Produção x
poluição: as disputas que travam um tratado global sobre plásticos
“Meu
entendimento é que, se lidarmos com a poluição plástica, não deveria haver
problema em produzir plásticos. Porque o problema é a poluição, não os
plásticos em si.” Foi assim que o representante da Arábia Saudita reduziu o
grande impasse nas negociações por um tratado global contra a poluição por
plásticos.
De
um lado, estavam alguns países produtores de combustíveis fósseis e de
plásticos que gostariam de reduzir o debate a medidas de aprimoramento da
gestão de resíduos, com reciclagem, por exemplo. Do outro, dezenas de nações
favoráveis a limitar a produção plástica.
Era
1º de dezembro, o último dia de discussão entre os mais de 170 países reunidos
em Busan, na Coreia do Sul, com a missão de finalizar um acordo inédito para
enfrentar uma crise visível nos oceanos, nos rios, no estômago de animais
marinhos e até nos órgãos humanos: a onipresença do plástico.
Um
pouco antes, no auditório lotado, as representantes de México e Ruanda, falando
em nome de quase cem nações, tinham arrancado vários minutos de aplausos ao
cobrar uma acordo com medidas obrigatórias, com peso de lei – e não
voluntárias. E mais: que o texto fosse ambicioso ao determinar a eliminação
gradual de determinados produtos e de substâncias químicas tóxicas usados na
produção de plásticos.
Para
o diplomata da Arábia Saudita e para o representante do Kuwait, que falou em
nome do chamado “grupo de países que pensam igual” (os “like-minded countries”,
em tradução livre, que inclui Rússia e outros países produtores de combustíveis
fósseis), medidas como essas, porém, fugiriam ao “escopo” de um tratado, cujo
objetivo declarado é “proteger a saúde humana e o meio ambiente da poluição
plástica”.
Sem
consenso, sem tratado. E, ao final do que deveria ter sido a última rodada de
debates, os países não conseguiram concluir o acordo, adiando as definições para o ano que vem.
Enquanto
isso, a crise se agrava. A cada ano, o mundo produz mais de 430 milhões de
toneladas de plástico e a perspectiva é que, no ritmo atual, a produção
triplique até 2060. Mas a promessa, por décadas propagandeada pela indústria
petroquímica – e ainda defendida pelos países produtores –, de que a reciclagem
seria a solução para essa imensa quantidade de resíduos jamais se concretizou.
Para
piorar, evidências históricas apontam que empresas do setor sempre souberam se
tratar de uma promessa falsa, impossível de ser cumprida por falta de mercado,
tecnologia e por características dos plásticos (saiba mais abaixo).
A
taxa global de reciclagem nunca passou de 10%. Assim, a grande maioria dos
plásticos produzidos vai parar no lixo e, em seguida, no ambiente, sem nunca
desaparecer por completo. O plástico apenas se degrada em pedaços menores, os
microplásticos, que se dispersam pelas águas e pelo ar, chegando até ao
interior dos nossos corpos.
Em
Busan, os países concordaram em proibir o despejo de lixo plástico a céu aberto
ou nos oceanos e que é necessário estabelecer sistemas seguros e resilientes de
coleta, transporte, separação, reciclagem e descarte, com uma transição justa
para trabalhadores do setor, como catadores informais.
Houve
união, ainda, sobre a criação de metas e objetivos para aumentar a coleta e a
reciclagem. E, nas etapas anteriores da cadeia, tomar medidas para melhorar o
design dos produtos, visando aumentar o reúso e a reciclagem deles e incentivar
a economia circular (modelo de produção e consumo que busca reduzir o
desperdício e geração de resíduos).
Mas
apesar da importância dessas medidas, que visam a uma economia circular,
expandindo o reúso e a reciclagem dos plásticos, elas são insuficientes para
resolver todo o problema. Para dezenas de países, amparados em dados
científicos e de organizações da sociedade civil, é impossível acabar com a
poluição sem eliminar alguns produtos plásticos em nossas vidas.
A
coalizão de alta ambição, grupo de 67 países (entre eles Peru, Chile, Reino
Unido, França, Ruanda e Nigéria), por exemplo, defende o estabelecimento de
metas para a redução da produção no mundo.
·
Plásticos de uso único
Um
dos alvos, defendem, deveriam ser os plásticos de uso único, como sacolinhas,
embalagens de alimentos e de bebidas, canudos e outros utensílios descartáveis,
que respondem por mais de um terço de todos os plásticos consumidos
globalmente. São esses os itens mais comuns de lixo plástico encontrado no
ambiente, segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio
Ambiente (Pnuma).
Uma
das medidas propostas no tratado que não obteve consenso – apesar de ter apoio
de mais de 90 países, incluindo o Brasil – era a eliminação gradual até a
proibição de alguns desses itens, como sacolinhas, talheres, copos e pratos
descartáveis, canudos, palitos plásticos usados para prender balões infláveis,
hastes de cotonete e misturadores de bebidas.
No
Brasil, um projeto de lei em tramitação ainda inicial no Senado já caminha nessa
direção ao vedar a fabricação, importação, distribuição, uso e comercialização
desses e outros produtos descartáveis.
Para
Carlos da Silva Filho, presidente da ISWA (Associação Internacional de Resíduos
Sólidos) e integrante do Conselho Consultivo do Secretário-Geral da ONU sobre
resíduos, medidas de redução e banimento exigem cautela. Primeiro por seus
impactos em vários setores da economia. Segundo porque, no atual modelo, banir
o plástico significa apenas colocar outro material no lugar.
“Será
que não vai ser um material também de uso único e teremos o mesmo problema, de
uma imensa quantidade de resíduos, só que de outro material?”, questionou ele
em entrevista à Agência Pública.
“Nós
precisamos que o processo de produção e de consumo seja direcionado para a
circularidade, e não para o fim de linha. Precisamos pensar a produção desses
materiais para que eles não sejam de uso único”, diz.
A
produção e o uso que a sociedade faz desses itens é paradoxal: se vale de um
material cuja principal característica é a durabilidade para fazer produtos que
vão rapidamente para a lata de lixo.
Mas
nem sempre foi assim.
·
Rumo à lata de lixo
Leves,
versáteis e resistentes, os plásticos de fato têm qualidades que os tornam o
melhor material para muitas aplicações. Nos anos após a Segunda Guerra Mundial,
eles começaram a ser produzidos em larga escala inicialmente para substituir
outros materiais usados em bens duráveis, como geladeiras, rádios e peças de
automóveis – itens comprados algumas poucas vezes ao longo da vida.
“A
indústria reconheceu que seu futuro dependia do desenvolvimento de novos tipos
de mercado, e as inovações constantes na ciência dos polímeros estavam
pavimentando o caminho”, escreveu a jornalista e escritora americana Susan
Freinkel em seu livro Plastic: a toxic love story (Plástico:
uma história de amor tóxica, em tradução livre).
A
matéria-prima dos plásticos é o petróleo, que, ao passar por um processo
químico chamado polimerização, se transforma em diferentes tipos de polímeros –
ou resinas – que possuem características e aplicações diversas.
Apesar
da grande variedade de polímeros, oito deles respondem por 95% de todos os
plásticos primários já produzidos. São conhecidos como PET (politereftalato de
etileno, das garrafas de mesmo nome), PVC (policloreto de vinila, usado para
fazer canos, placas e brinquedos), PP (polipropileno, utilizado em baldes,
sacos de salgadinho, tampas de garrafa) e os PEBD (polietilenos, de diferentes
densidades, usados em sacolas, bandejas, embalagens e filmes para alimentos).
“Em
pouco tempo, todos os materiais duráveis, desenvolvidos para as adversidades da
guerra, estavam sendo transformados em conveniências efêmeras de paz”, escreveu
Freinkel.
“O
seu futuro está no vagão de lixo”, resumiu, em 1956, um palestrante na
conferência anual da Sociedade da Indústria Plástica (SPI), associação
americana formada por empresas petroquímicas como Exxon e Mobil, Dow, DuPont,
entre outras. Era o recado para que elas investissem em produtos que seriam
descartados.
Ainda
assim, a cultura do reúso estava tão incutida na sociedade americana
traumatizada pela guerra que a indústria precisou investir em publicidade e
campanhas para promover a mudança de comportamento que veio a desembocar na
crise atual – a do descarte rápido.
Não
demorou muito. Em 1955, a revista americana Life publicou um artigo cujo título celebrava uma nova tendência: “A vida
descartável: itens descartáveis reduzem tarefas domésticas”. O texto vinha
acompanhado por uma foto de um homem, uma mulher e uma criança jogando para
cima dezenas de itens de plástico, como bandejas, copos, pratos, talheres,
potes e palitos. O argumento era que as pessoas poderiam se livrar de, por
exemplo, ter de lavar utensílios reutilizáveis.
Três
anos depois, o editor da revista especializada Modern Plastics parabenizava
a indústria por “encher as latas de lixo”, segundo um relatório publicado em fevereiro deste ano pela organização não
governamental Centro para Integridade Climática (Center for Climate Integrity),
que reuniu documentos históricos de petroquímicas e suas associações. “Os dias
felizes terão chegado quando ninguém mais considerar que embalagens plásticas
são boas demais para serem jogadas fora”, escreveu ele.
“Já
nos anos 1960, 1970, no entanto, começaram a ser identificados os problemas da
poluição plástica, por meio do descarte inadequado. Então quais foram as
soluções apresentadas pela indústria? Primeiro incineração e, depois,
reciclagem”, contou à Pública Ecimara dos Santos Silva, do Comitê
Gestor da Aliança Resíduo Zero Brasil.
·
Os problemas da
reciclagem
A
reciclagem, porém, sempre teve limitações conhecidas, e, ao longo das últimas
décadas, os países não conseguiram aumentar suas taxas de maneira proporcional
ao crescimento da produção. De acordo com o Pnuma, das 9,2 bilhões de toneladas
de plástico produzidas desde a década de 1950, mais de 7 bilhões viraram lixo.
Segundo
a OCDE, apenas 9% do plástico produzido é reciclado no mundo. No Brasil, a
depender do índice, a taxa de reciclagem é um pouco maior. Segundo a Associação
Brasileira da Indústria do Plástico (Abiplast), em 2023, foi de 20,6%. Já um
levantamento da WWF Brasil de 2019, com base em dados do Banco Mundial, apontou
que apesar de o país coletar 91% de lixo plástico, apenas 1,3% eram reciclados.
Vários
fatores explicam a baixa taxa de reciclagem dos plásticos. Primeiro, porque os
produtos tendem a ser feitos com diferentes resinas, que não podem ser
recicladas juntas. Como elas têm diferentes propriedades químicas e físicas,
elas derretem em temperaturas diferentes, o que inviabiliza o processo
conjunto.
Assim,
uma garrafa marcada com o número 1 envolto por setas que formam um triângulo, o
símbolo para PET, não pode ser reciclada junto com um frasco para detergente
marcado com o número 2, símbolo para PEAD.
Os
números envoltos pelo triângulo formado por setas, inclusive, não significam
que aquele material é reciclável. Criados pela grande associação do setor
petroquímico, a SPI, no final dos anos 1980, os símbolos apenas indicam o tipo
de resina usado no produto. A confusão, no entanto, se explica pelas setas em
triângulo – símbolo universal da reciclagem.
Segundo,
porque a reciclagem mecânica, processo mais utilizado no qual o plástico é
reaquecido para ser remodelado, pode aumentar a potencial carga tóxica do
material que passará a compor outro produto. E a falta de transparência sobre
quais substâncias químicas são utilizadas na manufatura dos plásticos adiciona
mais uma camada de insegurança ao processo.
·
É a economia
A
reciclagem também enfrenta barreiras logísticas e econômicas, não só no Brasil,
mas no mundo. Diferentemente de indústrias mais integradas, como a do alumínio
e a do papel, a petroquímica e a de transformação dos plásticos é composta por
empresas de ramos e escalas completamente diferentes, o que dificulta os
investimentos financeiros e tecnológicos necessários para ampliar a reciclagem.
Não
à toa, enquanto em 2022 o Brasil reciclou a exata quantidade de latinhas de
alumínio que produziu, a reciclagem plástica, no geral, foi de 26%, segundo a
Abiplast. Algumas resinas, como a PET transparente, possuem um mercado maior e
atingem taxas mais altas. Outras se tornam lixo – seja por indisponibilidade
tecnológica, falta de logística ou ausência de mercado. É o caso para as
embalagens multicamadas, que levam também alumínio, ou para as garrafas de água
flexíveis e as garrafas e frascos de plásticos coloridos.
Segundo
um estudo da Oceana, organização sem fins lucrativos, o Brasil responde por 8%
de todas as toneladas de resíduos plásticos que chegam aos oceanos anualmente.
Para
que a reciclagem de determinado material aconteça, explica Carlos da Silva
Filho, da ISWA, é necessário uma integração entre regramento estatal,
infraestrutura pública, prestação de serviços e demanda de mercado. E todos
esses pontos precisam funcionar.
“O
Sul global, de forma geral, tem uma carência grande de infraestrutura – de
coleta seletiva, de unidades de separação de resíduos”, diz ele.
No
Brasil o problema é profundo: ainda há mais de dois mil lixões em
funcionamento. Segundo a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e
Resíduos Especiais (Abrelpe), 61% dos resíduos sólidos urbanos produzidos
acabam em aterros sanitários, ou seja, não têm destinação adequada. E é o
plástico que responde pela maior fatia (quase 17%) dos resíduos sólidos secos –
recicláveis, em teoria.
No
mundo, há um problema de falta de mercado de compra. “Não adianta ter
regramento e infraestrutura se a indústria não tem onde usar o material
reciclado”, explica Silva Filho, que defende que sejam estabelecidos
percentuais mínimos de material reciclado na composição de determinados
produtos.
A
ausência de viabilidade econômica para a reciclagem é um problema conhecido há
tempos pela indústria petroquímica, como mostra a recente acusação do estado da
Califórnia contra a ExxonMobil.
“Por
décadas, a ExxonMobil vem enganando o público para nos convencer de que a
reciclagem poderia resolver o lixo plástico e a crise de poluição, quando eles
claramente sabiam que isso não era possível”, disse o procurador-geral do
estado americano, que, em setembro, entrou com o processo contra a gigante petroquímica.
Já
em 1989, o presidente do Vinyl Institute, associação que nasceu da SPI, disse
em uma conferência: “A reciclagem não pode continuar indefinidamente e ela não
resolve o problema dos resíduos sólidos”.
A
explicação era – e continua – simples: resinas virgens têm mais qualidade e são
mais baratas do que produzir material reciclado.
“O
plástico é feito a partir do petróleo. Essa é uma cadeia produtiva que recebe
subsídios desde a extração. Um estudo recente mostrou inclusive que esse é o
caso para o Brasil. A nossa indústria [petroquímica] recebe em torno de 45
milhões de dólares em subsídios por ano”, diz a engenheira ambiental Lara
Iawanicki, da ONG Oceana.
“O
material reciclado precisa se tornar mais barato do que a matéria virgem”, diz
Carlos da Silva Filho. “Mas temos uma política de resíduos sólidos que diz que
precisamos priorizar a reciclagem, só que a política tributária brasileira dá
incentivo para o material virgem.”
O
estudo citado por Iawanicki, elaborado pela consultoria ambiental Eunomia,
mostra que, nos 15 países líderes em produção, a indústria de polímeros para
plásticos primários recebe 30 bilhões de dólares em subsídios anualmente. A
China é a líder, com mais de 11 bilhões de dólares em subsídios, seguida pela
Arábia Saudita, com 8 bilhões.
“É
muito mais barato fabricar plástico e colocar no mercado do que estruturar todo
o processo de logística reversa, coleta seletiva e remunerar adequadamente os
catadores pelos serviços que eles prestam. Então essa conta não fecha – e nunca
fechou”, explica a engenheira ambiental.
Não
só isso. A indústria dos combustíveis fósseis também vê na produção de resinas
para plásticos um caminho para sobreviver em meio à transição energética que
visa substituir os combustíveis fósseis, cuja queima é a principal causa das
mudanças climáticas.
Ainda
em 2018, uma análise da Agência Internacional de Energia
(IEA) mostrou que os petroquímicos (usados
para produzir plásticos, fertilizantes e roupas) já estavam se tornando os
grandes motores da demanda por petróleo – à frente dos combustíveis para
carros, aviões e caminhões. A previsão é que, até 2050, os petroquímicos
respondam por quase metade do crescimento da demanda por petróleo.
Um
levantamento da consultoria GlobalData aponta para uma expansão de projetos
petroquímicos nos próximos anos, a maioria para produzir polipropileno (de
embalagens de manteiga e sorvete, tampas, cadeiras e por aí vai) e polietileno.
Os países que lideram essa expansão são, justamente, os que, nas discussões do
tratado global, não apoiaram medidas de eliminação gradual de alguns produtos
plásticos e substâncias químicas preocupantes: China, Irã, Índia, Rússia e
Estados Unidos.
Em
2025, eles e os demais países precisarão voltar às negociações e definir quanto
– e como – vão intervir na produção de plásticos.
“Aqueles
3 Rs: reduzir, reutilizar e reciclar são muito bonitos, mas não estão
acontecendo. Eu tenho defendido os 3 Ds: descolar o crescimento econômico da
geração de resíduos, desintoxicar todas as cadeias de produção – não só do
plástico –, reduzindo ao mínimo as substâncias químicas, e descarbonizar essas
operações”, afirma Carlos da Silva Filho.
Fonte:
Por Isabel Seta, da Agência Pública
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