CRISE DAS
DEMOCRACIAS: A lei da bala, do boi e da bíblia
Atores
dos campos conservador e reacionário vêm se valendo de direitos e garantias
constitucionais para construir suas pautas no debate público brasileiro. Nesse
processo, projetam imagens e contra imagens sobre a sociedade, o Estado e a
democracia. “O agronegócio é a coluna vertebral do país.” “A Igreja é a
promotora do bem comum.” “Armamentos e forças de segurança são salvaguardas
contra o crime.” Afirmações como essas, articuladas a concepções sobre direitos
e liberdades, constituem os discursos de diferentes linhas de força que
pautam a discussão sobre temas centrais da política nacional, como segurança
pública, educação e saúde.
Este
livro analisa os argumentos construídos por meio da linguagem de direitos nas
áreas tradicionalmente chamadas de BBB, sigla usada para identificar as
bancadas organizadas no Congresso Nacional em torno da “bala”, do “boi” e da
“Bíblia”. Como a atual onda conservadora da política brasileira ultrapassa
os trabalhos parlamentares, esses termos servirão aqui como referenciais para
observar variadas formas de articulação em diferentes espaços institucionais do
Estado, não apenas no Congresso Nacional. O estudo de casos no Legislativo, no
Executivo e no Judiciário brasileiros ajudará a compreender a abrangência desse
movimento.
·
Disputas jurídicas e
cultura política democrática
As constituições
e o direito em geral não são garantias absolutas contra a erosão democrática.
Hoje uma espécie de lugar‑comum, esse diagnóstico é recorrente na literatura
contemporânea sobre direito e política. Identifica‑se, por exemplo, o sequestro
das democracias constitucionais por autocratas que atacam instituições e
expandem seu poder e o de seus aliados, instrumentalizando o direito para
projetar uma imagem de legalidade – o chamado “legalismo autocrático”. Líderes
populistas, nacionalistas e autoritários invocam os direitos humanos em seus
discursos, colocando‑os “a serviço de fins que são excludentes, repressivos,
antipluralistas em essência” – a despeito da tradição protetiva desses direitos
em relação aos indivíduos (especialmente as minorias) contra as ingerências
estatais –, fenômeno visto como uma “apropriação indevida” (“misappropriation
of human rights”).
“Legalismo
autocrático” e “apropriação indevida de direitos” são noções que surgem do
incômodo diante da disjunção, aparentemente abrupta, entre, de um lado, as
garantias constitucionais e os direitos e, de outro, a democracia. Muito
do pensamento político ocidental se constituiu com base na ideia de que esses
termos seriam evidentemente um par harmonioso. Se isso
enfatizou o poder socialmente estabilizador da noção de Estado democrático de
direito, também deixou na sombra o fato de que todos os ideais aí inscritos –
Estado, democracia, legalidade e direitos – são objetos de disputas ferrenhas.
Neste
livro, tratamos de parte dessas disputas no contexto da cultura
política democrática brasileira, ou seja, disputas em torno de “noções
que balizam visões de mundo, que legitimam a maneira como se distribuem
riqueza, poder, recursos ambientais, reconhecimento social”. É na cultura
política – o conjunto de instituições formais e informais, de regras explícitas
e implícitas, de saber teórico e de saber prático – que se expressa
concretamente aquilo que os ideais afirmam de forma abstrata. Adotamos essa lente
para analisar um traço específico das democracias contemporâneas: a mobilização
do direito para efetivar objetivos políticos.
·
A força das “farsas”
Mobilizações
jurídicas para efetivar direitos de grupos minoritários ou discriminados foram
e ainda são fartamente estudadas pelas ciências sociais. Porém, essas
mobilizações (principalmente demandas judiciais, mas também outras estratégias
de pressão) em geral tinham relação com processos de consolidação da
democracia, e não com a sua erosão. Tradicionalmente associado ao
progressismo e à esquerda, esse tipo de ativismo, quando usado em favor de
pautas conservadoras e à direita, tem sido menos explorado por estudos
acadêmicos, sobretudo no Brasil. Seja como for, o uso estratégico do direito
pelos movimentos sociais não costuma ser analisado no contexto da crise das
democracias.
De
um lado, o fenômeno é recebido com tranquilidade: o que, afinal, pode haver de
mal na atuação de grupos ideologicamente diversos propondo suas pautas por meio
da linguagem jurídica? Não será esse o objetivo das democracias liberais? De
outro, se a mobilização jurídica é associada a pautas regressivas, como uma
“apropriação indevida”, a reação mais frequente é subestimar o risco que ela
representa. Vale a pena dedicar atenção a uma farsa, a uma tentativa, muitas
vezes malsucedida, de legitimar pautas conservadoras e reacionárias com o uso
vazio e hipócrita da linguagem do direito?
Para
compreender o que está em jogo, é necessário perceber a força da linguagem
jurídica para além dos seus efeitos imediatos. O conteúdo atribuído diariamente
às normas da Constituição não tem consequências apenas casuísticas – com uma
posição prevalecendo sobre outras e atores políticos ganhando ou perdendo –,
mas acaba por impactar o próprio caráter dos regimes constitucionais. O acúmulo
de interpretações ora progressistas, ora reacionárias sobre direitos e
instituições jurídicas permite que um regime político oscile entre o
republicanismo e o autoritarismo. Em conjunto, as interpretações do direito –
isto é, as disputas pelo seu significado – podem configurar concepções
restritivas (e, por vezes, discriminatórias e até racistas) de cidadania e de
liberdades civis, em detrimento de outras, que propõem visões mais amplas e
pluralistas. Essas interpretações podem também concentrar poder e desequilibrar
regimes de forma cumulativa, sem “golpes” no sentido clássico nem subversões
explicitamente reconhecidas ou eventos marcantes de violência política. Nesse
processo, o risco antidemocrático não deixa de existir pela simples derrota
eleitoral de líderes autocratas.
O
direito é uma forma de ação política. Em termos teóricos, pode ser considerado
um subgênero discursivo do campo político. Ele é central para a vida em comum,
pois regula, limita e “traduz” o mundo por meio de formas que fornecem
orientações gerais, como constituições, leis, decretos etc. Mas essas formas
não esgotam o direito. Elas são objeto de disputas de interpretação em espaços
oficiais e não oficiais: também são parte do direito os discursos divergentes
sobre quem tem direito a quê, sobre até onde vão os direitos e as liberdades,
sobre quais devem ser as situações e as pessoas protegidas numa sociedade.
A linguagem jurídica é um modo potente e extremamente maleável
de posicionar sujeitos e ordenar a vida em sociedade em meio à ação política.
Mesmo quando não se efetivam de imediato (quando, por exemplo, projetos de lei
não são aprovados, argumentações não são acolhidas por tribunais, agendas
políticas não se convertem em políticas públicas), os discursos que dizem como
as coisas “devem ser” alteram os repertórios e, por vezes, as estruturas da
cultura política. Eles têm o potencial de agregar novos tópicos ao debate
público e de mudar a ênfase de tópicos já conhecidos, além de alterar os
parâmetros de avaliação da legitimidade de um regime de poder.
Ao
lançar luz sobre a atuação de conservadores e reacionários nos espaços formais
de poder, buscamos destacar como esses grupos mobilizam as instituições
políticas e jurídicas e empregam o vocabulário característico delas para
tensionar seus significados. Muitas vezes presentes em discursos progressistas,
noções como vontade popular, soberania da maioria, pluralismo, separação de
poderes, segurança jurídica, laicidade e ativismo judicial aparecem revestidas
de novos sentidos e apontam para o encapsulamento de temas e termos de
adversários políticos, e até mesmo para o esvaziamento e a reversão de seus
sentidos. Usam a linguagem de direitos para expressar objetivos contrários aos
fundamentos humanistas e pluralistas desse vocabulário.
Este
é um livro sobre os usos da linguagem jurídica, mesmo daqueles que não foram
bem sucedidos em atingir seus objetivos ou cujos efeitos foram depois
revertidos. Se alguns desses usos tiveram sucesso em obter de forma duradoura
aquilo que buscavam, grande parte deles pode, a depender da convicção de quem
os lê, entrar na categoria de “mera farsa”, “maquiagem legalista”,
“hipocrisia” em relação aos valores constitucionais. São construídos com a
linguagem do direito – especificamente a linguagem de direitos e das garantias
constitucionais –, mas parecem, em várias situações, expressar o exato oposto
dessas garantias e direitos. Para compreender o aspecto paradoxal dos atuais
processos de erosão democrática, que muitas vezes se valem intensamente de
elementos e ideais da própria democracia constitucional, é necessário conhecer
e analisar esses discursos. Não há democracia sem inclusão, mas é cada vez mais
comum que visões de mundo excludentes se apresentem como as verdadeiramente
legitimadas pela ordem constitucional. Sem enfrentar os meandros dessa
tendência, corre‑se o risco de criar estratégias de fortalecimento democrático
que privilegiem a ideia de ordem em vez da ideia de constitucionalidade –
estratégias que enfatizem a imposição, de cima para baixo, do ideal abstrato de
Estado democrático de direito, em detrimento da democratização dos recursos
constitucionais de construção da cultura política.
·
Boi, bala e bíblia:
conservadorismo e reacionarismo?
O
que compõe uma onda conservadora como a que atingiu o Brasil contemporâneo é
uma combinação de ações e tendências marcadas por divergências e antagonismos
próprios dos processos político‑sociais. Determinadas partes ganham
protagonismo ao superar outras em intensidade, relevância ou destaque. No todo,
a onda é composta de um “emaranhado de jogadores em diferentes tabuleiros”.
Contudo, suas “conexões parciais em torno de uma concertação mais ampla” são
capazes de revelar as direções que essas ondas tomam em certos momentos
históricos. Este livro não mapeia todas as vozes nem todas as posições
políticas que podem ser pensadas como antidemocráticas no Brasil atual. O
objetivo é revelar os pontos de aproximação e, às vezes, de convergência entre
as articulações discursivas sobre direitos que compõem a onda conservadora.
Evitamos
categorias descritivas que, a despeito de sua relevância para a análise
teórica, podem criar imagens totalizantes e estigmatizantes de disputas
políticas complexas. Indivíduos e atores políticos podem ter identidades
compostas por posições tanto conservadoras quanto progressistas, ou mesmo de
direita e de esquerda. Podem mudar de posicionamento por meio de alianças, por
estratégia ou por oportunismo. Assim, é preciso olhar para o conjunto de
argumentações para entender quais convergências ou “linhas de força” têm
emergido do debate sobre direitos. Se os significados concretos dos direitos e
das garantias fundamentais são configurados pelas disputas de interpretação, a
consolidação de linhas interpretativas excludentes e autoritárias indica os
padrões aos quais o campo democrático deve estar permanentemente atento. Este
estudo usou o par conservador/reacionário, ou conservadorismo/reacionarismo,
para englobar tanto as ações pela conservação da ordem social quanto aquelas
que preconizam o retorno a configurações sociais menos diversas e inclusivas.
Estudos
sobre a ideologia conservadora apontam para determinados elementos
identificadores de cada tendência. O conservadorismo preocupa‑se com a
velocidade das transformações sociais e exige que as mudanças sejam realizadas
nos limites da ordem existente, respeitando elementos que entende serem
externos à disputa política, tais como tradição, história, família, religião,
biologia e mercado. Busca essencialmente se opor a mudanças consideradas
ameaçadoras e adapta seus conceitos conforme a ameaça da vez. Por isso, tem uma
estrutura especular em relação ao conjunto de crenças progressistas que
identifica como oponente. Já o reacionarismo compartilha com o
conservadorismo a preocupação com a ordem social, mas busca romper com a ordem
vigente, muitas vezes qualificada de decadente, para restaurar ou recuperar um
passado ou ideal perdido.
Para
analisar o contexto brasileiro, adotamos a lente temática das três áreas
tradicionalmente referidas como BBB (boi, bala e Bíblia). Centrados no
agronegócio, na segurança pública e na religião, esses temas também se ligam a
vários outros tópicos, como meio ambiente, povos indígenas, trabalho, armas,
política criminal, educação, gênero e sexualidade. Com diferentes trajetórias e
alianças, atores de cada uma das três áreas se organizam para ocupar os espaços
de poder e apresentar suas demandas no Legislativo, no Executivo e no
Judiciário. Durante o governo de Jair Bolsonaro (2019‑22), pautas conservadoras
e reacionárias se fortaleceram por meio da valorização da moralidade religiosa,
do foco na falta de segurança e no medo da criminalidade, e da projeção de
discursos econômicos neoliberais.
Muitas
dessas temáticas propulsoras do poder político conservador e reacionário do BBB
já foram identificadas em análises do conservadorismo e da crise da
democracia realizadas em outros países. O conjunto de argumentações
constitui uma chave essencial para compreender a importância dessas pautas em
âmbito internacional, segundo a qual o neoliberalismo não pode ser visto apenas
como uma linha da política econômica, mas como uma tentativa mais ampla de
redesenhar o político e o social, atribuindo ao Estado o papel de manter as
desigualdades (políticas, sociais e econômicas) e a moralidade tradicional. O
foco político nessa interação tem ainda o potencial de provocar mudanças
estruturais: o neoliberalismo é uma ferramenta que esgarça o social enquanto
esfera política possível, corroendo a ideia e a estrutura da democracia.
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Linguagem de direitos
nos poderes
Apresentamos
nas próximas páginas uma radiografia não exaustiva dos usos da linguagem do
direito em espaços institucionais de poder. Optamos por localizar primeiro os
casos relevantes em cada um dos campos do BBB, para então identificar, por meio
da análise de documentos públicos, os argumentos jurídicos conservadores e
reacionários mobilizados em cada um deles. Para selecionar os casos, nos
apoiamos principalmente em pesquisas que já mapearam a atuação de grupos
conservadores e reacionários em suas respectivas áreas, com foco no cenário
mais recente (especialmente entre 2019 e 2022), nas temáticas centrais e tendo
como palco o Supremo Tribunal Federal (STF), o Legislativo e o Executivo
federais. Em alguns casos, foi necessário um olhar mais recuado no tempo a
partir do mapeamento de eventos‑chave pós‑redemocratização.
Ainda
que possa ser vista como uma maneira de resguardar e reafirmar interesses mais
imediatos, a atuação do BBB no Judiciário, por excelência o local de
interpretação de direitos constitucionais, é um momento privilegiado de
formulação de ideários mais amplos. É nessa arena que deságuam todos os
questionamentos posteriores à elaboração de políticas públicas nas searas
executiva e legislativa. Por ocasião de casos de grande repercussão pública,
são apresentadas as manifestações de uma gama variada de atores, desde as
partes do processo até aqueles que buscam influenciar as decisões. A
participação desses atores que não são parte direta do processo, mas podem
apresentar argumentos jurídicos sobre os casos, é comum especialmente nos
julgamentos sobre a constitucionalidade de leis. Essas figuras são chamadas
de amici curiae, termo em latim que significa “amigos da corte” –
ou, no singular, amicus curiae, “amigo da corte”.
Observar
as articulações dos discursos sobre o direito nos demais poderes permite captar
os sentidos que estão em disputa em outras arenas. Os políticos que ocupam
cargos no Legislativo e no Executivo recorrem à linguagem de direitos com
objetivos diferentes dos normalmente associados à “técnica jurídica”. Contudo,
em seus “discursos políticos”, eles também atribuem sentidos importantes a
referências jurídicas, usam a linguagem de direitos para construir
representações de inimigos, reforçar agendas identitárias e fazer outros apelos
populistas. Essas manifestações permitem situar a multiplicidade de sentidos da
linguagem de direitos na atual configuração da cultura política, além de
apontarem para rumos no futuro.
Os
capítulos deste livro destacam os caminhos argumentativos de manifestações nos
campos do BBB em direções conservadoras e reacionárias, isto é, sua origem e
seu percurso até desembocar no debate atual. Cada capítulo se aprofunda em uma
das áreas, em três passos. Na introdução, identificamos as características
históricas e as mudanças de cada campo no Brasil, do contexto de seu
estabelecimento como uma das bancadas do Congresso Nacional até seu papel na
grande “onda” ou “maré” conservadora‑reacionária atual. Em seguida,
apresentamos os casos centrais que compõem o estudo de cada área: quais temas
apareceram em quais instâncias dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.
Por fim, analisamos os discursos presentes nas manifestações do BBB.
Em
vez de reproduzir a estrutura de cada argumentação ou selecionar as
articulações mais representativas, apresentamos um conjunto de argumentos
próximos, organizados em categorias que permitem detectar as diferentes
posições em disputa no interior da cultura política. Começamos por destacar
como os atores analisados retratam seus principais ideais, a partir de uma
autoimagem e de um diagnóstico crítico do estado de coisas (um mundo em crise
ou em perigo). Depois, estruturamos os diferentes discursos observados nos
documentos a partir de quatro questões que mostram os usos da linguagem
jurídica para atingir objetivos conservadores e reacionários: Qual sentido de
democracia é construído na interpretação de princípios estruturais do Estado de
direito, tais como a separação de poderes e a segurança jurídica? Quais
direitos e liberdades estão no centro das argumentações? Quais atores esses
direitos buscam proteger, e do quê, ou de quem eles os protegem? Quais visões
de mundo o direito invocado por esses atores projeta e quais rejeita? Essas
perguntas ajudam a organizar os tipos de argumentos que aparecem nas disputas
interpretativas sobre direitos, e indicam para quais direções elas convergem e
que impacto têm na cultura política democrática.
Fonte:
Por Adriane Sanctis de Brito, Luciana Silva Reis, Ana Silva Rosa e Mariana
Celano de Souza Amaral, no Le Monde
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