Direito à água: Como antropologia pode contribuir
Nos últimos anos muito se tem discutido sobre a
transdisciplinaridade – e interdisciplinaridade – para o estudo de
problemáticas complexas que envolvem não apenas o nível local dos territórios e
populações, mas que estão em correlação às macroestruturas e demandas globais.
Diante de um panorama de crises socioambientais, sanitárias, econômicas e
políticas, o acesso a recursos tidos como básicos torna-se temática não apenas
de propostas tecnológicas, mas que carregam grande responsabilidade social.
Uma dessas abordagens globais que perpassam as situações de
crise – ou mais bem especificada como uma escassez crônica – diz respeito ao
acesso à água e saneamento. Estabelecido como um direito humano, desde a
declaração da ONU, em 2010, o acesso à água e saneamento é um princípio
fundamental para a qualidade de vida e bem-estar social, e que, diante da
indisponibilidade, traz profundas questões de precariedade na saúde e
sofrimento psicoemocional nas populações. Na política nacional, a Lei 14026 de
2020 atualiza diretrizes que incluem a universalização do acesso ao saneamento,
considerando os recursos naturais e medidas relativas às particularidades
locais e regionais. Então, como criar um espaço de produção de conhecimento,
pesquisa científica e solução tecnológica, que atenda efetivamente essas
premissas e contribua para a construção de políticas públicas eficazes próximas
às populações?
- A
agenda WASH e a antropologia
Uma compreensão da água, saneamento e higiene requer entender os
fenômenos multidimensionais, multiescalares e culturalmente incorporados no
acesso a esses serviços (Workman et.al, 2021). A agenda de WASH, “Water,
SanitationandHygiene”, com grande proeminência das áreas ambientais, de
engenharia e saúde, tem avançado nos estudos das relações sociotécnicas e
ambientais. Entretanto, pouco ainda tem sido produzido através de perspectivas
mais qualitativas. A colaboração entre diferentes disciplinas para soluções e
perspectivas futuras permite abarcar a diversidade de contextos e o
entendimento das expectativas acerca das políticas de saneamento.
A política é um conceito carregado de múltiplos significados e
em extensas relações de poder e recursos. A compreensão na antropologia de que
a política é também construto social e cultural – em uma relação dialógica –
fez com que a disciplina se debruçasse cada vez mais sobre os processos de
formulação e consolidação de políticas públicas em diferentes contextos e,
principalmente, em como essas aplicações normativas caracterizam ou influenciam
diferentes sociedades, dado que grande parte das questões que dizem respeito
diretamente às políticas estão no cerne das análises antropológicas (Wedel,
Shore e Feldman, 2005).
As políticas públicas são fundamentadas em uma relação complexa
de atores, atividades e influências, ora confluentes, ora díspares, que
desempenham um papel relevante na formação da sociedade e de seus indivíduos.
Da mesma forma, a antropologia, através de etnografias – seu método de pesquisa
por excelência – nas mais diversas temáticas, analisa como as políticas são
parte do processo regulatório do Estado, mas também, constitui e é constituída
no cotidiano. A interrelação entre macro e microescalas1 é uma das
grandes contribuições das pesquisas etnográficas, ao apresentar como discursos
e fenômenos globais adentram os territórios locais, ganhando novos contornos ao
serem incorporados, ou repudiados, no cotidiano das populações, e como os
significados, categorias e discursos locais corroboram para determinações em
níveis macro, tendo como exemplo as mobilizações dos movimentos políticos e
sociais, sejam em questões ambientais, raciais, étnicas, dentre tantas outras.
As abordagens antropológicas da política e do Estado também tensionam esses
domínios como algo organizado e linear, seus aparentes atributos da razão e da
neutralidade – tal como a própria ciência. E ainda, como as políticas e
direitos são basilares na construção de sujeitos e identidades.
Neste sentido, as análises sociais de um modo mais amplo e,
especificamente, a antropologia, podem oferecer significativas contribuições
para uma compreensão extensiva sobre a água, saneamento e higiene. As
experiências locais de escassez e crise, como a insegurança hídrica e
sanitária, estão conectadas a sistemas sociopolíticos e econômicos muito mais
amplos. A falta de recursos e a indisponibilidade de acesso a serviços básicos
são resultados de um modelo econômico capitalista que aprofunda desigualdades
ambientais e sociais. É possível notar, frequentemente, como essas
insuficiências nos serviços de saneamento estão ligadas a processos históricos
e estruturais de exclusão, tais como a pobreza, o racismo e a marginalização.
Porém, são também essas adversidades de acesso que agravam as desigualdades,
redesenham experiências de exclusão e mantém resultados negativos nos âmbitos
econômicos, ambientais e de saúde (Workman et.al., 2021). Exemplar disso, é
como a higiene tem sido utilizada ao longo da história e até os dias atuais,
com um viés de responsabilização individual, para controlar e excluir
populações, sejam aquelas infectadas com determinadas doenças ou mesmo
populações marginalizadas, como a população em situação de rua. Portanto, as
políticas de saúde e saneamento podem tanto atenuar situações de desigualdade,
como contribuir para normativas e políticas construídas apenas com ideias
hegemônicas e etnocêntricas de saúde, doença, higiene, limpeza, perigo,
vergonha, dignidade, privacidade e segurança.
Garantir a segurança de WASH requer abordagens abrangentes sobre
aspectos tecnológicos e ambientais, mas também um enfoque aguçado para
identificar como o saneamento é integrado às comunidades e territórios: como as
pessoas se relacionam com as infraestruturas, quais são os hábitos e
comportamentos locais, como é composto o acesso à água, os diferentes
significados e entendimentos sobre os recursos e ambiente e como os processos
de saúde-doença-higiene se apresentam em contextos culturais diversos. Por
vezes, perspectivas neoliberais têm colocado os contextos culturais como
entraves e barreiras ao desenvolvimento e à implementação de determinados
sistemas e infraestruturas. Entretanto, uma aproximação mais transdisciplinar,
participativa e centrada nos aspectos socioculturais pode favorecer o
desenvolvimento de políticas destinadas a essas agendas, assim como a
elaboração de soluções tecnológicas coletivas.
Se a antropologia tende a destacar como esses processos
históricos e as relações de poder influenciam nos acessos à saúde e saneamento,
ela também permite reconhecer os modos de resistência, as construções
alternativas e as estratégias coletivas dessas populações. A agência dessas
comunidades com seus movimentos, saberes e práticas, tem um papel fundamental
em qualquer iniciativa de saúde e saneamento. É por meio dos conhecimentos e
saberes tradicionais que também se conhece um território, suas especificidades,
seus sujeitos, suas necessidades, a vida vivida. A antropologia, por meio de
entrevistas, trabalhos de campo e etnografias aprofundadas, torna visível essas
agências, promovendo o respeito e a integração de conhecimentos e soluções
criadas pelas próprias comunidades.
A partir do modo como os antropólogos fazem suas pesquisas,
tratando da memória, da experiência e do cotidiano como dados de análise, é
possível teorizar, apontar e refletir sobre os impactos das iniciativas de
WASH, entender as dimensões culturais de saneamento e saúde em termos de
significados e materialidade. Perceber como os significados são atribuídos, os
múltiplos usos, os sentidos historicamente localizados; algo que vai além da
utilidade biológica e econômica, mas que salienta as relações de convivência
entre as populações e seus territórios. É importante ressaltar também como, nas
últimas décadas, abordagens feministas, ambientais, indígenas e decoloniais tem
ganhado espaço e aprofundado os debates sobre interseccionalidade como
fundamento para as análises socioculturais dos territórios, comunidades e
populações. Portanto, abordar raça, classe, gênero, etnia, deficiência e
religião não deveria ser algo distante das garantias e iniciativas de WASH.
Diante disso, a pesquisa etnográfica é particularmente valiosa
para o entendimento dos modelos culturais e de que modo a segurança e o acesso
à água, saneamento e higiene, estabelecidos pelas políticas nacionais, serão
efetivos dentro dos territórios. Uma interação entre pesquisadores de
diferentes áreas, governos e, principalmente, a comunidade, é primordial para
adequações e soluções no que tange à disponibilidade hídrica e sanitária.
Partir desses diferentes saberes e conhecimentos em entrelaçamentos é criar
possibilidades de futuros em que as políticas e práticas sejam eficazes,
inclusivas, respeitosas, promovendo a saúde, dignidade e justiça social.
Fonte: Por Bianca Retes Carvalho, em Outras Palavras
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