em relação ao marco temporal. Não estou vendo isso
acontecer. A gente sabe do posicionamento da ministra [Sonia Guajajara,
contrária ao marco], mas não está havendo um posicionamento dentro das esferas
de governo, não existe uma comunicação clara direcionada ao Supremo em relação
a isso”, diz.
Para
o secretário-adjunto do Cimi, Luis Ventura, é fundamental que Lula dê autonomia
operacional para que Funai e MPI executem a política de demarcação. “Esta
determinação do governo não pode ficar apenas para momentos de especial
significado simbólico e político, como é o mês de abril, conhecido pela
intensidade da mobilização dos povos. Estes avanços devem dar-se de forma
processual, permanente e firme. O sofrimento dos povos indígenas é muito grande
e o passivo de demandas exige uma ação sistemática”, aponta.
Assessora
política do Inesc, Leila Saraiva destaca que a efetivação das promessas de Lula
depende de o movimento indígena se manter pungente e nas ruas. “É importante
que não se contente com os cargos no governo, porque o Brasil continua sendo o
Brasil. Seguirá havendo espaço para pressão dos ruralistas, dos setores
econômicos que se beneficiaram de todo o processo de desmonte e desestruturação
dos últimos anos”, aponta a antropóloga.
Fonte:
Por Rafael Oliveira, da Agencia Pública
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