Fernando
Cássio: Escolas, mesmo privadas, não são lugar da Brasil Paralelo
A
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a LDB, é o instrumento legal
que define o funcionamento de todos os sistemas de ensino no Brasil. Seu artigo
7º afirma que o “ensino é livre à iniciativa privada”, desde que cumpra as
normas gerais da educação nacional e do respectivo sistema de ensino (inciso I)
e que possua autorização de funcionamento e tenha a sua qualidade avaliada pelo
poder público (inciso II).
Isso
quer dizer que as escolas, mesmo as privadas, integram os sistemas de ensino
administrados pelo estado, conforme os artigos 17 e 18 da LDB. Por conta disso,
é função dos conselhos estaduais de educação fiscalizar os estabelecimentos
privados de ensino fundamental e médio, avaliando a qualidade do ensino
ofertado e decidindo se terão autorização de funcionamento ante a sua
capacidade demonstrada de cumprir as normas gerais da educação nacional.
As
escolas privadas, apesar disso, são objeto de pouca fiscalização. Isso decorre
tanto do aparelhamento dos conselhos estaduais pelo setor privado quanto de um
certo senso comum que desconsidera que a educação privada guarda aspectos
daquilo que costumamos chamar de “bem público”.
Seja
pública ou privada, uma escola é, ao mesmo tempo, espaço de qualificação,
socialização e subjetivação humanas, e trabalha obrigatoriamente com o que a
humanidade já produziu nos campos da ciência, da arte e da cultura.
A
liberdade de escolha dos métodos e conteúdos de ensino, uma prerrogativa
profissional dos professores, no entanto, não se confunde com liberdade
irrestrita para propagar falsificações históricas e negacionismos científicos –
os tais conteúdos “paralelos” das bolhas ideológicas de extrema direita.
Além
de ensinar o preconizado nos currículos oficiais baseados na ciência validada
por especialistas, os estabelecimentos de ensino devem incluir “conteúdos
relativos aos direitos humanos e à prevenção de todas as formas de violência
contra a criança, o adolescente e a mulher” (art. 26, § 9º). Portanto,
conteúdos “alternativos” que negam os direitos humanos não têm lugar nas
escolas.
Já
o ensino da História do Brasil, deve levar em conta “as contribuições das
diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente
das matrizes indígena, africana e europeia” (art. 26, § 4º).
Isso
significa que o apagamento da história e da cultura afro-brasileira e indígena
com vistas a reabilitar uma narrativa colonial unívoca sobre os descobrimentos
também atenta contra as normas gerais da educação básica no Brasil.
Os
conteúdos curriculares da educação básica, por fim, devem difundir “valores
fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de
respeito ao bem comum e à ordem democrática” (art. 27), o que nos leva a
concluir que as “Escolas Paralelas” mostradas na reportagem do Intercept Brasil
estão trabalhando à margem da LDB.
Os
dados levantados falam em 285 escolas contempladas por um “mecenato” de difusão
de conteúdos da empresa Brasil Paralelo, notória produtora de desinformação.
Uma coisa é o consumo desse tipo de deturpação em casa; outra é isso ser feito
em estabelecimentos de educação formais, cuja função deveria ser precisamente
combater o relativismo que trata ciência e mistificação como meras
“narrativas”.
Em
meio a tantas investidas reacionárias contra a escola pública, que concentra
80% das matrículas no Brasil – leis da mordaça, ataques à ciência,
militarização escolar, violações da laicidade –, as escolas privadas costumam
passar despercebidas do debate público. Elas são tratadas como ilhas onde
filhos e filhas das classes médias pagam um ingresso mensal para conviver com
seus iguais, mas ilhas não fiscalizadas no trabalho pedagógico que realizam, o
que naturaliza a ideia – falsa – de que a escola privada poderia ensinar só
aquilo que interessa às famílias pagantes.
É
essa mesma ideia falsa sobre o direito à educação, que independe da vontade das
famílias, que move os movimentos por homeschooling, as tentativas do agro de
fiscalizar o conteúdo dos livros didáticos, as agressões contra docentes que
tratam de questões de gênero e sexualidade etc.
Em
suma, tentativas de impor valores privados sobre o espaço de circulação de
conhecimentos, mesmo em uma escola privada, que constituem nosso patrimônio
coletivo.
Se
uma escola privada envereda pelo charlatanismo pedagógico e o estado nada faz,
ele torna-se corresponsável pela destruição da escola como espaço de fruição da
educação como bem público. Que os conselhos estaduais de educação comecem a
trabalhar para garantir o direito à educação também a estudantes pagantes de
mensalidades escolares no país.
• Nossas crianças estão em
perigo. Por Tatiana Dias
De
forma muito educada, uma leitora nos contestou nesta semana. Ela questionou o
formato que escolhemos para comunicar a nossa reportagem sobre como a Brasil
Paralelo, uma das principais disseminadoras de ideologias de extrema direita,
está invadindo escolas.
Mais
especificamente, ela mencionava o teaser, um vídeo curto divulgado apenas nas
redes sociais um dia antes da reportagem ser publicada, que perguntava: “você
sabe o que seu filho está vendo na escola?”.
A
leitora questionou se a gente não estaria usando uma linguagem excessivamente
sensacionalista e apelativa, repetindo a fórmula de “pânico moral” da extrema
direita. Fiquei reflexiva. Bem, o vídeo foi pensado para isso: apontar
exatamente o tipo de linguagem que a extrema direita usa para capturar a
atenção (e o medo) de sua base nas redes sociais.
Mas
esse não é um pânico inventado: é um sequestro ideológico bem documentado do
direito constitucional de nossos filhos a uma educação de qualidade por um
grupo bem financiado de extremistas de direita.
Ou
seja, ao contrário deles, não estamos exagerando. Mas o formato é, de fato, uma
questão profunda sobre a qual temos refletido muito ultimamente. Deixa eu
voltar uns passos para explicar.
Há
muito tempo, o Intercept cobre as big techs e critica a lógica em que as
plataformas funcionam: máquinas de chupar dados e devolver conteúdo que
desperta sentimentos primitivos para, assim, garantir engajamento aos
anunciantes. É a economia da atenção, o capitalismo de vigilância, captura e
neocolonialismo das plataformas.
Eu
mesma escrevi matérias no Intercept denunciando essas práticas em 2018, 2019 e
2020. Quando os jornalistas da grande mídia ainda aplaudiam as plataformas, nós
já estávamos criticando. Esse pequeno disclaimer é importante para situar o
nosso ponto de partida e como enxergamos essa questão.
Voltando
à Brasil Paralelo. Nesta semana, eu e Paulo Motoryn mostramos como a produtora
está invadindo escolas e ONGs com ‘bolsas’ financiadas por ‘mecenas’.
Já
são 285 escolas parceiras, e o projeto de conquistar corações e mentes é
ambicioso e de longo prazo. Afinal, o objetivo é combater o “progressismo”,
ideologia que, na visão deles, se apossou da educação brasileira e precisa ser
extirpada da sociedade.
É
puro suco de olavismo, sim, e você pode entender melhor na reportagem e no
podcast da Rádio Escafandro, que participei.
Recomendo
também esse excelente texto do Fernando Cássio, professor da Faculdade de
Educação da USP, que pontua todos os problemas dessa invasão: “a liberdade de
escolha dos métodos e conteúdos de ensino, uma prerrogativa profissional dos
professores, no entanto, não se confunde com liberdade irrestrita para propagar
falsificações históricas e negacionismos científicos – os tais conteúdos
‘paralelos’ das bolhas ideológicas de extrema direita”.
Nosso
objetivo, com essa reportagem, foi atingir um público amplo. Muita gente não
tinha ideia que a produtora tinha esse programa e essa capilaridade. Não é só
um “Netflix de direita", mas um projeto de poder muito bem estruturado e
financiado.
Suas
narrativas são pensadas para, sob um verniz científico ou isento, propagar uma
visão de mundo conservadora, que contesta os direitos das mulheres, dos
indígenas e a proteção ambiental.
A
produtora também tem uma relação umbilical com as big techs. A Brasil Paralelo
não seria o que é sem os milhões de reais que ganhou com o tratamento
preferencial que recebeu dos algoritmos das plataformas. A produtora usa
estratégias sofisticadas de SEO – técnicas para ficar no topo das buscas – e
gasta uma grana comprando palavras-chave na busca do Google.
Se
um desavisado procurar por “o que é feminismo”, pode cair num verbete criado
por eles. E mesmo que você opte por assistir ao vídeo de outras pessoas sobre o
assunto, é muito provável que a Brasil Paralelo seja sugerida pelo algoritmo
para ver automaticamente depois.
A
produtora também é a maior anunciante política da Meta: foram R$ 25 milhões
despejados só em anúncios na plataforma dona de Facebook, Instagram e WhatsApp
nos últimos quatro anos. Só em anúncios. É mais dinheiro do que o orçamento
inteiro do Intercept neste período.
Então,
não é exagero dizer: a Brasil Paralelo adora as big techs, e a recíproca é
verdadeira. A cliente é tão importante que a Meta permite, por exemplo, que a
produtora faça anúncios sobre “aborto”, disseminando pânico moral e atacando os
direitos das mulheres, mesmo que “assuntos sociais” sejam tecnicamente
restritos para anúncios e precisem passar por aprovação humana.
É
uma verdadeira máquina de propaganda da extrema direita, que trafega muito bem
porque está dando às plataformas exatamente o que elas querem: além do
dinheiro, conteúdo altamente engajante.
Nós
já mostramos que as redes sociais lucram quando você sente raiva – é pela mesma
razão que teorias da conspiração e notícias falsas performam melhor: elas têm
os gatilhos que as redes sociais premiam com engajamento.
Só
nesta semana, três fatos mostram como o tema é crítico. Se discute, por
exemplo, se sistemas de recomendação de conteúdo nas plataformas são de “alto
risco” na regulação de inteligência artificial. O STF também está decidindo se
as plataformas de internet devem ser responsabilizadas pelo conteúdo dos
usuários. E a Austrália chegou a proibir redes sociais para menores de 16 anos
– iniciativa que eu aplaudo, embora ainda careça de mais detalhamento.
Tudo
isso aconteceu porque as plataformas continuam a se expandir, e nossa
comunicação é mediada por essas regras invisíveis que escolhem o que deve ou
não aparecer para você.
Até
mesmo esta newsletter, que antes era relativamente livre de mediação
algorítmica, começou recentemente a sofrer oscilações drásticas nas taxas de
abertura com base na avaliação do algoritmo secreto do Gmail.
Por
isso, para chegarmos nas pessoas e efetivamente provocarmos mudanças, é preciso
furar essas ondas de desgosto que são as redes sociais. E competir a atenção
com quem, há muito tempo, usa as estratégias mais perversas e muito dinheiro
para dominar o debate público com discurso de ódio.
O
ecossistema de redes sociais é turvo, mas por ora é o caminho que a gente tem
para chegar nas pessoas.
Ele
demanda que a gente, de certa forma, hackeie um sistema que foi desenvolvido
para eles, e não para nós. Adaptamos as nossas investigações e histórias mais
importantes para a linguagem das redes, sem perder o nosso compromisso com o
jornalismo e a qualidade do que produzimos. Porque, sim, existe uma ameaça da
extrema direita sobre as crianças nas escolas – e o Brasil inteiro precisa
saber disso.
Temos
a obrigação de que nossa reportagem seja desdobrada para chegar no maior número
de pessoas possível – o que fica muito mais difícil quando você tem um
compromisso com os fatos e um respeito pelo seu leitor.
Qual
é o equilíbrio certo entre buscar atenção e estar sóbrio? E pelo simples fato
de jogarmos o jogo deles, já perdemos? Acho que a resposta é não – mas a linha,
às vezes, é tênue.
Nós
estamos constantemente experimentando e diversificando a linguagem, mas sem
perder a nossa missão mais central. Por isso, estou grata à leitora que nos
questionou.
A
gente ouviu e refletiu como fazemos todo dia – porque é dessa comunidade que
vem a nossa força. Afinal, as ondas das redes sociais passam, mas a necessidade
de um jornalismo de qualidade só aumenta – especialmente aquele que fiscaliza e
expõe quem quem lucra e se aproveita desse ecossistema que premia o ódio e a
intolerância.
Fonte: The Intercept
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