segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Fernando Cássio: Escolas, mesmo privadas, não são lugar da Brasil Paralelo

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a LDB, é o instrumento legal que define o funcionamento de todos os sistemas de ensino no Brasil. Seu artigo 7º afirma que o “ensino é livre à iniciativa privada”, desde que cumpra as normas gerais da educação nacional e do respectivo sistema de ensino (inciso I) e que possua autorização de funcionamento e tenha a sua qualidade avaliada pelo poder público (inciso II).

Isso quer dizer que as escolas, mesmo as privadas, integram os sistemas de ensino administrados pelo estado, conforme os artigos 17 e 18 da LDB. Por conta disso, é função dos conselhos estaduais de educação fiscalizar os estabelecimentos privados de ensino fundamental e médio, avaliando a qualidade do ensino ofertado e decidindo se terão autorização de funcionamento ante a sua capacidade demonstrada de cumprir as normas gerais da educação nacional.

As escolas privadas, apesar disso, são objeto de pouca fiscalização. Isso decorre tanto do aparelhamento dos conselhos estaduais pelo setor privado quanto de um certo senso comum que desconsidera que a educação privada guarda aspectos daquilo que costumamos chamar de “bem público”.

Seja pública ou privada, uma escola é, ao mesmo tempo, espaço de qualificação, socialização e subjetivação humanas, e trabalha obrigatoriamente com o que a humanidade já produziu nos campos da ciência, da arte e da cultura.

A liberdade de escolha dos métodos e conteúdos de ensino, uma prerrogativa profissional dos professores, no entanto, não se confunde com liberdade irrestrita para propagar falsificações históricas e negacionismos científicos – os tais conteúdos “paralelos” das bolhas ideológicas de extrema direita.

Além de ensinar o preconizado nos currículos oficiais baseados na ciência validada por especialistas, os estabelecimentos de ensino devem incluir “conteúdos relativos aos direitos humanos e à prevenção de todas as formas de violência contra a criança, o adolescente e a mulher” (art. 26, § 9º). Portanto, conteúdos “alternativos” que negam os direitos humanos não têm lugar nas escolas.

Já o ensino da História do Brasil, deve levar em conta “as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e europeia” (art. 26, § 4º).

Isso significa que o apagamento da história e da cultura afro-brasileira e indígena com vistas a reabilitar uma narrativa colonial unívoca sobre os descobrimentos também atenta contra as normas gerais da educação básica no Brasil.

Os conteúdos curriculares da educação básica, por fim, devem difundir “valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática” (art. 27), o que nos leva a concluir que as “Escolas Paralelas” mostradas na reportagem do Intercept Brasil estão trabalhando à margem da LDB.

Os dados levantados falam em 285 escolas contempladas por um “mecenato” de difusão de conteúdos da empresa Brasil Paralelo, notória produtora de desinformação. Uma coisa é o consumo desse tipo de deturpação em casa; outra é isso ser feito em estabelecimentos de educação formais, cuja função deveria ser precisamente combater o relativismo que trata ciência e mistificação como meras “narrativas”.

Em meio a tantas investidas reacionárias contra a escola pública, que concentra 80% das matrículas no Brasil – leis da mordaça, ataques à ciência, militarização escolar, violações da laicidade –, as escolas privadas costumam passar despercebidas do debate público. Elas são tratadas como ilhas onde filhos e filhas das classes médias pagam um ingresso mensal para conviver com seus iguais, mas ilhas não fiscalizadas no trabalho pedagógico que realizam, o que naturaliza a ideia – falsa – de que a escola privada poderia ensinar só aquilo que interessa às famílias pagantes.

É essa mesma ideia falsa sobre o direito à educação, que independe da vontade das famílias, que move os movimentos por homeschooling, as tentativas do agro de fiscalizar o conteúdo dos livros didáticos, as agressões contra docentes que tratam de questões de gênero e sexualidade etc.

Em suma, tentativas de impor valores privados sobre o espaço de circulação de conhecimentos, mesmo em uma escola privada, que constituem nosso patrimônio coletivo.

Se uma escola privada envereda pelo charlatanismo pedagógico e o estado nada faz, ele torna-se corresponsável pela destruição da escola como espaço de fruição da educação como bem público. Que os conselhos estaduais de educação comecem a trabalhar para garantir o direito à educação também a estudantes pagantes de mensalidades escolares no país.

 

•                        Nossas crianças estão em perigo. Por Tatiana Dias

De forma muito educada, uma leitora nos contestou nesta semana. Ela questionou o formato que escolhemos para comunicar a nossa reportagem sobre como a Brasil Paralelo, uma das principais disseminadoras de ideologias de extrema direita, está invadindo escolas.

Mais especificamente, ela mencionava o teaser, um vídeo curto divulgado apenas nas redes sociais um dia antes da reportagem ser publicada, que perguntava: “você sabe o que seu filho está vendo na escola?”.

A leitora questionou se a gente não estaria usando uma linguagem excessivamente sensacionalista e apelativa, repetindo a fórmula de “pânico moral” da extrema direita. Fiquei reflexiva. Bem, o vídeo foi pensado para isso: apontar exatamente o tipo de linguagem que a extrema direita usa para capturar a atenção (e o medo) de sua base nas redes sociais.

Mas esse não é um pânico inventado: é um sequestro ideológico bem documentado do direito constitucional de nossos filhos a uma educação de qualidade por um grupo bem financiado de extremistas de direita.

Ou seja, ao contrário deles, não estamos exagerando. Mas o formato é, de fato, uma questão profunda sobre a qual temos refletido muito ultimamente. Deixa eu voltar uns passos para explicar.

Há muito tempo, o Intercept cobre as big techs e critica a lógica em que as plataformas funcionam: máquinas de chupar dados e devolver conteúdo que desperta sentimentos primitivos para, assim, garantir engajamento aos anunciantes. É a economia da atenção, o capitalismo de vigilância, captura e neocolonialismo das plataformas.

Eu mesma escrevi matérias no Intercept denunciando essas práticas em 2018, 2019 e 2020. Quando os jornalistas da grande mídia ainda aplaudiam as plataformas, nós já estávamos criticando. Esse pequeno disclaimer é importante para situar o nosso ponto de partida e como enxergamos essa questão.

Voltando à Brasil Paralelo. Nesta semana, eu e Paulo Motoryn mostramos como a produtora está invadindo escolas e ONGs com ‘bolsas’ financiadas por ‘mecenas’.

Já são 285 escolas parceiras, e o projeto de conquistar corações e mentes é ambicioso e de longo prazo. Afinal, o objetivo é combater o “progressismo”, ideologia que, na visão deles, se apossou da educação brasileira e precisa ser extirpada da sociedade.

É puro suco de olavismo, sim, e você pode entender melhor na reportagem e no podcast da Rádio Escafandro, que participei.

Recomendo também esse excelente texto do Fernando Cássio, professor da Faculdade de Educação da USP, que pontua todos os problemas dessa invasão: “a liberdade de escolha dos métodos e conteúdos de ensino, uma prerrogativa profissional dos professores, no entanto, não se confunde com liberdade irrestrita para propagar falsificações históricas e negacionismos científicos – os tais conteúdos ‘paralelos’ das bolhas ideológicas de extrema direita”.

Nosso objetivo, com essa reportagem, foi atingir um público amplo. Muita gente não tinha ideia que a produtora tinha esse programa e essa capilaridade. Não é só um “Netflix de direita", mas um projeto de poder muito bem estruturado e financiado.

Suas narrativas são pensadas para, sob um verniz científico ou isento, propagar uma visão de mundo conservadora, que contesta os direitos das mulheres, dos indígenas e a proteção ambiental.

A produtora também tem uma relação umbilical com as big techs. A Brasil Paralelo não seria o que é sem os milhões de reais que ganhou com o tratamento preferencial que recebeu dos algoritmos das plataformas. A produtora usa estratégias sofisticadas de SEO – técnicas para ficar no topo das buscas – e gasta uma grana comprando palavras-chave na busca do Google.

Se um desavisado procurar por “o que é feminismo”, pode cair num verbete criado por eles. E mesmo que você opte por assistir ao vídeo de outras pessoas sobre o assunto, é muito provável que a Brasil Paralelo seja sugerida pelo algoritmo para ver automaticamente depois.

A produtora também é a maior anunciante política da Meta: foram R$ 25 milhões despejados só em anúncios na plataforma dona de Facebook, Instagram e WhatsApp nos últimos quatro anos. Só em anúncios. É mais dinheiro do que o orçamento inteiro do Intercept neste período.

Então, não é exagero dizer: a Brasil Paralelo adora as big techs, e a recíproca é verdadeira. A cliente é tão importante que a Meta permite, por exemplo, que a produtora faça anúncios sobre “aborto”, disseminando pânico moral e atacando os direitos das mulheres, mesmo que “assuntos sociais” sejam tecnicamente restritos para anúncios e precisem passar por aprovação humana.

É uma verdadeira máquina de propaganda da extrema direita, que trafega muito bem porque está dando às plataformas exatamente o que elas querem: além do dinheiro, conteúdo altamente engajante.

Nós já mostramos que as redes sociais lucram quando você sente raiva – é pela mesma razão que teorias da conspiração e notícias falsas performam melhor: elas têm os gatilhos que as redes sociais premiam com engajamento.

Só nesta semana, três fatos mostram como o tema é crítico. Se discute, por exemplo, se sistemas de recomendação de conteúdo nas plataformas são de “alto risco” na regulação de inteligência artificial. O STF também está decidindo se as plataformas de internet devem ser responsabilizadas pelo conteúdo dos usuários. E a Austrália chegou a proibir redes sociais para menores de 16 anos – iniciativa que eu aplaudo, embora ainda careça de mais detalhamento.

Tudo isso aconteceu porque as plataformas continuam a se expandir, e nossa comunicação é mediada por essas regras invisíveis que escolhem o que deve ou não aparecer para você.

Até mesmo esta newsletter, que antes era relativamente livre de mediação algorítmica, começou recentemente a sofrer oscilações drásticas nas taxas de abertura com base na avaliação do algoritmo secreto do Gmail.

Por isso, para chegarmos nas pessoas e efetivamente provocarmos mudanças, é preciso furar essas ondas de desgosto que são as redes sociais. E competir a atenção com quem, há muito tempo, usa as estratégias mais perversas e muito dinheiro para dominar o debate público com discurso de ódio.

O ecossistema de redes sociais é turvo, mas por ora é o caminho que a gente tem para chegar nas pessoas.

Ele demanda que a gente, de certa forma, hackeie um sistema que foi desenvolvido para eles, e não para nós. Adaptamos as nossas investigações e histórias mais importantes para a linguagem das redes, sem perder o nosso compromisso com o jornalismo e a qualidade do que produzimos. Porque, sim, existe uma ameaça da extrema direita sobre as crianças nas escolas – e o Brasil inteiro precisa saber disso.

Temos a obrigação de que nossa reportagem seja desdobrada para chegar no maior número de pessoas possível – o que fica muito mais difícil quando você tem um compromisso com os fatos e um respeito pelo seu leitor.

Qual é o equilíbrio certo entre buscar atenção e estar sóbrio? E pelo simples fato de jogarmos o jogo deles, já perdemos? Acho que a resposta é não – mas a linha, às vezes, é tênue.

Nós estamos constantemente experimentando e diversificando a linguagem, mas sem perder a nossa missão mais central. Por isso, estou grata à leitora que nos questionou.

A gente ouviu e refletiu como fazemos todo dia – porque é dessa comunidade que vem a nossa força. Afinal, as ondas das redes sociais passam, mas a necessidade de um jornalismo de qualidade só aumenta – especialmente aquele que fiscaliza e expõe quem quem lucra e se aproveita desse ecossistema que premia o ódio e a intolerância.

 

Fonte:  The Intercept

 

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