Ideia que associa
transtorno mental a risco à sociedade influencia aplicação de medida de
segurança
A
medida de segurança é uma sanção penal aplicada a pessoas que cometeram crimes
e foram consideradas inimputáveis pela justiça ao serem diagnosticadas com
algum transtorno mental, como esquizofrenia, retardo mental ou mesmo
dependência química, entre outros. Ao analisar o tema em sua tese de doutorado,
a antropóloga Sara Vieira Sabatini Antunes constatou que a medida de segurança
vem sendo aplicada a partir de um pensamento manicomial punitivo, em que a
“loucura” é vista como algo potencialmente perigoso e necessita de contenção.
“Quando
a loucura entra em cena, deixa-se de falar do crime para se falar de uma
‘personalidade essencialmente perigosa’. Sem perspectiva de ‘cura’, não haveria
perspectiva de liberdade”, diz a pesquisadora ao Jornal da USP.
Sara
explica que a lógica criminal parte da dualidade inocência/culpa, que replica a
ideia de bem/mal. Se a pessoa comete um crime, ela é culpada e precisa ser
presa. Quando é inocente, deve ser solta. A medida de segurança propõe um
meio-termo: quando a pessoa é considerada inimputável, ela não é responsável
pelos próprios atos e não pode ser punida com a prisão comum, devendo ser
encaminhada a um Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) onde
permanece internada por tempo indeterminado em unidades do Sistema Prisional —
e não do Sistema Único de Saúde (SUS). Ela somente vai sair se um perito, em
laudo feito uma vez ao ano, atestar que a “periculosidade foi cessada”, sendo
que esse tempo não pode ultrapassar 30 anos e deve ser equivalente ao tempo que
a pessoa cumpriria se recebesse uma pena.
Contudo,
o estudo mostrou que, na prática, a medida de segurança não tem nada de
meio-termo, pois é estabelecida dentro de um campo manicomial punitivo. A
autora argumenta que, quando as pessoas nessas condições cometem um crime, são
duplamente punidas: ao ficarem confinadas em uma instituição prisional e ao não
terem perspectiva de saída. “Ela são vistas pelas instituições punitivas e pela
sociedade civil como alguém potencialmente perigoso. Isso mostra a força do
pensamento manicomial”, argumenta a antropóloga.
Os
dados estão na tese de doutorado Perigosos e
inimputáveis: A medida de segurança em múltiplas dimensões defendida na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, sob
orientação da professora Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer. O estudo contou com
apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
A
antropóloga se baseou em levantamento bibliográfico e trabalho de campo
realizado em instituições prisionais, institutos de perícia e Fórum Criminal do
Estado de São Paulo. Foram analisados vários casos, entre eles, um em especial:
o de uma mulher negra e pobre chamada Maria (nome fictício) que,
apesar da grande debilidade física e mental, teve muita dificuldade para
conseguir a desinternação e encaminhamento ao SUS (veja quadro ao final do
texto).
“O
caso da Maria* é importante porque mostra o limite desse argumento [de
que a medida de segurança perdura até a periculosidade cessar]. Como é
possível uma mulher cadeirante, cega e parcialmente surda apresentar perigo?”
Um
dos diferenciais da pesquisa, segundo Sara Antunes, é o olhar a partir da
antropologia, de ver como as coisas acontecem na vida real.
O
estudo ainda mostra outros problemas, como a alta demanda por vagas em
hospitais de custódia, a existência de “alas psiquiátricas” improvisadas em
presídios comuns, a precariedade dos dados oficiais sobre pessoas que estão em
prisão provisória aguardando a determinação da medida de segurança, a escassez
de recursos humanos, como psiquiatras, e a ausência de projetos terapêuticos
que extrapolem a mera prescrição de psicotrópicos aos internos, entre outros.
“Quem
está se formando em Direito não consegue perceber que as pessoas com transtorno
mental cumprindo medida de segurança acabam sim, sendo punidas. Elas não são
tratadas em espaços hospitalares, mas sim em unidades prisionais, geridas pela
secretaria de administração prisional, e não fazem parte do sistema de saúde. Isso
não está previsto no Código Penal e naquilo que deveria ser a medida de
segurança”
·
Medida de segurança
Quem
determina a medida de segurança é o juiz, com base em um laudo de incidente de
insanidade mental realizado por um perito psiquiatra forense. A perícia é feita
quando o juiz, o defensor, o promotor, um familiar ou mesmo os policiais
levantam dúvidas sobre a sanidade mental de um acusado de crime. Esse laudo vai
indicar se a pessoa é imputável, semi-imputável ou inimputável.
Com
a medida de segurança determinada, a pessoa é encaminhada a um hospital de
custódia. No Estado de São Paulo, há três deles: dois localizados em Franco do
Rocha e um em Taubaté.
Um
dos problemas apontados pela pesquisadora é a demora para os laudos de
incidente de insanidade mental saírem. A demanda de trabalho é muito grande e,
com isso, o laudo pode demorar de um a dois anos, em média, mas ela diz ter
visto casos em que a demora foi de até quatro anos. A maior parte das pessoas
que aguardam o laudo fica confinada em alas psiquiátricas improvisadas no
interior de presídios comuns.
Sara
Antunes lembra que esse é um outro problema comum e grave no Brasil: a prisão
provisória como regra, sendo que a maioria das pessoas acusadas criminalmente é
pobres e preta. Segundo a pesquisadora, nos últimos anos houve um aumento
dessas internações, que segue o padrão de crescimento das prisões provisórias
no País (cerca de 40% de toda a população prisional).
Nas
“alas psiquiátricas” eles ficam, muitas vezes, junto com os presos comuns e são
essas pessoas que os ajudam a realizar tarefas básicas, como comer, se limpar e
até administrar os remédios. A antropóloga conta que a medicação só é
ministrada a pessoas que tiveram diagnóstico de transtorno mental antes da
prisão. Caso não tenha um diagnóstico e não esteja sendo medicada, é muito mais
difícil conseguir alguma prescrição. “Com isso, é comum que os presos
internados provisoriamente fiquem em condições de saúde deploráveis e que
piorem muito”, aponta.
Para
sair do hospital de custódia, eles são submetidos a um conjunto de laudos de
cessação de periculosidade, feito por psiquiatra, psicólogo, agente carcerário
e assistente social. Cada profissional avalia se a pessoa oferece ou não perigo
para a sociedade. Com base nos laudos, um juiz decide ou pela continuidade da
internação ou pela desinternação progressiva, que acontece aos poucos.
Uma
das condições para a saída do hospital de custódia é a existência de uma
família que se responsabilize pela pessoa, além da obrigatoriedade de
acompanhamento regular em um Centro de Atenção Psicossocial (Caps) ou
Residência Terapêutica, entre outras. De acordo com o texto do Ministério
da Saúde,
residências terapêuticas “são casas localizadas no espaço urbano, constituídas
para responder às necessidades de moradia de pessoas portadoras de transtornos
mentais graves, institucionalizadas ou não”.
·
Reforma psiquiátrica
A
reforma psiquiátrica foi regulamentada pela Lei n° 10.216, de 6 de abril de
2001. “A reforma psiquiátrica de fato aconteceu, mas poderia ter sido muito
melhor. Houve uma desinstitucionalização massiva de pessoas que saíram de
hospitais psiquiátricos e manicômios, passando a ser tratadas em liberdade no
território de referência, próximas das suas famílias e da comunidade. Essa é
uma proposta que busca incluir essas pessoas na sociedade, e não excluí-las,
como historicamente fizemos”, argumenta a pesquisadora.
Sara
Antunes conta que a lei foi fruto de muitos debates que ocorreram desde os anos
1970, mas que os manicômios judiciários entraram nessa discussão apenas em
momentos muito pontuais. Em 2002, houve um encontro organizado pelos
Ministérios da Saúde e da Justiça em que foi discutido o fechamento dessas
instituições no Brasil, pautado por essa legislação. “Ficou definido que, em
dez anos, o País deveria fechar todos os manicômios judiciários e as pessoas em
medida de segurança seriam transferidas para tratamento em meio aberto”,
explica a antropóloga. Mas as pessoas com transtorno mental que cometeram
crimes sempre ficaram à margem dessa discussão e não entraram no projeto de uma
forma federalizada, diz.
De
acordo com a pesquisadora, atualmente, o Brasil tem dois Estados que tratam
essa questão de maneira exemplar: Goiás e Minas Gerais. Em Goiás as pessoas
cumprindo medida de segurança estão sob responsabilidade da Secretaria de Saúde
e são cuidadas em equipamentos do SUS, e não do sistema prisional — parte das
conquistas do Programa de Atenção
Integral ao Louco Infrator (Paili). Já em Minas Gerais, há o Programa de Atenção
Integral ao Paciente Judiciário (PAI-PJ), que trabalha com projetos
terapêuticos, equipes multiprofissionais e não adota a “periculosidade” como
critério para desinternação.
Fonte:
Jornal da USP
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