Kwai e TikTok pagam centavos
por trabalho de crianças e adolescentes na internet
MARTINA*,
de 13 anos, ganhou R$ 10 assistindo a vídeos publicitários no Kwai. Ela dividiu
o pagamento em duas partes: metade para o leite dos sobrinhos e o restante para
pirulitos no mercado próximo à sua casa, na zona leste de São Paulo (SP).
A 2 mil quilômetros de distância, no Território Indígena
do Xingu (MT), o adolescente Ware, de 16 anos, também foi atraído pela
expectativa de ganhar renda nas redes sociais. Com os R$ 5 que faturou vendo
anúncios, comprou uma camisa: “não é muito, mas dá para o gasto”, comenta.
Capturados pela promessa de dinheiro fácil na internet,
crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos, ouvidos pela Repórter Brasil, têm gastado diversas
horas do dia em “microtarefas” no Kwai e no TikTok.
Curtindo perfis de usuários, compartilhando links,
visualizando vídeos e fazendo pesquisas simples no buscador, eles formam –
mesmo sem saber – uma mão de obra invisível e barata que alimenta os sistemas
de inteligência artificial (IA) dessas plataformas digitais.
Nos depoimentos colhidos pela reportagem, há relatos
sobre exposição a conteúdos não recomendados para essas faixas etárias, como
linguagem violenta e jogos de azar – as chamadas “bets”. “Tinha muita
agressão”, lembra Luan, adolescente indígena de Baía da Traição (PB).
Também são comuns reclamações atribuídas ao uso excessivo
de smartphones. “Meus dedos ardiam de tanto que eu ficava na tela do celular”,
conta Martina. Uma adolescente indígena de 17 anos, da zona sul da capital
paulista, afirma ter passado 10 horas seguidas no Kwai para juntar apenas R$ 3.
“Todos estão obcecados”, define.
Além disso, não há clareza sobre o uso das informações
pessoais de crianças e adolescentes, consideradas ainda mais sensíveis pela
LGPD, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.
<><> Trabalho com ares de diversão
Em tese, é preciso ter 13 anos para abrir uma conta nos
dois aplicativos e pelo menos 18 (ou autorização dos pais, no caso do Kwai)
para ganhar dinheiro com microtarefas.
Na prática, os usuários ouvidos pela Repórter Brasil dizem não
enfrentar grandes dificuldades para burlar essas regras. Na hora de criar um
perfil, nenhuma comprovação de idade é exigida, para além da digitação da data
de nascimento. Já na retirada de dinheiro, contas de parentes ou amigos são
facilmente utilizadas.
As atividades são realizadas com ares de brincadeira,
como se fizessem parte de um jogo. “Eu não conseguia parar de assistir os
anúncios para ganhar dinheiro. Eu comprava meus doces e ficava feliz da vida,
achando que estava rica”, lembra Martina.
“É um trabalho que se vende como uma forma de diversão”,
explica Matheus Viana, psicólogo e professor da UEMG (Universidade do Estado de
Minas Gerais) . “Mas quais são os efeitos no médio e longo prazo para a saúde
mental desses jovens?”, questiona.
Microtarefas não são propriamente uma novidade na
internet. Há anos, plataformas estrangeiras, como a Amazon Mechanical Turk, e
nacionais, como a Ganhar nas Redes, recrutam pessoas para diferentes tipos de
trabalho.
Recebendo centavos (ou ainda menos) por cliques, elas
enfrentam jornadas cansativas e são pagas para, por exemplo, categorizar
produtos em marketplaces ou inflar a base de seguidores de perfis nas redes
sociais.
Mais recentemente, Kwai e TikTok têm incorporado essas microtarefas
às suas próprias plataformas. Ou seja, em vez de terceirizar o serviço, elas
estimulam seus próprios usuários a treinar seus sistemas de IA.
“Claramente, é um trabalho de dados”, afirma Rafael
Grohmann, professor da Universidade de Toronto e diretor do DigiLabour. Segundo
ele, o modelo “in house” (internalização) é uma forma encontrada pelas empresas
para garantir mais controle sobre o uso dos dados produzidos e moderados pelos
seus usuários.
“Ao invés das crianças ou dos adolescentes estarem estudando,
ou desenvolvendo alguma outra habilidade que é propícia para a idade, eles já
estão entrando numa lógica de mercado de trabalho muito mais cedo do que
deveriam, e de forma extremamente precarizada e sem direitos”, pondera Renan
Kalil, procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT) e doutor em direito
pela USP.
Na avaliação de Kalil, as empresas que oferecem esses
serviços devem ser responsabilizadas já que, “se a plataforma em si não
existisse, aquele trabalho não ia acontecer”.
Em nota enviada à reportagem, o TikTok afirma usar
“tecnologia de machine learning” e contar com um time de moderadores “para
identificar contas que possivelmente pertençam a pessoas com menos de 13
anos”. Já o Kwai alega monitorar “hábitos e comportamentos para identificar
possíveis usuários que informaram a idade de forma incorreta”. Leia a íntegra
das respostas aqui e ao longo
desta reportagem.
<><> Plataformas pagam centavos para usuários
Para começar a trabalhar, basta abrir os aplicativos. Com
apenas um clique, os usuários já começam a monetizar, como relata Tomás, de 9
anos.
Ele assistia a vídeos no Kwai quando notou na timeline um
ícone arredondado com o desenho de um baú de pirata, recheado de moedas
douradas. “Eu apertei na ‘bolinha’ e vi que tinha como tirar dinheiro”,
conta.
Paula, uma adolescente de 17 anos da Terra Indígena
Tenondé Porã, na zona sul da capital paulista, também entrou no mundo das
microtarefas por não resistir ao baú do Kwai Bônus. “Eu cliquei e me viciei”,
admite.
Para cada tipo de tarefa, há uma “recompensa”. Em ambas
as plataformas, os pagamentos são feitos por meio de uma moeda virtual própria,
que pode ser trocada por dinheiro de verdade. Para conseguir R$ 1, é preciso
acumular 10 mil Kwai Golds ou 10 mil pontos no TikTok.
A visualização de um anúncio no Kwai de ao menos 30
segundos, por exemplo, paga cerca de 280 Kwai Golds (ou R$ 0,028). Já o “bônus
refeição”, em que o usuário precisa fazer um mero “check in” no horário do
almoço ou do jantar para se mostrar conectado ao aplicativo, rende R$
0,002.
No TikTok, a dinâmica é bastante similar. Dez minutos
assistindo a vídeos são recompensados com 2.600 pontos (R$ 0,26) e 18 pesquisas
realizadas no buscador da plataforma valem R$ 0,03.
Para participar de um “desafio super esportivo” proposto
pelo Kwai, Ware – o jovem do Território Indígena do Xingu – precisou ativar a
localização de seu celular para possibilitar a contagem de seus passos.
Carol, da zona leste de São Paulo, também participou da
gincana: “quanto mais você anda, mais você ganha [moedas virtuais]”. Já André,
de 11, é mais crítico, apesar da pouca idade: “todo mundo pegou essa modinha e
estava caminhando por aí. Se ganhasse dinheiro mesmo, eu ia andando lá para o
Tatuapé [outro bairro da zona leste paulistana]!”
A Repórter Brasil questionou o Kwai sobre a finalidade específica da
coleta dos dados produzidos no desafio dos passos. A nota enviada pela empresa,
no entanto, não respondeu a essa pergunta.
Na avaliação de especialistas, a atividade pode gerar uma
informação valiosa para as empresas: a geolocalização de seus usuários.
Segundo Rafael Zanatta, co-diretor da Data Privacy
Brasil, a “brincadeira” contraria a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados). Em
seu artigo 14, a legislação prevê regras mais duras para o tratamento de
informações de pessoas com menos de 18 anos. “Você não pode explorar esses
metadados agregados de crianças e adolescentes para fins comerciais”, explica.
Um cuidado maior com esse tipo de informação também está
previsto no PL
2628/2022,
aprovado no final de novembro (27) pelo Senado Federal. A proposta busca
assegurar a proteção integral de crianças e adolescentes no ambiente digital e
determina que as plataformas garantam “o modelo mais protetivo disponível em
relação à privacidade e à proteção e privacidade de dados pessoais”.
Para Zanatta, o problema começa com o próprio design das
plataformas. Ele cita ferramentas muito usadas pelos aplicativos – como os
chamados “loot boxes”, anúncios de recompensas aleatórias – para prender a
atenção do público. “A gamificação introduz um elemento de ludicidade, onde, na
verdade, não é uma atividade puramente lúdica”, afirma.
Levi, de 15 anos, concorda: “Você fica lá assistindo sem
parar. Aperta a bolinha, vai ter um bônus. Aí vai ter outro [bônus] para você
recolher [moedas]. Todo dia você tem que recolher. Se não, eles não vão pagar
mais”, afirma. “Ganhamos centavos. Eles [as plataformas] tiram bem mais”,
complementa.
As diferentes tarefas oferecidas pelas plataformas servem
para “treinar” os sistemas de inteligência artificial.
A visualização de vídeos e a realização de check ins, por
exemplo, alimentam a IA por meio da geração e qualificação de dados (como o
tempo de visualização e a quantidade de logins), informações importantes para
algoritmos de aprendizagem.
Já o trabalho de digitar pesquisas e moderar conteúdos
publicitários serve para a classificação, rotulagem e verificação desses dados.
“Isso envolve outras etapas do treinamento de dados, que operam processos de
aperfeiçoamento contínuo para garantir que os parâmetros de aprendizado sejam
sempre aprimorados”, explica Matheus Viana, da UFMG.
<><> O que dizem as plataformas
Em posicionamento enviado por e-mail à reportagem,
o Kwai informa que a idade mínima para ingresso na plataforma é 13 anos e que
“a segurança dos usuários” é “a principal premissa da sua atuação”.
A empresa afirma ainda proibir conteúdos que “retratem ou
promovam abuso, exploração, perigo ou qualquer forma de dano a menores” e que
tem “políticas de publicidade bastante rígidas para a proteção e a navegação
segura de menores”.
Também em nota, o TikTok alega fazer uma “moderação
proativa” para “localizar e remover qualquer conteúdo ou interação que possa
ser relacionada a comportamentos nocivos à (sic) menores”.
O texto diz ainda que, para participar do programa de
bônus e ser remunerado por microtarefas, é preciso ter mais de 18 anos e
aceitar os termos de uso da plataforma. Caso o usuário infrinja as regras, ele
pode ser banido. “Esse gerenciamento é feito pela nossa equipe de moderação,
com auxílio de inteligência artificial”, informa o posicionamento. Leia aqui as respostas na
íntegra.
<><> TikTok já foi condenado na Justiça e
Kwai é investigada pelo MPF
Kwai é o apelido para “Kuaishou”, “mão leve” ou “mão
rápida” em mandarim. No Brasil desde 2019, o aplicativo acumula
60 milhões de usuários. O TikTok, seu principal concorrente, contabiliza mais
de 82
milhões de perfis no
país.
As empresas têm expandido sua atuação no mercado
nacional, com lançamento
de plataformas de e-commerce, programas
de capacitação de
empreendedores e até patrocínio no Big
Brother Brasil.
Mas não estão livres de polêmicas. No início de novembro,
a ByteDance Brasil, dona do TikTok, foi
condenado em primeira instância pela Justiça do Trabalho em São Paulo por não
tomar providências contra a exploração do trabalho infantil artístico.
Reportagens já mostraram que o Kwai liberou
conteúdos explíticos de abuso sexual de crianças e espalhou
fake news.
A Joyo Tecnologia Brasil, que gere o Kwai no país, é investigada
pelo Ministério Público Federal por impulsionar conteúdos e perfis
falsos.
##
*Os nomes dos entrevistados foram alterados para
preservar suas identidades
Esta reportagem foi realizada com apoio do Instituto Alana
Fonte: Repórter
Brasil
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