Povo de santo se
despediu de Mãe Olga, matriarca do Terreiro Bate Folha
Como
medir a força de uma mulher que dedicou quase todos os seus 98 anos de vida a
uma religião? Olga Conceição Cruz, a Mãe Olga do Terreiro Bate Folha, deixou o
plano terrestre, mas seus ensinamentos continuarão presentes no povo de santo
que tanto aprendeu com a matriarca mais antiga da casa de tradição banto
(congo-angola), onde ela exercia o alto posto de mameto ria inquice, o
equivalente à ialorixá das casas ketu/nagô. As lições de Dona Miúda, como era
conhecida, talvez sejam o maior legado da sacerdotisa que destinou 74 anos ao
candomblé. Na tarde desta quarta-feira (26), dezenas de pessoas acompanharam o
sepultamento da líder religiosa, no cemitério Jardim da Saudade, em Brotas.
Com
vestes brancas, filhos e filhas de santo se despediram de Mãe Olga ao som de
cantigas que simbolizam a transição da vida para a morte e reverenciam a
matriarca. O clima foi de muita emoção e gratidão à Nengua Guanguancesse, seu
nome de iniciação na religião. No Terreiro Bate Folha, na Mata Escura, ainda
será realizado o Mukondo - como é chamado o ritual fúnebre da nação
congo-angola. Mãe Olga estava internada no Hospital São Rafael, mas a causa da
morte não foi divulgada.
“Durante 98 anos e 74 de iniciada, ela viveu, morou e cuidou
do Bate Folha. Desde que Mãe Olga foi iniciada, se tornou essa guardiã da
vinculação que temos com o continente africano, nossa história que foi durante
muitos anos negada”, afirma Carla Nogueira, 40, que é makota [espécie de
guardiã dos inquices, os deuses] no terreiro e defendeu a tese de
doutorado ‘Fé, boca calada e pé ligeiro
- Nengua Guanguacesse e o Terreiro Bate
Folha: Patrimônio e Memórias da Religiosidade Negroafricana na Bahia’, em 2023,
sobre a importância de Dona Miúda para a história do Bate-Folha, uma casa
fundada há mais de 100 anos, justamente em 1916.
Para
quem teve a oportunidade de conviver com Mãe Olga, as lembranças que ficam são
as de uma paciência infinita e a grande atenção com que a líder religiosa
atendia a todos. Vadinho França, além de tata do terreiro, é casado com a
sobrinha da mameto Olga e relembra
alguns dos momentos de maior proximidade com a líder espiritual:
“Ela
era uma mestra. Acalentava, acalmava e informava. O grande mérito dela era a
paciência, ter uma maneira única de conviver com todos os seus filhos. Consegui
usufruir do seu legado e tenho certeza que vamos dar continuação aos seus
ensinamentos”, diz Vadinho.
• Liderança atuante
Até
poucos anos atrás, Mãe Olga se mantinha atuante na liderança dos rituais que
aconteciam dentro do terreiro. A pandemia, no entanto, fez com que ela se
afastasse de algumas atividades, mas a preocupação com o espaço onde cresceu
nunca foi deixada de lado.
“Nos
últimos momentos de vida, ela nos fez prometer que não deixaríamos o Bate Folha
acabar porque é um legado dos nossos ancestrais. Mãe conduzia tudo no terreiro,
as vestimentas, as obrigações, os alimentos e as cantigas”, relata Carla
Nogueira.
Durante
os trabalhos mais recentes, Mãe Olga preferia não participar. Era uma forma de
preparar os filhos de santo para quando ela não estivesse mais viva. Mas,
quando era perguntada sobre a possibilidade de deixar o Bate Folha, a resposta
era direta: “Se eu sair, eu morro”.
Olinda
Lopes Sacramento, 85, iniciada no candomblé aos 15, conheceu Mãe Olga ainda
criança. Emocionada pela perda da amiga,
recorda a importância da líder para a localidade da Mata Escura. “Ela
era uma mulher muito acolhedora, que teve um trabalho muito importante na
comunidade criando as crianças. Sempre pediu para que nós déssemos continuidade
aos seus trabalhos”.
Os
vizinhos, sobretudo os mais velhos, elegeram ‘dona Olga’ como “figura
importante” para o bairro, por sua
“militância e cuidados em prol do outro”, acrescenta dona Olinda
Sacramento.
Mãe
Olga tinha uma capilaridade que
ultrapassava os limites do Terreiro Bate Folha e penetrava nos mais diversos
setores sociais de Salvador. A matriarca foi responsável por manter uma
economia solidária e permitir que a comunidade utilizasse os 15 hectares de
Mata Atlântica que compõem a área do terreiro para vender folhas e frutos.
Até
quem não é iniciado no candomblé reconhece a sua importância. Moradora de Simões
Filho, Lucidalva Souza, 43, fez questão de prestar as últimas homenagens à
matriarca durante o sepultamento. “Ela cumpriu sua missão na terra com o
coração acolhedor que fez bem a tantas pessoas”, conta.
Quase
tudo que leva o nome de ‘história’ em Mata Escura tem a presença de Olga
Conceição Cruz. Sempre de branco, ela chegou criança à região, onde se
alinhavou às vidas dos moradores. A mãe de santo salvou inocentes da prisão e
interveio por desabrigados por acreditar que os vulneráveis são “quem mais
precisam de ajuda”. Segundo seus muitos filhos e filhas de santo, a sacerdotisa
acreditava nos seres humanos. Afinal, ‘nengua’ é a dominação em Kimbundu (uma
língua africana, de Angola) que significa “mãe”, no sentido de acolhimento e reverência.
• Mãe olga conheceu o terreiro aos 4 anos
A
relação da matriarca Olga Conceição Cruz
com o terreiro Bate Folha começou
muito cedo, quanto ela contava apenas 4 anos de idade. Na época, o espaço era
dirigido pelo seu fundador, o tata de inquice Manoel Bernardino da Paixão. Inquice é a
denominação das divindades de nação congo-angola, como os orixás são os deuses da nação
ketu-nagô.
Olga,
pequenina, foi levada pela sua avó, que
acreditava que conseguiria a cura para uma doença da neta naquele espaço de
culto aos ancestrais. A menina não foi iniciada na ocasião porque o líder religioso não gostava de
submeter crianças aos rituais de iniciação e por isso, preferiu esperar o tempo
cumprir sua jornada.
Só
aos 24 anos, com Manoel já falecido, Olga Conceição Cruz foi iniciada na casa. Ao nome de batismo,
sobrepôs-se o nome religioso
Guanguancesse. O tempo de dedicação à religião de matriz africana e o acúmulo
de experiências ao longo dos anos como zeladora dos inquices lhe renderam a posição de ‘Nengua’ (mãe, em kimbundo).
E, por falar em maternidade ancestral, Olga era filha da inquice Kuketo, a dona das águas salgadas.
Não
há quem negue que a passagem de Mãe Olga para o outro lado deixa um certo desalento para os filhos e
filhas que seguiram por décadas seus ensinamentos. Nengua Guanguancese era
símbolo da continuidade dos ritos de religiosidade negroafricana para o povo de
santo. “Nós temos a continuidade do legado dela com outras mulheres mais
velhas, que seguem o caminho trilhada por Mãe Olga, que foi nossa grande
matriaca”, afirma a makota Carla
Nogueira.
Após
sete anos de pesquisa, Carla Nogueira defendeu a tese de doutorado sobre o
terreiro em janeiro deste ano. O
trabalho foi fruto da admiração e da
vontade de manter o legado da casa e de Mãe Olga para as gerações mais jovens do terreiro.
Carla
e a mameto ria inquice Olga se conheceram quando a primeira era um bebê
indesejado na barriga da mãe e a segunda, já havia adquirido o status de Nengua
Guaguansese do Bate Folha. Foi a sacerdotisa quem fez a avó de Carla aceitar a
gravidez da filha. “Nunca tinha pensado por esse lado, mas foi a primeira vez
que ela colocou a mão sobre mim”, diz Carla, dando o sentido de interceder
ao ‘colocar a mão’, como se diz no ritual
de iniciação.
• Mais de um século de histórias e devoção
O
terreiro Bate Folha foi fundado em 1916 por Manoel Bernardino da Paixão como
resultado da fusão das tradições vindas de Angola e do Congo, países do
continente africano. Até hoje, a casa ocupa uma ampla área de Mata Atlântica,
que segue preservada pelos filhos e filhas de santo. As divindades chamadas
inquices são as cultuadas dentro do terreiro e são similares aos orixás de
origem ketu-iorubá.
No
imaginário baiano, Mãe Olga e sua casa foram eternizadas na canção Toté de
Maiangá, do compositor Gerônimo. “Vinha passando pela Mata Escura / No Bate
Folha, ouvi uma canção / Que é pro santo poder sair da aldeia / Para chamar o
orixá dessa nação”, diz a letra imortalizada na voz de Margareth Menezes.
O
documentário Bate Folha 100 anos, gravado em 2016 pela Agência Experimental da
Universidade Federal da Bahia, conta a história do terreiro. Entre os
entrevistados está Mãe Olga, que conta como foi
sua ligação com o espaço que lhe serviu de casa toda a vida.
Fonte:
Correio da Bahia
Nenhum comentário:
Postar um comentário