Homologada por
Lula, TI Avá Canoeiro tem sobreposição da Eletrobras e sócios bilionários
Dois
mil e oitocentos hectares. Este é o tamanho da sobreposição que bilionários
brasileiros e fundos de investimento estrangeiros liderados por Jorge Paulo
Lemann “herdaram” ao se tornarem os principais acionistas da Eletrobras, a
estatal de energia elétrica privatizada em meados de 2022 pelo governo de Jair
Bolsonaro.
Os
dados integram o relatório “Os Invasores: quem são os empresários
brasileiros e estrangeiros com mais sobreposições em terras indígenas”, publicado no dia
19 pelo De Olho nos Ruralistas. Com base nos dados fundiários do Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o estudo identificou 1.692
sobreposições de imóveis privados em áreas demarcadas pela Fundação Nacional
dos Povos Indígenas (Funai) em todo o país.
A
46ª maior sobreposição de terra indígena do Brasil está no Centro-Oeste, na
bacia do Rio Tocantins, em Minaçu (GO). Ali, a área total da Usina Hidrelétrica
(UHE) de Serra da Mesa, com seus 1.048,27 hectares, está praticamente toda
inserida nos limites declarados da TI Avá Canoeiro, cuja homologação foi
assinada nesta sexta-feira (28) pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em
ato realizado no encerramento do Acampamento Terra Livre (ATL).
Além
da usina, a Furnas Centrais Elétricas, detentora do imóvel, possui outras seis
sobreposições no território Avá Canoeiro, divididos em três loteamentos
agrícolas: Ribeirão dos Negros, Cachoeira e Queixadas do Corriola, totalizando
outros 1.843,56 hectares em mãos da subsidiária da Eletrobras.
Oficializada
em junho de 2022, a privatização da Eletrobras representou um recorde em
movimentação na B3 Bovespa, totalizando R$ 33,7 bilhões. A maior cota de ações
preferenciais (10,88%) foi adquirida pela 3G Capital, que tem como
sócios Jorge Paulo Lemann, Marcel Herrmann Telles e Carlos Alberto Sicupira. O
mesmo trio protagonizou, em janeiro, o escândalo do rombo bilionário na Americanas, que levou a empresa à recuperação
judicial.
Donos
de uma fortuna somada de R$ 196,12 bilhões, Lemann, Telles e Sicupira são o
primeiro, o terceiro e o quarto homens mais ricos do Brasil, de acordo com o
mais recente ranking da revista Forbes. O CEO da gestora,
Alexandre Behring, está na nona posição.
Além
da 3G, a “nova” Eletrobras tem como sócios majoritários o GIC Private Limited,
fundo soberano de Singapura, e a estadunidense Blackrock Inc, maior empresa de
gestão de ativos e investimentos do mundo.
Confira
abaixo o mapa com as áreas registradas pela Furnas Centrais Elétricas em
sobreposição à TI Avá Canoeiro:
POVO
AVÁ CANOEIRO SOBREVIVEU A GENOCÍDIO
Os
Avá Canoeiro entraram para a história como “o povo que mais resistiu ao colonizador
no Brasil Central”, recusando-se terminantemente a estabelecer qualquer contato
pacífico. Segundo os registros de viajantes, os Avá — palavra do Guarani, que
significa “gente”, “pessoa” — eram ágeis no uso de canoas durante os ataques a
inimigos e, por isso, ficaram conhecidos como Canoeiros.
O
povo originalmente habitava uma área de Cerrado nas cabeceiras do Rio
Tocantins. A partir do século 19, a etnia passou a sofrer um processo contínuo
de perseguição e extermínio por fazendeiros da região de Uruaçu (GO). Após uma
série de ataques — destacando-se o assassinato de uma indígena grávida em 1920
por jagunços da família Correia de Miranda — os Avá
Canoeiro se dividiram em dois grupos: o primeiro optou pelo isolamento
voluntário em locais de difícil acesso nas proximidades do Rio Tocantins, na
área homologada hoje pelo governo Lula; enquanto o segundo rumou até
o Médio Araguaia, no estado do Tocantins.
Após
a separação, os dois núcleos de refugiados viveram histórias diferentes, ambas
foram marcadas pelo genocídio. Em 2013, os Avá Canoeiro somavam apenas 25
pessoas. Nove delas descendiam diretamente dos indígenas que se isolaram. Esse
diminuto grupo sobreviveu a novos ataques, como o Massacre da Mata do Café, nos
anos 1960.
Localizada
nos municípios de Minaçu e Colinas do Sul, em Goiás, a TI Avá Canoeiro foi
reconhecida pela Funai em 1983, tendo a área interditada para uso dois anos
depois. Em 1994, foi identificada. A demarcação viria apenas em 1999, com cerca
de 38 mil hectares.
Nos
anos 90, o território ancestral passou a ser inundado pelo barramento do Rio
Tocantins para a construção da UHE Serra da Mesa, concluída em 1998. Desde
então, o povo passou a viver sob um controle tutelar abusivo pelo Programa Avá
Canoeiro do Tocantins (Pacto), resultante de um convênio indenizatório firmado
entre a Funai e a Furnas Centrais Elétricas.
O
ramo da etnia que migrou para o Médio Araguaia viveu até os anos 70 na região
do Capão de Areia, entre os Rios Javaés e Formoso do Araguaia. Segundo
estimativas da Funai, haviam na época apenas catorze sobreviventes, que
integravam um grupo de parentes próximos, encurralados por fazendeiros da
região.
O
grupo foi exterminado por vaqueiros e jagunços da Fazenda Canuanã, pertencente
aos irmãos Pazzanese, uma tradicional família de São Paulo, cuja sede havia
sido instalada no sítio da antiga Aldeia Kanoanõ, dos Javaé, com recursos da
Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). A fazenda iniciou uma
parceria econômica com o grupo Bradesco, que decidiu instalar a primeira
unidade rural da Fundação Bradesco ao lado da sede do imóvel.
Ø
Cooperativa
“herdeira” da Batavo avança sobre terra indígena no Maranhão
No
dia 24 de maio de 2020, a Fundação Nacional do Índio (Funai) editou a Instrução
Normativa nº 9, que permitiu a certificação e o registro no Sistema de Gestão
Fundiária (Sigef) de fazendas sobrepostas a terras indígenas ainda não
homologadas. Com isto, o governo Jair Bolsonaro certificou 239 mil
hectares em mais de 400 propriedades rurais em todo Brasil.
Com
10 mil hectares justapostos à Terra Indígena delimitada Porquinhos, do povo
Canela-Apanyekrá, a Fazenda Boa Esperança II, no município de Fernando Falcão
(MA), é a terceira maior propriedade rural beneficiada pela medida. Conforme revelado
em reportagem da Agência Pública, a certificação do imóvel saiu no mesmo dia da
submissão do pedido ao Sigef.
A
sobreposição na terra indígena é apontada no o relatório “Os Invasores: quem são os empresários
brasileiros e estrangeiros com mais sobreposições em terras indígenas”, publicado no dia
19 pelo De Olho nos Ruralistas. A partir das bases de dados fundiários do
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o estudo joga luz
sobre as conexões empresariais por trás de 1.692 sobreposições de fazendas em
Terras Indígenas (TIs) de todo o Brasil.
No
Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR), a Boa Esperança II está em nome do
ruralista Geraldo Verschoor, que também investe em energia solar e foi membro
do Conselho de Administração da companhia de laticínios paranaense Batavo. A
marca foi vendida em 1998 para a Parmalat, por R$ 150 milhões. Hoje, pertence à
maior transnacional de laticínios do mundo, a francesa Lactalis.
A
antiga Batavo mudou de nome para Frísia Cooperativa Agroindustrial, tornando-se
uma das maiores cooperativas agrícolas do Paraná, reunindo quase 900 produtores
agropecuários da região dos Campos Gerais. Dados de processos do judiciário
maranhense indicam que a Fazenda Boa Esperança II tem outros proprietários,
entre eles herdeiros e diretores da antiga cooperativa. Um dos nomes é o de
Renato João de Castro Greidanus, ex-presidente da Batavo, hoje presidente da
Frísia. Em 2021, Greidanus anunciou que a Frísia iria investir R$ 1 bilhão “com
a cartilha ESG na mão”.
Outro
nome é o da família Dijkstra, com a qual Geraldo Verschoor tem parentesco: uma
das sócias de Geraldo na Willy Agropecuária Ltda, produtora de soja, chama-se
Guilhermina Dijkstra Verschoor. A Willy Agropecuária fica em Carambeí (PR),
onde a Batavo floresceu e onde fica a sede da Frísia. O endereço da empresa
consta como “Fazenda Boa Esperança” — o imóvel que incide inteiramente no
território Canela-Apanyekrá, no Maranhão, chama-se Boa Esperança II.
O
antigo grupo Batavo começou a comprar terras em Fernando Falcão em meados da
década de 90. Na mesma época, a 200 quilômetros de distância, na cidade de
Balsas, um importante polo do agronegócio no Maranhão, a cooperativa se uniu ao
capital japonês para implementar um “programa de desenvolvimento do cerrado
brasileiro”. Quase trinta anos depois, Balsas é o município brasileiro que mais
desmata o Cerrado. O Maranhão é o
estado brasileiro líder em número de hectares de fazendas sobrepostas a áreas
de TIs e em assassinatos no campo.
Em
outro processo fundiário envolvendo nomes da Batavo/Frísia, o
desembargador-relator do Tribunal de Justiça do Estado destacou em seu voto que “desde o
ano de 1994, com a aquisição da propriedade de imóveis no município de Fernando
Falcão pelo Grupo Batavo, se iniciaram inúmeros conflitos agrários entre estes
últimos e alguns moradores da área, sob o fundamento de invasão de terras”.
INVADIDA
PELO AGRONEGÓCIO, TERRA TEM DEMARCAÇÃO SUSPENSA DESDE 2010
Os
Apanyekrá Canela são um povo Timbira que habita o atual estado do Maranhão, em
uma área de Cerrado e floresta. Como Canela também ficaram conhecidos mais
quatro povos remanescentes dos Timbira Orientais, a exemplo dos Ramkokamekrá. É
provável que canela seja uma referência à altura desses indígenas em comparação
com os vizinhos Tenetehar-Guajajara. Apanyekrá, por sua vez, significa “filhos
do peixe piranha”.
O
território ancestral dos Apanyekrá Canela ficava nas montanhas, de acesso mais
difícil que os dos demais grupos Canela. Porém, a partir do século 19, a área
foi invadida por criadores de gado. Por volta de 1965, um posto do SPI foi
estabelecido nas proximidades das aldeias, na região conhecida como Porquinhos,
para evitar o assédio de fazendeiros.
O
processo de regularização fundiária da TI Porquinhos dos Canela Apanyekrá é
tortuoso. A terra foi declarada em 2009. No entanto, os municípios maranhenses
atingidos pela demarcação – Grajaú, Fernando Falcão, Formosa da Serra e Barra
do Corda – recorreram ao STJ alegando inconsistência da ocupação indígena da
área pretendida e, por outro lado, defendendo a presença de proprietários
não-indígenas na área há 300 anos. Em 2010, o então presidente do Superior
Tribunal de Justiça (STJ), Cesar Asfor Rocha, suspendeu a demarcação da
mencionada TI. Depois disso, a tese do Marco Temporal foi aplicada na anulação
da portaria de demarcação da TI.
“Esses
invasores não respeitam, estão desmatando tudo, acabando com tudo, sobre pé de
pique, bacuri, cajuí, frutos do cerrado que mais vem da natureza”, explica o
professor indígena Paulo Thugran Canela Apanyekrá. “Estão já plantando também
eucalipto, soja, milho e isso que tá acontecendo são os invasores em torno
aqui. Estão poluindo a água.”
Fonte: De Olho nos Ruralistas
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