Racismo obstétrico:
mulheres negras são mais negligenciadas no parto
O
conceito pode ser novo, mas a prática é antiga. O racismo obstétrico é
caracterizado pelas diferenças de tratamento que as mulheres negras passam
durante os atendimentos do
pré-natal,
no parto, durante o puerpério ou assistência ao aborto. No momento de maior
vulnerabilidade, elas acabam sofrendo com falas ou ações opressivas,
discriminatórias ou violentas em referência à sua etnia. Como consequência, mãe
e bebê acabam expostos a desfechos negativos.
No
início de 2022, o caso de uma jovem de Aparecida de Goiânia, em Goiás, ganhou
repercussão nacional. Ayah Akili, 25 anos, denunciou nas redes sociais ter
sofrido violência e racismo obstétrico em uma maternidade da cidade, após
perder a filha com 33 semanas de gestação.
Na
época, Ayah contou que as diferenças no tratamento começaram durante o
pré-natal. Alguns exames básicos de gravidez, como de curva glicêmica e
pré-eclâmpsia, nunca foram solicitados. Um exame de ultrassom realizado no
oitavo mês de gestação confirmou que a bebê não tinha mais batimentos
cardíacos.
Um
estudo feito por pesquisadoras do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos
para Saúde (Cidacs/Fiocruz Bahia) mostra que mais gestantes negras morreram
após serem infectadas pelo coronavírus durante a pandemia da Covid-19, em
comparação com as brancas.
“O
racismo obstétrico influencia a tomada de decisão dos profissionais de saúde e
com isso hierarquiza as pessoas e desumaniza as mulheres pretas e pardas no
momento do pré-natal, parto, aborto e puerpério”, diz o estudo, acrescentando
que, “em contextos como a pandemia da Covid-19, essas situações são agravadas e
as decisões sobre quem deverá receber as melhores condutas no atendimento estão
alicerçadas no racismo antinegro, na biopolítica do deixar viver, deixar
morrer”.
·
Racismo
obstétrico
No
século 19, o médico norte-americano James Marion Sims, considerado o “pai da
ginecologia moderna”, realizava cirurgias experimentais em mulheres negras
escravizadas sem anestesia. O médico acreditava que elas suportavam mais dor
por terem “ancas largas, boas de parir”, dizem os historiadores. Mais de 200
anos depois, os relatos continuam.
“A
manifestação do racismo carrega um legado histórico de violências, torturas e
experimentos nos corpos das mulheres negras – como a realização de
procedimentos sem anestesia, atenção ou cuidado, porque eram e são consideradas
mais resistentes, na leitura colonizada de humanidade”, afirma a pesquisadora
Emanuelle Góes, do Cidacs/Fiocruz Bahia.
Segundo
Emanuelle, a vulnerabilidade do momento do parto pode dificultar a tomada de
decisão das mulheres. “O parto é um momento delicado. É quando podem acontecer
intervenções desnecessárias ou a falta de atendimento médico no momento certo
para ter um desfecho positivo. É muito difícil, em um contexto tão vulnerável,
a mulher identificar e conseguir fazer uma denúncia naquele momento”, explica.
O
artigo Racismo Antinegro e Morte Materna por Covid-19: O Que Vimos na
Pandemia?, da Cidacs/Fiocruz Bahia, foi publicado na revista Ciência & Saúde
Coletiva. As
pesquisadoras Emanuelle Góes, Andrea Ferreira e Dandara Ramos mostram que a
pandemia agravou a razão de morte materna (RMM) no Brasil, com mais vítimas
entre as gestantes pretas e pardas.
Elas
apresentaram mais sintomas graves da doença durante o puerpério, acumularam
mais fatores de risco e foram as principais vítimas fatais. Em comparação com
as mulheres brancas, foram 14,02% registros a mais de óbitos, em particular no
puerpério.
A
pesquisa analisou 10.745 casos positivos de Covid-19 de gestantes e puérperas,
registrados na base de dados da Síndrome Respiratória Aguda Grave entre 2021 e
2022. O relatório traz informações sobre raça/cor, idade, região do país,
sinais e sintomas clínicos, número de internações em unidade de terapia
intensiva (UTI) e óbitos. Ficou constatado que as gestantes pretas e pardas são
as que menos acessaram a UTI.
·
Cartilha
Este
mês, a ativista e vereadora Thais Ferreira (PSol-RJ) lançou o Pequeno Manual
contra Antirracismo Obstétrico, inspirado na obra da filósofa Djamila
Ribeiro:
Pequeno Manual Antirrascista. A cartilha, voltada às gestantes e familiares,
tem como o objetivo ajudar a combater a violência contra a mulher negra.
“Infelizmente,
as mulheres negras são vítimas de racismo até no processo de amamentação.
Precisamos repudiar as afirmações racistas e mentirosas na assistência em
saúde”, afirma Thais.
Sinais
de alerta
O
racismo obstétrico pode ocorrer em diferentes situações durante as consultas do
pré-natal, no parto, no período do puerpério ou na
assistência ao aborto. A cartilha traz alguns exemplos de atitudes recorrentes
nessas situações:
#
Pré-natal
- Consultas mais
rápidas que a média;
- Não fazer ou
solicitar exames previstos no pré-natal;
- Falta de
informações importantes para a gestante, como parto e amamentação, por
exemplo;
- Menor número
de consultas pré-natais;
- Desencorajar a
presença de acompanhante nas consultas;
- Não fornecer a
caderneta da gestante ou manter o material na unidade de saúde;
- Não dar acesso
a programas de maternidade, fazendo com que a mulher precise se deslocar
para outras unidades de saúde.
#
Parto
- Não oferecer
analgesia com a justificativa de que “mulher negra aguenta dor”;
- Realizar
cortes ou suturas sem anestesia local;
- Fazer
comentários racistas durante o parto;
- Negligenciar o
cuidado durante a internação, com horas sem avaliação;
- Realizar
descolamento de membrana ou rompimento de bolsa sem indicação ou
autorização;
- Negar que a
gestante se alimente, beba água ou se movimente durante o trabalho de
parto.
#
Puerpério
- Negligenciar
as queixas de dor e desconforto da mulher no resguardo;
- Fazer piadas
ou comparações com os órgãos genitais dos bebês;
- Avaliar a
coloração do bebê a partir de um padrão de pele branca;
- Insinuar que a
mulher vai amamentar com facilidade por ser negra;
- Negligenciar
orientações e cuidados com a amamentação.
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Denúncia
O
Brasil ainda não tem uma lei específica para
a violência ou racismo obstétrico, mas as vítimas dessas ações podem
denunciar os casos por outros caminhos, recorrendo às leis de injúria racial ou
racismo. Além disso, as vítimas podem registrar queixa nas ouvidorias das
unidades de saúde públicas e privadas.
“As
mulheres devem procurar esses espaços para denunciar. A Lei do Acompanhante ajuda muito
nesse sentido, com a presença de outra pessoa no parto, quando as gestantes
estão muito vulneráveis. Esses indivíduos vão ajudar a dar apoio e identificar
situações de violência”, afirma Emanuelle.
A
Lei Federal n° 11.108 ou Lei do Acompanhante, foi sancionada em 2005 e, desde
então, assegura à gestante o direito à presença de acompanhante durante o
trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, no âmbito do Sistema Único de
Saúde (SUS).
Fonte:Metrópoles
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