O início
de um fim: a resistência contra a violência do patriarcado
“No
princípio era o Império, o império se considerava divino, ou seja, autorizado e
legitimado por Deus e esse império agia como sendo o próprio deus”, reescreveu
provocadoramente Marcelo Barros. “Assim”, continua o monge amigo de Dom Hélder
Câmara, “pode começar nossa história, ou seja, a história do martírio nos
diversos países da Abya Yala, a nossa pátria grande”. No fim de mais um ano,
notícias aterradoras impõem-se em uma velocidade desconcertante. Não seria
melhor cair no sono dos alienados ou entrar na realidade paralela pintada no
vídeo recém-publicado pela Marinha do Brasil?
A
violência sob qual o país foi construído cobra o seu amargo preço em uma
sucessão de fatos chocantes. A força do patriarcado autoritário mostra-se desde
o espírito golpista da caserna e os brutais casos de truculência policial,
passando pela sanha ensandecida de controlar os corpos femininos até a
onipresente ideologia neoliberal sempre ávida por cortes de gastos sociais. São
todas representações do mesmo poder concentrado nos punhos de uma diminuta
classe de homens brancos, herdeiros de uma herança colonial. Nesse sentido
pontua Barros:
“É
claro que no decorrer da história do continente, esse império foi mudando de
nome ou de rosto. Eram os impérios de Portugal e Espanha e a partir do século
XIX passou a ser a Inglaterra e no nosso século tomou a cara política do
governo dos Estados Unidos da América, mas em nossos dias nem tem rosto. É
marca anônima das multinacionais e do capital internacional”.
A
proclamação da República, há 135 anos, ocorreu por meio de um golpe dos
militares, com o apoio da elite agrária que já governava o país, insatisfeita
com a abolição da escravatura. Em 1964, após novo golpe empresarial-militar, o
editorial de um jornal estadunidense confessava alguns dos interesses
econômicos espúrios que levaram os Estados Unidos a patrocinar o retrocesso:
“eis aqui uma situação em que um bom e efetivo golpe de Estado, no velho
estilo, de líderes militares conservadores, pode servir aos melhores interesses
de todas as Américas”.
Nas
últimas semanas, o país confirmou, segundo os indiciamentos da Polícia Federal,
que as ameaças à democracia proferidas pelo ex-presidente da República não eram
mero discurso vazio e inofensivo. Em 2022 mais uma vez figuras de alta patente
das Forças Armadas participaram de uma perigosa e concreta conspiração para pôr
fim ao duramente conquistado Estado Democrático de Direito. Como se não
bastasse, integrantes das forças especiais planejaram matar o então presidente
eleito, o seu vice e o presidente do Tribunal Superior Eleitoral.
Não
satisfeitos, os inimigos da democracia articulam uma imoral anistia no
Congresso – que a qualquer momento pode ser descongelada em razão de negociatas
envolvendo o PL de Bolsonaro e o apoio na próxima eleição para a presidência da
Câmara –, tanto aos terroristas do 8 de janeiro de 2023, como aos envolvidos na
recém revelada tentativa golpista. A velha lógica do inimigo interno persiste
no imaginário militaresco e continua a ser acintosamente reproduzida nas
academias militares.
Diante
disso, a arte surge como um respiro de esperança e um antídoto ao preocupante
esquecimento. O primoroso filme “Ainda Estou Aqui”, baseado no livro de Marcelo
Rubens Paiva, é um importante lembrete de que lutar pela preservação da memória
e pela reparação dos crimes da ditadura é imprescindível para que tais eventos
não se repitam jamais! O país deve muito a mulheres como Eunice Paiva e Clarice
Herzog, corajosas testemunhas da verdade que o discurso da extrema-direita
deseja ardentemente suplantar.
A
mesma mentalidade de impunidade e conivência com a cultura da violência está,
infelizmente, impregnada nas Polícias Militares Brasil afora. A alegação de que
o brasileiro é um ser naturalmente pacífico, não passa de uma falácia. Conforme
Elliot Aronson e Joshua Aronson, “nós, humanos, provamos que somos uma espécie
particularmente agressiva”. Mesmo porque “nenhum outro animal, de forma tão
consciente e arbitrária, agride, tortura e mata membros de sua própria
espécie”. Ainda assim, é escandaloso deparar-se com inúmeros casos de execução
sumária por parte daqueles que deveriam proteger a população.
Apenas
para citar os últimos episódios de repercussão nacional, entre eles estão o
assassinato de um mototaxista em Camaragibe (PE) pelo fato de o policial ter se
negado a pagar a corrida de 7 reais, além de um homem ter sido arremessado de
uma ponte, por agentes de segurança, na periferia de São Paulo (SP). Por sinal,
a Polícia Militar paulista vem batendo recordes escabrosos no número de mortes
cometidas por policiais militares, no atual governo do “técnico” Tarcísio de
Freitas.
Até
17 de novembro deste ano houve um aumento de 46% nos já estratosféricos índices
de “mortes em conflito policial”. A reação dos chefes dos Executivos estaduais
e de seus secretários de Segurança Pública beira a indiferença hipócrita quando
não o completo desprezo pela vida humana. Defendem-se com escusas
estapafúrdias, dizendo se tratar de “incidentes isolados”. Tal insensibilidade
comprova, principalmente, o baixo valor das vidas de pessoas negras e
empobrecidas.
Há
pouco, o Comandante-Geral da Polícia Militar de São Paulo veio a público dizer
que os agentes que jogaram o homem de uma ponte cometeram um “erro emocional”.
Não! Não se trata aqui de uma mera falha, erro ou sequer descontrole emocional,
senhor coronel. Isso que ocorreu, e acontece sistematicamente nos batalhões da
PM, se chama tortura, homicídio, abuso de autoridade. E essas condutas são
crimes graves, inconcebíveis em uma sociedade democrática.
Enquanto
isso, as forças políticas do atraso trabalham com afinco no Congresso Nacional.
Na Câmara dos Deputados, a Comissão de Constituição e Justiça aprovou a PEC do
Estupro. Trata-se de uma iniciativa que faz o país voltar ao ano de 1940,
quando se autorizou a interrupção da gravidez nos casos de abuso sexual e de
risco de vida para a mãe. A iniciativa é cruel para as mulheres em uma
realidade com altos índices de crimes sexuais, especialmente para meninas e
adolescentes.
Em
um cenário de generalizado feminicídio e violência doméstica, nunca foi tão
necessário um movimento feminista aguerrido e assertivo, com um aprofundado
trabalho de conscientização de jovens que se veem cada vez mais enredadas em
inaceitáveis discursos misóginos. Aquilo que Vergès defende como feminismo de
política decolonial, contra “uma manifestação da violência destruidora
suscitada pelo capitalismo”:
“‘O
feminismo envolve muito mais do que a igualdade de gênero. E envolve muito mais
do que o gênero’, lembra Angela Davis. Ele também ultrapassa a categoria
‘mulheres’, fundada sobre um determinismo biológico, e atribui novamente à
noção de direitos das mulheres uma dimensão política radical: levar em conta os
desafios impostos a uma humanidade ameaçada de desaparecer”.
A
exploração econômica do patriarcado colonizador é antiga. “A divisão
internacional do trabalho significa que alguns países se especializam em ganhar
e outros em perder”, denunciou Eduardo Galeano. “Nossa comarca no mundo, que
hoje chamamos América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os
remotos tempos em que os europeus do Renascimento se aventuraram pelos mares e
lhe cravaram os dentes na garganta”.
Tributários
de idêntica perspectiva, o “mercado financeiro” – esse insaciável senhor concentrador de riquezas – não parece
contente com o menor índice de desemprego em dez anos, nem com um crescimento
anual do PIB de mais de 3%. Sua ira se dirige à recomposição de carreiras
públicas sucateadas nos últimos anos e aos investimentos em saúde e educação.
Pouco
importa se o IBAMA e a Funai não têm servidores suficientes para enfrentar os
ataques ao meio ambiente e aos povos indígenas, ou se as universidades federais
estavam prestes a interromper seu funcionamento, nem mesmo se a fila de
cirurgias eletivas do SUS aumentava a cada mês. Aos detentores do capital e
seus prepostos, a prioridade é a austeridade fiscal acima de tudo e de todos,
para assim preservar a capacidade de o país arcar anualmente com dezenas de
bilhões de reais de seu orçamento destinados aos preciosos e intocáveis juros
da dívida pública.
Como
já reconhecia há mais de 50 anos Galeano, é preciso uma mudança profunda de
estruturas em uma sociedade e em um Estado encharcados de colonialidade. Vide
os retrocessos que acontecem na Argentina de Milei, aplaudidos e apoiados pelos
operadores financeiros e seus veículos de imprensa. Nessa esteira pontua o
autor uruguaio:
“A
causa nacional latino-americana é, antes de tudo, uma causa social: para que a
América Latina possa nascer de novo, será preciso derrubar seus donos, país por
país. Abrem-se tempos de rebelião e de mudança. Há quem acredite que o destino
descansa nos joelhos dos deuses, mas a verdade é que trabalha, como um desafio
candente, sobre as consciências humanas”.
Ainda
que as privatizações não sejam garantia alguma de aumento de eficiência na
prestação de serviços, como demonstra o caso da distribuidora de energia Enel
na maior metrópole brasileira – que deixou no escuro milhões de consumidores
por dias a fio –, o apetite pela venda dos bens públicos parece incontrolável.
No estado de São Paulo governado por um ilusório “bolsonarismo moderado”, além
da venda da Sabesp, o apetite devorador dos senhores do capital se volta para a
exploração da educação pública. Nem mesmo as democráticas praias estão livres
de sua cobiça selvagem.
No
Senado tramita a PEC das Praias que estabelece a possibilidade de transferência
dos “terrenos de marinha”, pertencentes à União, para particulares, abrindo a
brecha para restringir o acesso às praias. Alguns chamam a iniciativa de PEC da
especulação. Não é de se surpreender que a iniciativa seja encampada pelo
Senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), aquele que há poucos dias subiu à tribuna
para relativizar o plano de atentado contra o presidente da República e bradar
que “vontade de matar alguém todo mundo alguma vez na vida já teve”.
Como
reagir a tamanha fúria violenta do patriarcado que com seus longos tentáculos
se espraia nos calabouços autoritários das Forças Armadas e das Polícias
Militares, na arrogância elitista das empresas transnacionais e das bolsas de
valores, no pseudo discurso religioso-fundamentalista e machista dos
conservadores que querem submeter as mulheres e seus corpos? Entregar-se com
descrença e resignação não é uma opção. O que diz a pensadora feminista Vergès
sobre o Estado pode ser transmutado para o sistema patriarcal, que se utiliza
da manipulação do medo para exercer seu controle:
“Se
o Estado quiser esmagar um movimento, ele recorrerá a todos os meios para isso,
usará todos os recursos à sua disposição para reprimir e para dispersar os/as
oprimidos/as. Ele bate com uma mão e com a outra tenta cooptar. O medo é uma de
suas armas preferidas para produzir conformismo e consentimento”.
A
resistência está aí, às vezes silenciada, outras com seu incômodo barulho cheio
de rebeldia. Nos movimentos das mães que tiveram seus filhos assassinados pela
violência policial e dos familiares e amigos dos mortos e desaparecidos pela
ditadura militar, nas organizações de pescadores e indígenas que se negam a
renunciar aos seus territórios tradicionais, nos mais diversos e plurais
coletivos feministas defensores da dignidade das mulheres, nas manifestações
dos professores e professoras contra o sucateamento da educação pública…
Com
estratégias diferentes e pautas nem sempre coincidentes, muitas e muitos são
aqueles e aquelas que se levantam contra o discurso violento hegemônico que
mata, escraviza e explora as “maiorias populares oprimidas”, como dizia Ignacio
Ellacuría. É preciso assumir, como o teólogo jesuíta radicado em El Salvador,
que “se os direitos humanos se originam do bem comum, se apresentarão como
obrigação para os integrantes da humanidade, pois todos teriam um direito
fundamental a participar do bem comum como têm obrigação de contribuir com a
sua realização”.
Sem
ter a ilusão de que o Direito irá solucionar todas as questões, mas sem também
ingenuamente descartá-lo, a luta política se faz em muitas searas tais como a
promoção de uma educação popular libertadora e de uma economia solidária do dom
e do comum. Para tanto, deve-se ter presente a compreensão oferecida por
Vergès:
“Aprendi
também que é preciso usar as leis do Estado contra ele próprio, mas sem ilusão
nem idealismo […] Essa estratégia nunca era empregada sozinha, ela sempre vinha
acompanhada de uma crítica ao Estado e às suas instituições. As lutas se travam
em múltiplas frentes e com objetivos que visam a temporalidades diferentes. A
existência de um mundo vasto, onde resistências e recusas à submissão se opõem
a uma ordem mundial injusta, fez parte da compreensão de mundo que me foi
transmitida”.
O
início do fim de 2024, também é o transcurso de um novo tempo para os cristãos,
o Advento. Oportunidade de se preparar para celebrar o mistério do Natal, da
vinda de Jesus, o Deus-menino que nasceu em um cocho porque não havia lugar
para Ele. Com o início do Jubileu, o
Papa Francisco conclama a ter fé na Esperança. Afinal, “a esperança é
uma âncora”, “uma âncora que se joga com a corda e afunda na areia”. “E nós
temos de estar agarrados à corda da esperança”, arremata o pontífice, “bem
agarrados”[
.
Arraigadas na esperança que impele à resistência da luta pelos direitos humanos
fundados no bem comum, possam as “maiorias populares oprimidas” manterem-se
firmes e alertas.
Fonte:
Por Gabriel Vilardi, para IHU
Nenhum comentário:
Postar um comentário