terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Sara Goes: "Tropas Estelares" brasileiras - os estados reféns da farda

No livro Tropas Estelares, de Robert A. Heinlein, o militarismo é a base de uma sociedade organizada em torno do serviço armado, que define quem é digno de cidadania. A narrativa árida (chata mesmo) explora como a lógica da força e do combate se infiltra em todas as esferas, concentrando poder nas mãos das forças militares. Na obra de 1959, Heinlein constrói um mundo onde o dever militar não é apenas um meio de defesa, mas uma estrutura central de organização política, relegando questões como responsabilidade democrática a um segundo plano.

Aqui, na vida real do Brasil, a violência policial e a crescente autonomia das forças de segurança continuam a desafiar os limites do controle civil. A realidade brasileira, marcada por episódios de abuso e pela dificuldade de implementar transparência, se aproxima da distopia criada por Heinlein: uma sociedade onde o controle e a força sobrepõem-se aos direitos civis e à democracia.

Em São Paulo, sob o governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos), a escalada de violência policial atingiu proporções preocupantes. Em 2023, o estado registrou 716 mortes decorrentes de ações policiais, e, de janeiro a outubro de 2024, esse número já alcançou 676 mortes, consolidando uma média de quase duas mortes por dia. A Operação Escudo, amplamente criticada por execuções sumárias e abuso da força, resultou em 28 mortes em apenas uma semana no litoral paulista, destacando o caráter sistemático da letalidade policial no estado.

Embora Tarcísio tenha anunciado a ampliação do programa de câmeras corporais após inicialmente desacreditá-lo, essa decisão parece mais uma tentativa de apagar o incêndio político do que uma transformação ética ou administrativa. A gestão continua alinhada à lógica militarizada que tem alimentado os abusos, personificada pelo secretário Guilherme Derrite, cuja permanência no cargo contrasta com qualquer discurso de mudança estrutural. Os casos mais recentes reforçam a urgência de mudanças reais. Imagens de um rapaz arremessado de uma ponte por um policial militar e de outro, morto com 11 tiros nas costas ao sair de um supermercado, evidenciaram de forma brutal o padrão de violência policial. Esses episódios, somados à morte de Genivaldo de Jesus Santos, em 2022, em uma câmara de gás improvisada pela Polícia Rodoviária Federal, escancaram a necessidade de reformas no sistema de segurança pública. A gestão de Tarcísio, ao hesitar em enfrentar as raízes da crise, ilustra uma lógica que privilegia respostas pontuais e reativas, enquanto o controle civil e a responsabilização permanecem em segundo plano.

Longe do dirscurso de que a violência policial acontece ao ser autorizada por governadores de direita e extrema direita, na Bahia, governada pelo PT há quase 20 anos, não foge à lógica militarizada. Em 2022, o estado liderou o ranking nacional de letalidade policial, com mais de 1.400 mortes registradas por ações das forças de segurança, o que correspondeu a 23% do total nacional. No Ceará, embora os motins policiais sejam o episódio mais marcante da crise na segurança pública, o histórico de violência ganhou notoriedade com a Chacina do Curió (2015) durante o governo de Camilo Santana (PT). O massacre deixou 11 mortos em um bairro periférico de Fortaleza, em retaliação ao assassinato de um policial militar.

Os motins, ocorridos em 2011 e 2020, escancararam a fragilidade no controle sobre as forças de segurança. O mais recente foi marcado por cenas como o tiro disparado contra o senador Cid Gomes (PSB), que tentava desobstruir um quartel usando uma retroescavadeira. O episódio não apenas paralisou o estado e gerou aumento nos índices de violência, mas também expôs a incapacidade do governo de retomar o controle sobre uma Polícia Militar cada vez mais indisciplinada e politizada. Durante a crise, o então governador Camilo Santana (PT) foi coagido pessoalmente por 3 ministros militares do governo Bolsonaro, que exigiam anistia aos policiais amotinados, reforçando o ambiente de tensão institucional.

No plano federal, a PEC da Segurança Pública, proposta pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva, busca consolidar o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), criando diretrizes nacionais para a atuação policial. A medida gerou reações mistas. Governadores, incluindo Tarcísio de Freitas, expressaram receios de centralização excessiva, enquanto o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, parece ter encontrado em suas críticas à proposta uma vocação para a literatura distópica: suas falas apocalípticas sobre "afronta aos estados" e "dissimulação federal" seriam um excelente ponto de partida para um livro sobre um futuro fictício, onde a autonomia de um bravo governador de um estado sem crimes seria a última barreira contra um governo centralizador que ousa querer coordenar ações de segurança pública. Se Heinlein usou o militarismo para refletir sobre sociedade e política, quem sabe Caiado não faça o mesmo com a fantasia que criou sobre seu estado? Afinal, entre críticas delirante e a fina ironia do presidente Lula, a PEC da Segurança Pública se mostrou uma tentativa honesta de impedir que o caos policial continue escrevendo seus próprios capítulos.

O Brasil vive um paradoxo em que o próprio Estado, aquele acusado por Caiado de querer controlá-lo, se encontra refém das forças de segurança pública, sobretudo as Forças Armadas. A Operação Contragolpe, da Polícia Federal, que revelou como setores das Forças Armadas se envolveram em tentativas de desestabilizar o processo democrático, seja na organização de atos golpistas ou na omissão frente a ataques às instituições, não só expôs a complacência de décadas, mas também a crescente dificuldade do atual governo em impor limites claros às ações militares.

O episódio mais simbólico dessa postura foi o recente vídeo divulgado pela Marinha, que insinuou seu poder em relação ao governo civil, além de chamar a todos nós de fanfarrões. Sobre essa afronta sugiro o excelente artigo de Jeferson Miola, que evidencia em números o que eu ja disse em desabafo: privilegiados são eles. Esse episódio, junto com a incapacidade de destituir completamente os resquícios de militarização no Estado, evidencia como o Brasil ainda não superou sua herança autoritária. Enquanto as Forças Armadas mantiverem esse grau de influência, o Estado continuará dividido entre os interesses democráticos e as pressões de uma instituição que deveria estar subordinada à soberania popular. A sensação de impunidade daqueles que usam farda e o enfraquecimento do controle civil sobre essas instituições criam um efeito dominó que atinge dos kids pretos ao PM de Camaragibe (PE), que assassinou um motociclista de aplicativo com tiro no meio da rua por discordar do valor de uma corrida.

A autonomia das forças de segurança foi potencializada pelos governos de Michel Temer (MBD) e Jair Bolsonaro (PL), que militarizaram amplamente a administração pública. Sob Bolsonaro, especialmente, o número de militares em cargos de confiança explodiu, reforçando a influência política das Forças Armadas e dificultando a distinção entre suas funções constitucionais e sua participação no governo. Esse processo não apenas comprometeu a profissionalização da gestão pública, mas também piorou e muito um ambiente em que os militares se veem como agentes políticos, capazes de tomar posições que frequentemente desafiam as instituições civis que deveriam servir.

De São Paulo à Bahia, passando pelo Ceará, a violência policial mostra que o desafio de equilibrar segurança pública e democracia não se limita a espectros políticos ou regiões. A PEC da Segurança Pública surge como uma oportunidade para reformar a governança democrática e responsabilizar abusos, mas seu sucesso dependerá de compromissos reais com transparência. Como em Tropas Estelares, a lição é clara: sociedades que priorizam o poder militar em detrimento da justiça e do controle democrático correm o risco de se afastar de seus valores fundamentais. O Brasil deve decidir se fortalecerá suas instituições ou continuará refém de políticas que perpetuam a violência.

 

¨      Prendam a polícia! Por Ricardo Nêggo Tom

Como já cantou os Titãs na música “Polícia”, uma das faixas do álbum “Cabeça Dinossauro", lançado em 1986, “Polícia para quem precisa. Polícia para quem precisa de Polícia.” Hoje, em 2024, em face de tantos acontecimentos envolvendo abuso de autoridade e violação de direitos humanos por parte de policiais, podemos parafrasear a canção e dizer que a Polícia é quem está precisando de Polícia. Dizem que ela existe para nos proteger, mas tal função parece ter sido substituída pelo ódio contra o cidadão, o que tem feito com que policiais se deixem flagrar, sem o menor pudor ou constrangimento, cometendo crimes sob a égide do caráter heróico que alguns lhes atribui.

Homens, mulheres, crianças, jovens, idosos, portadores de deficiência, não importa a idade ou a limitação que o indivíduo possua. Qualquer um pode ser alvo do cassetete ou do revólver de um agente da segurança pública do Estado burguês. Qualquer um que seja preto, pobre e periférico, é claro. Porque em Alphaville e no Leblon, essa mesma polícia não ousa agir da mesma forma com a branquitude que predomina no local. Alguém um dia disse que “a farda é uma jaula onde só cabe uma animal”, e eu achava ofensivo, exagerado, desmedido. Porém, após presenciar inúmeras situações onde a ausência de dignidade, caráter e humanidade pontuava as ações de policiais, cheguei à conclusão que a segurança pública está, de fato, entregue às feras enjauladas em fardas que não lhes cabem mais.

Estranhamente, o recrudescimento do comportamento violento da polícia brasileira agrada a boa parte da população. Não é difícil presenciarmos menções de louvor sendo feitas a agentes que estão usurpando a sua competência e submetendo cidadãos a um estado policial opressor e assassino. Talvez esses entusiastas do banditismo policialesco ainda não tenham sido vítimas dos erros cometidos por um policial sob forte estado de emoção. Como o PM que atirou um jovem de cima de uma ponte com mais de 3 metros de altura, e ainda impediu que populares o socorressem quando ele corria o risco de se afogar no rio em que foi atirado. Pode ser que a mãe ou avó de um desses cidadãos de bem que idolatram e validam o desequilíbrio de policiais em serviço, ainda não tenha sido agredida com chutes, pontapés e tenha ficado com o rosto ensanguentado em função do estrito cumprimento do dever de um policial que agride a uma idosa de 65 anos de idade, e dá a ela voz de prisão, quando ele é quem deveria ser preso. Não sem antes ser expulso sumariamente da instituição.

É assustador o aumento do número de meliantes travestidos de agentes da segurança pública. Será que aboliram o famoso teste psicotécnico para o ingresso na Polícia Militar? Ou será que o critério para aprovação passou a ser quanto mais desequilibrado melhor? Desde quando a “gloriosa” policia imperial de Dom João VI passou a recrutar delinquentes para as suas fileiras? Uma polícia que tem Tiradentes como patrono, por causa de sua luta pela liberdade e pelos valores éticos e morais da sociedade. Uma Polícia que diariamente está enforcando Joaquins e Josés da Silva, sem a menor ética e o menor senso de moralidade e decência. Obviamente que uma instituição forjada sob um regime escravocrata com a missão de proteger os bens da coroa portuguesa e manter os pretos escravizados sob controle, não poderia evoluir para uma polícia humanizada e cidadã, sem que suas raízes históricas fossem desconstruídas.

Os resquícios da ditadura militar são visíveis no modus operandi policial, e só nos livraremos dessa praga ideológica quando esse modelo de polícia fascista e opressora da população for extinguido. No mesmo período em que o estado de exceção foi decretado, surge o Esquadrão Le Cocq, uma organização paramilitar criada por policiais no Rio de Janeiro, em 1965, com forte atuação nas décadas de 1960, 1970 e 1980, sendo extinta por decisão da justiça. Considerado o primeiro grupo de extermínio do país, a organização foi criada, pasmem, com fins “filantrópicos”, sob a denominação de Associação Filantrópica Scuderie Detetive Le Cocq, para vingar a morte do policial civil  Milton Le Cocq d’Oliveira, conhecido detetive que fez parte da segurança pessoal do presidente Getúlio Vargas. Seus integrantes distribuíram panfletos nas ruas incentivando a população a utilizar o “disque- denúncia” e a colaborar com o trabalho da polícia.

Entre os “doze homens de ouro”, como eram chamados os líderes do esquadrão, estava o Delegado José Guilherme Godinho, mais conhecido como Sivuca, o criador do slogan “Bandido bom é bandido morto”, e que se elegeu Deputado Estadual em 1986, estampando nos postes do centro da cidade do Rio de Janeiro cartazes com sua frase de efeito. A “filantropia” do Esquadrão Le Cocq consistia numa ação para “limpar” a cidade e eliminar criminosos, travestis e moradores de rua. Virtude esta que se espalhou como metástase pelas polícias de todo o Brasil, resultando no que estamos presenciando nos dias atuais com uma polícia agindo de forma mais criminosa do que os criminosos que ela pretende abater. Tal histórico ostentado com orgulho pelas polícias do país, deveria nos fazer ampliar o debate sobre a segurança pública, com proposições que visassem uma reforma geral e irrestrita nas forças de segurança do Estado burguês brasileiro. A começar pela desmilitarização, passando por um processo civilizatório e de humanização dos agentes.

Uma sociedade dita civilizada não pode naturalizar os absurdos que estão acontecendo e escalando a cada dia, sob a autoridade de policiais que se julgam os donos da lei e do direito de agirem como bem entenderem. Esses agentes precisam ser colocados em seus devidos lugares e lembrados de que são servidores públicos, pagos com o dinheiro da população, e que não podem continuar agindo como Super Nannys fascistas na pretensiosa missão de educar a população na base da porrada. Até porque, tais policiais não possuem educação suficiente para exigirem respeito e obediência da população. Aliás, outra questão a ser revista no que se refere ao poder de um policial, é a exigência legal de obediência e o conceito de desacato à autoridade. Quem determina o que é desacato? A lei ou a jurisprudência pessoal dos agentes? Se o cidadão for abordado de forma desrespeitosa, e exigir que o policial o trate com respeito, ele pode ser enquadrado nos crimes de desobediência e desacato. Quando ele apenas exige o seu direito a ser respeitado durante uma abordagem. Mesmo estando correto em sua reivindicação, a fé pública (outro absurdo constitucional) contida na palavra de um policial irá prevalecer.

Como diria Gabriel, o pensador, “até quando você vai ficar levando porrada? Até quando vai ficar sem fazer nada? Até quando você vai ficar de saco de pancadas”, de uma polícia cada vez mais abusiva, violenta, fascista, desumana e criminosa? Que show de Estado é esse, que a cada minuto impõe a violência policial para controle da população mais pobre e mais preta do país? E por que um governo federal de esquerda não se posiciona de forma veemente contra essa nazificação das forças policiais do país? Mesmo sabendo que a segurança pública é de competência dos estados, o presidente Lula, assim como a ministra dos Direitos Humanos, a ministra da Igualdade Racial e o ministro da Justiça, precisa vir a público repudiar essas ações absurdas e criminosas. Tal silêncio pode soar como omissão ou cumplicidade. O ódio externado por policiais contra a população, é apenas um recorte dos males que o capitalismo selvagem produz na sociedade. Um sistema que não reconhece como seres humanos quem não tem dinheiro e a cor de pele que sugere quem possa ter.

Prendam a polícia! Antes que ela extermine a todos nós! 

 

¨      A violência como política de Estado. Por Adilson Roberto Gonçalves

Os “casos isolados” de violência policial em São Paulo são resultados da exitosa política fascista de Tarcísio de Freitas, discípulo do bolsonarismo. Não são casos isolados. Portanto, é a experimentação que deu certo. O governador fluminense que ainda ocupa o Palácio dos Bandeirantes pode até fazer cara de arrependido por ter sido sumariamente contrário às câmeras corporais, ou se mostrar consternado por tantas mortes de gente preta, pobre e periférica. Tudo isso é pantomima, um teatro de celebração por um plano que está dando certo. E ele não mudará de comportamento, pois tem a força policial e boa parte das gentes de bens com ele.

Tarcísio estava completamente errado sobre câmeras corporais e os eleitores paulistas estavam completamente errados sobre Tarcísio. Pelo menos a maioria estava. Como corrigir? Tarcísio deveria começar demitindo Derrite, e o povo paulista, demitindo Tarcísio. Um dá para fazer agora, o outro, pelo jeito, somente daqui a dois anos, já que a Assembleia Legislativa de São Paulo está bem comprometida com o governador. Era evidente a eficiência das câmeras da mesma forma que era evidente a postura fascista de Tarcísio. Literalmente, só não via quem não queria.

Em uma análise mais moderada, podemos concluir que a escala da violência policial em São Paulo é reflexo da política excludente e antissocial imposta pelo governo Tarcísio também em várias outras frentes. Investir na truculência em vez da inteligência, promover a arma em vez do diálogo e ler a cartilha do “como atirar no marginal ali” em vez do “como tirar o marginal dali” resultam na letalidade nunca antes vista, nem mesmo no período ditatorial. Ou seja, neste governo, não apenas a estética de símbolos, documentos e cartazes é fascista.

A violência policial aumentou, e muito. Com discurso de bandido bom é bandido morto, o policial passa a ser justiceiro e não tem suporte de inteligência para avaliar verdadeiros riscos e estratégias para combater o crime, restando a força bruta. Insisto: a política adotada é a higienista, em que o pobre, periférico e majoritariamente negro é visto como estorvo para a sociedade, dando um descomunal poder aos policiais que têm cada vez menos formação psicológica adequada para enfrentar conflitos e trazer verdadeira segurança à população. Um exemplo corriqueiro é que alunos negros em abordagem rotineira de averiguação foram humilhados a quase tirar a roupa para mostrar que não estavam portando armas, enquanto os colegas brancos sequer foram indagados.

O medo de presenciar um caso desses é grande, pois a regra é sermos todos culpados ou suspeitos. Até em verificações corriqueiras no trânsito, a truculência policial é a regra. Os exemplos mais graves, filmados e noticiados, foram feitos às escondidas, e não duvido que os que filmaram sejam ameaçados, se forem revelados.

Enquanto as políticas inclusivas do governo federal estão levando à diminuição da pobreza, a despeito do que o “mercado” avalia, Tarcísio de Freitas e sua polícia assassina estão diminuindo o número de pobres aplicando o princípio de Justo Veríssimo, personagem de Chico Anysio, que queria que o “pobre se exploda”. Se for negro e periférico, mais efetiva será a ação da “segurança pública”. Uma criminosa vergonha para nosso Estado!

 

Fonte: Brasil 247

 

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