A esquerda
conhece a história, mas falta pedagogia!
Na
campanha presidencial de 2002, o então candidato Lula escreveu uma “Carta ao
povo brasileiro”. Essa e outras ações durante a campanha contribuíram para
tornar a imagem de Lula mais palatável às elites e parte da população. Em um
momento da carta, ele diz que “o sentimento predominante em todas as classes e
em todas as regiões é o de que o atual modelo esgotou-se”.
É
notório que as estratégias utilizadas para vencer eleições no Brasil, não
necessariamente, se preocupam em apresentar projetos elaborados de sociedade e
de país, em muitos casos, aos eleitores não são apresentados sequer os
programas de governo. O documentário “Arquitetos do Poder”, nos dá a dimensão
dessas estratégias e artifícios.
Faço
menção à carta de 2002 por entender ser um dilema atual das esquerdas construir
uma relação cognitiva entre as suas bandeiras e as demandas da classe
trabalhadora. A sensação é que o “atual modelo esgotou-se”.
Luciano
Mendes, em texto nesta mesma coluna, discorreu sobre “a perplexidade das
esquerdas”. Corroboro com ele quando diz que “elas ainda acreditam em demasia
na racionalidade iluminista”. É como se, racionalmente, fosse inviável alguém
defender um projeto que ameaça a sua própria existência enquanto sujeito, é
como se a razão do que se apresenta enquanto “projeto” bastasse para garantir a
ação política dos cidadãos em prol dos projetos progressistas.
O
apego a essa visão definida por Luciano Mendes, por outro lado, a meu ver,
impede que percebamos a complexidade da formação social dos sujeitos e tudo
aquilo que os atravessam em suas subjetividades.
Como
alcançar as pessoas?
São
vários os exemplos de pessoas próximas, familiares, amigos da escola, colegas
de trabalho, com diferentes formações e classes sociais, conhecidas nossas,
externar comentários “absurdos”. Sempre me questiono quando ouço algo deste
tipo: quem, qual ideia e onde essas pessoas estão se formando? Sim, as opiniões
compõem um campo de formação.
Como
podemos alcançar essas pessoas? Alguns dizem: “Elas falam isso porque não
conhecem história!” E a nós, será que falta pedagogia para dialogar com essa
população?
Mas
esse mesmo povo, que acreditou na “carta ao povo brasileiro”, que sentiu o
esgotamento do modelo e que elegeu “a esquerda” (ou Lula) por 5 mandatos, de
repente, tornou-se ignorante e elegeu outro sujeito abominável? O que mudou? O
povo ou o modo como dialogamos e apresentamos as propostas?
Claro
que, dentro dos mecanismos eleitorais brasileiros, temos as alianças, o papel
das elites, as fake news, o uso dos algoritmos e redes sociais, toda uma
novidade tecnológica e da comunicação que deixou o processo ainda mais
complexo.
Se
em 2002, representada na figura do PT, as esquerdas precisaram se adequar às
regras do jogo, me parece que se perderam na intencionalidade de ganhar
eleições e se afastaram daquilo que sempre as fundamentaram: a formação a
partir da ideia de construção de outro mundo.
É
preciso ganhar as eleições, pois aprendemos sobre a importância de ocupar
certos espaços no executivo e legislativo, foi isso que garantiu muitas
políticas públicas. Mas não podemos nos
afastar da possibilidade de construir outro mundo, continuar sendo os
propagadores de utopias. Já disseram que não existe movimento revolucionário
sem teoria revolucionária. Atualmente, parafraseando Ailton Krenak, é preciso
construir ideias para adiar o fim do mundo.
E
essas ideias, como destacou Luciano Mendes em seu texto, perpassam pela
coletividade. Arrisco a dizer, por uma “pedagogia da coletividade”. Em uma
sociedade onde impera o individualismo exacerbado, a competitividade, a
concepção de mundo de que o outro é meu concorrente, é necessário aprender,
literalmente, outra cosmovisão de mundo.
Temos
as experiências históricas das lutas dos trabalhadores, dos movimentos sociais,
das associações de bairro, das cooperativas populares, das cozinhas solidárias,
das experiências educativas formais e informais, dos povos originários, dos
quilombos, dos coletivos de comunidades vulneráveis, etc.
Qualquer
exemplo, em qualquer lugar do mundo, que busquemos para ilustrar o sentido
proposto, teremos como característica tratar-se de um movimento coletivo. E
onde existe movimento coletivo, existe pensamento coletivo. Este pensamento, ou
cosmovisão, ou teoria, definam como quiser, perpassa por um diálogo, uma
linguagem, uma narrativa, uma aprendizagem que precisa ser transmitida,
ensinada, construída em conjunto por uma cognição inteligível.
Não
estou aqui afirmando que não existem movimentos coletivos na atualidade. Ao
contrário. O que estou refletindo é sobre a possibilidade de alcançarmos o
cotidiano das pessoas, em termos de afetar o campo de pensamento, de construir
reflexões que interfiram nas suas ações no mundo, que nos eduquem para outras
possibilidades e sobre outras perspectivas.
O
mundo do trabalho é dinâmico, mas é preciso disputar a formação dos sujeitos,
entender, como diria o historiador E. P. Thompson, que as pessoas agem de
acordo com suas condições e possibilidades.
Fonte:
Por Marcelo Silva, em Brasil de Fato
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