Novo Ensino Médio:
o que não tem conserto
Ao
refletir sobre a função da educação em 1968, Adorno considerava essencial
analisar em que medida ela poderia ser algo decisivo contra a barbárie. Hoje se
coloca como fundamental saber que educação pode enfrentar a barbárie.
Diante
dos ataques às escolas das últimas semanas, o ministro dos Direitos Humanos e
da Cidadania no Brasil disse: “A gente não está indo bem, a gente está falhando
miseravelmente com as crianças e adolescentes deste país”.
As
palavras de Silvio Almeida nos fazem lembrar o pesadelo que o Brasil está
vivendo com a reforma do ensino médio e com os falhos e descomprometidos
argumentos a seu favor por setores sociais que só defendem seus próprios
interesses e estão muito pouco preocupados com o futuro de nossos jovens e de
nosso país.
Que
reflexões podemos realizar sobre a reforma do ensino médio a partir das
contundentes e verdadeiras afirmações do ministro Silvio? “Estamos criando uma
sociedade em que as pessoas acham absolutamente normal fazer culto a
armamentos… Nós estamos construindo uma sociedade miserável”. “Nós estamos
correndo o risco de entregar um mundo pior para as pessoas que vem depois de
nós”. “Nós estamos criando um mundo em que a esperança, o sonho não são
possíveis”.
A
educação é algo muito caro à humanidade para deixá-la nas mãos de poucos,
especialmente quando estes representam um único pensamento: impor a
racionalidade neoliberal a todos os espaços da vida. A conjuntura nacional do
impeachment da presidenta Dilma Rousseff permitiu, por meio da “doutrina do
choque”, a imposição de uma reforma rejeitada pela maioria dos movimentos
vinculados à defesa do direito à educação e apoiada pelos institutos, fundações
e movimentos que representam o capital.
Em
meio a um discurso alarmista e com forte apoio mediático, típico dos países
onde se implementaram diferentes políticas neoliberais, tal como o analisa
Noami Klein, se impôs uma reforma educacional antidemocrática. Os estudantes
denunciaram este caráter em 2016 e voltam às ruas em 2023 pedindo sua
revogação. Eles querem apreender ciência sim, querem ter experiências
artísticas sim, declaram os seus cartazes.
O
ministro de educação, senhor Camilo Santana, embora mantenha-se alinhado à
ideia de que a reforma é necessária e traz benefícios aos estudantes, aceitou
“reformar a reforma” para corrigir problemas de implementação, frente aos
“absurdos” que vem ocorrendo em relação aos itinerários formativos, e mantém
silêncio sobre a drástica diminuição da carga horária da formação científica e
humanista. Tendo em vista “melhorar a reforma” abriu consulta e suspendeu o
calendário de implementação e de revisão do Exame Nacional do Ensino Médio
(Enem), estabelecido pelo governo Bolsonaro. Isto nada muda nas escolas de
muitos estados que continuam com suas atividades como planejado para 2023. Mas
os estudantes que este ano concluirão o ensino médio já no novo formato estão
profundamente angustiados frente à incerteza de como será o Enem que eles terão
que realizar. Serão penalizados porque cursaram o ensino médio no novo modelo
que foi definido e implementado aos trancos e barrancos?
A
narrativa construída pelos “reformistas” de que é possível fazer pequenas
mudanças e adequações para resolver problemas de implementação poderá nos levar
a entregar um mundo pior às novas gerações, um mundo em que a educação não será
contra a barbárie, mas a própria barbárie.
Argumentamos
neste texto que o problema da reforma não é de implementação, mas de concepção,
grosso modo a implementação de uma política pública reflete sua concepção, seu
desenho, e não é diferente em relação à reforma do ensino médio.
Em
primeiro lugar é importante reafirmar que a reforma do ensino médio em curso
não é só uma reforma curricular, ela envolve todas as dimensões que constroem a
educação escolar e, portanto, é responsável pelos problemas de
implementação que se apresentam no cotidiano das escolas e que
impactam a formação dos estudantes, a organização do trabalho pedagógico, as
condições de trabalho e a gestão escolar. Ela é responsável porque não aborda
as questões estruturais da educação brasileira. Em seus enunciados fica claro o
desconhecimento da instituição escolar, dos processos educativos e da
juventude(s) brasileira.
A
“nova arquitetura” do ensino médio, como é chamada a mudança na organização
curricular, representa uma ruptura com a formação científica e humanista comum
e geral para todos os estudantes, aspecto fundamental de uma educação contra a
barbárie. Será que o objetivo da reforma é formar gerações que aceitem a
tragédia humana que a sociedade mergulha sob a égide das políticas neoliberais
e do capitalismo financeirizado?
Analisemos
a concepção de educação da reforma do ensino médio e como necessariamente traria
a desorganização e banalização da importância cultural da instituição escola.
- A palavra de
ordem da reforma é flexibilização, abrindo a possibilidade de escolha dos
alunos, sintonizada com seus anseios e projetos de futuro, através da
oferta de um currículo dinâmico e não enfadonho.
Nas
últimas décadas as virtudes da flexibilização têm sido o
principal argumento para a desregulamentação das relações de trabalho, da
desvinculação de receitas dos recursos públicos, do currículo, entre outras. A
reforma do ensino médio se insere no conjunto de reformas regressivas
implementadas desde o governo Temer.
No
caso da Lei 13.415/17 que deu origem à reforma do ensino médio não é diferente,
pelo contrário faz parte de uma mesma concepção de reforma do Estado. Através
dela não só estamos frente a um processo de desregulamentação da organização e
conteúdo curricular, como também do tempo escolar, da responsabilidade pelo
oferecimento do serviço educativo (parcerias) e da profissão docente. Em
contrapartida, precariza a formação dos estudantes com a introdução da
fragmentação curricular, orientada pelo individualismo e pelo empreendedorismo,
como solução à barbárie do desemprego e do aumento estrondoso da desigualdade
social.
- A reforma
curricular significa uma nova forma de distribuição do conhecimento
socialmente produzido, colocando o ensino médio a serviço da produção de
sujeitos técnica e subjetivamente preparados do ponto de vista
instrumental, tendo em vista os interesses do capital, quebrando assim a
organicidade da educação básica. Daí a pouca atenção voltada à formação de
sentido amplo e crítico, ou sua secundarização, assim como a exclusão,
como obrigatórias, de disciplinas como Filosofia, Sociologia, Química,
Física etc.
- A formação
técnico profissional que se pretende é meramente instrumental por ser
desvinculada do conhecimento científico, ser ministrada por profissionais
sem formação adequada para o exercício do magistério (notório saber) e
direcionada para trabalho simples, visto que as escolas não são equipadas
com laboratórios que permitam a realização de cursos de maior
complexidade. Mais ainda, oferece-se ao estudante certificados
intermediários, resultado de cursos de curta duração, que não tem valor no
mercado de trabalho.
Que
lugar se reserva para os estudantes com esta formação? O mercado de trabalho
está passando por uma radical reestruturação em condições de acumulação
flexível. Harvey (2012), descrevendo de maneira nua e crua esse processo,
mostra que as empresas se estruturam a partir de um núcleo restrito de
gerentes, com trabalho em tempo integral, segurança no emprego, boas
expectativas de promoção, formação contínua e outras vantagens. Esse grupo deve
atender à expectativa de ser adaptável, flexível e se necessário,
geograficamente móvel. Depois veem dois subgrupos periféricos: um de empregados
em tempo integral com habilidades facilmente disponíveis no mercado de
trabalho, como o pessoal do setor financeiro, secretárias, responsáveis por
trabalhos rotineiros e trabalho manual menos especializado. O outro grupo,
também periférico, inclui empregados de tempo parcial ou temporários, com quase
nenhuma segurança no emprego e grande flexibilidade numérica. É justamente
nesse último grupo que mais cresce o mercado de trabalho.
- Retirar
disciplinas como Filosofia, Sociologia e História, dentre outras, da grade
curricular obrigatória, significa silenciar as vozes e histórias das
populações e grupos marginalizados, contribuindo para uma construção
cultural e social ainda mais desigual e injusta. Reforça assim a dualidade
escolar ao romper com o princípio de formação geral e direcionar os
estudantes para itinerários que a escola oferta, não necessariamente que
eles escolheram.
- A
diversificação precoce da escolarização da(s) juventude(s) em percursos
formativos, obriga os estudantes, que estão vivenciando suas primeiras
experiências de sua trajetória na juventude e, ao mesmo tempo, na última
etapa de sua formação básica, a tomar decisões prematuras que ao longo de
seu trajeto escolar poderá mudar e nesse caso serão vistas como “erros” de
escolha, responsabilizando o jovem estudante pela sua trajetória escolar.
As afinidades dos estudantes estão relacionadas a múltiplas experiências
escolares e não escolares: familiares, de pares e outras imprevistas.
Em
um país com imensas desigualdades sociais, educacionais e escolares só tende a
aprofundar as desigualdades, inclusive no que se refere às possibilidades de
acesso à educação superior e causa prejuízos, sobretudo, a estudantes das
escolas públicas.
A
organização do currículo com uma parte diversificada por meio de itinerários
formativos é justificada com vistas a levar em conta os interesses dos jovens e
baseada em exemplos descontextualizados de países considerados avançados, e sem
uma reflexão crítica dessas experiências, inclusive por seus pesquisadores.
- A inclusão da
Educação a Distância é mais um exemplo do desconhecimento do processo
educacional dos jovens e da importância cultural e socializadora da escola
em prol de interesses privados que visualizam o financiamento estatal da
educação como alvo para sua capitalização. (Harvey, 2014).
Com
a suspensão de aulas presenciais por conta da pandemia, proliferam as empresas
privadas de serviços para EaD que hoje se voltam com força redobrada para sua
implantação nos currículos escolares, que tanto a BNCC, com alto grau de
padronização e de caráter altamente impositivo, quanto à parte diversificada
abriram espaço para novas demandas de produtos e serviços educacionais.
Permitir
que parte da carga horária do Ensino Médio seja ofertada na modalidade da
Educação a Distância, além de ignorar que o Brasil é um país marcado por imensa
desigualdade no que se refere à inclusão digital e a espaços físicos adequados,
compromete a formação dos jovens num momento da vida em que o processo educativo
não diz respeito apenas à aprendizagem de conteúdos, mas à convivência e à
compreensão da função social do conhecimento. Trata-se de aprender e apreender
o mundo de forma crítica e criativa o que demanda a vivência coletiva.
Portanto,
a revogação da Lei do Novo Ensino Médio é necessária para garantir que a
educação no Brasil seja um direito para todos e todas e não um privilégio de
poucos. É preciso garantir uma formação crítica e cidadã, que promova a
igualdade, a diversidade e a equidade, e que esteja em consonância com as
necessidades da sociedade brasileira.
Os
problemas de implementação estão ancorados, também, numa concepção de ensino
médio dissociada do ensino fundamental, o que desestrutura o ensino, enfraquece
o conhecimento científico em nome da flexibilidade curricular. O NEM não atende
os anseios dos estudantes, não contribui para a construção de projetos de vida
articulados às questões sociais, ele atende aos anseios daqueles que querem
controlar a formação dos jovens para que aceitem a barbárie que o atual estágio
do capitalismo e a política neoliberal tem provocado.
Entre
as muitas medidas para que a educação seja um contraponto à barbárie, a
revogação da reforma do ensino médio é imperiosa. Não é à toa que os
“reformadores” estão fazendo a disputa com todas as armas, do Luciano Huck
ao Estadão, todos em defesa de uma reforma educacional que favorece
a barbárie.
Fonte:
Por Nora Krawczyk, Márcia Jacomini e Monica Ribeiro da Silva, em Oitras
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