A França
se lança ao desconhecido
Era
previsível: um país – a França – ingovernável. Foi premonitório: o término das Olimpíadas
de Paris com Tom Cruise e Missão Impossível. O primeiro-ministro
francês, Michel Barnier, vem de ser demitido pelo Parlamento após 91 dias na
função. Os parlamentares reuniram 331 votos – bem mais que os 289 necessários –
para censurá-lo e ejetá-lo do cargo. Jean-Luc Mélenchon foi o mentor e o tenor
da manobra. Marine Le Pen, sua coadjuvante em convicção e apoio. As duas
maiores forças político-partidárias da França, malgrado as suas diferenças,
uniram-se em alma, em princípio, contra a proposta de orçamento apresentada
pelo primeiro-ministro. Mas, em verdade, o seu objetivo indisfarçável sempre
foi fragilizar o presidente Emmanuel Macron. Que, doravante, precisa reconhecer
a derrota, acatar a decisão do legislativo, acolher a demissão de Michel
Barnier e de seu brevíssimo governo de três meses, nomear um outro
primeiro-ministro e vistoriar a escolha de novos ministros, novas táticas e
novas estratégias para superação da variedade de sinistros franceses
momentâneos, conjunturais e estruturais extraordinariamente profundos. Sendo o
colapso econômico muito grave. O constrangimento partidário gravíssimo. A
entropia política sem precedentes. E a crise de regime, matizado pela Quinta
República, perto de terminal.
Sem
meias palavras, a classe política francesa e suas elites econômicas e culturais
conseguiram, finalmente, lançar o país ao desconhecido, tornando a
integralidade do regime disfuncional. Por claro, que em decorrência de
operações sorrateiras. Que não vêm de hoje nem de ontem. Mas de tempos. Anos e
mais anos com a embarcação fazendo água. E, agora, enfim, com furos aumentados,
casco estourado e leme inteiramente avariado. Sendo improvável a solução por
reparos. Restando apenas reconhecer-se a abertura de uma nova temporada de
caos. Forjada pelo general Charles de Gaulle, a partir de 1958, a Quinta
República, enquanto regime político francês, foi, sim, uma resposta à
instabilidade política e moral da Quarta República. Mas, também e
fundamentalmente, um esforço de superação da “república de partidos”. Um cancro
insistente permanente na vida política da França. Como cotidianamente notada, a
tensão no interior da classe política francesa jamais abdicou a sua condição
efervescente. Desde a Revolução, passando pela Restauração, avançando pelo
golpe – farsa ou não – de Napoleão III, chegando ao colapso de 1870-1871,
amargando o após 1918 e 1929, vivenciando o cataclismo de 1940, entorpecendo-se
com a resistência ao nazismo até 1944, juntando os cacos da humilhação de Vichy depois
e tentando superar o tropismo da France Éternelle versus a
vulgaridade da gestão do imediato. Um imediato que envolvia (i) a reconciliação
nacional, (ii) a reconstrução do país e (iii) a definição do destino das
colônias africanas.
O
general De Gaulle fora retirado dessas incumbências desde 1946. Ele parecia
controverso demais. Conduzira a resistência francesa desde 1940. Era herói
inequívoco das guerras totais de 1914 a 1945. Mas – talvez também por isso –
granjeou suspeição de todas as partes. Notadamente do primeiro-ministro Winston
Churchill, que sempre lhe aplicou votos de desconfiança, e particularmente do
presidente Roosevelt e todo o establishment norte-americano,
que nutriam por ele um complexo sentimento de admiração e repulsa.
Especialmente porque o general De Gaulle, no fundo, era a quintessência do
marquês de La Fayette – “herói de dois mundos”, combatente da Guerra de
Independência dos Estados Unidos e da Revolução Francesa – com todo o seu
estigma de ser admirado em bravura e menosprezado em reconhecimento. Como todos
podiam vivamente se lembrar, a étrange défaite francesa de
1940 tinha sido um choque planetário. Malgrado o extraordinário empenho do
general francês na superação dessa situação, após a liberação de Paris e da
França em 1944-1945, ele foi percebido como corpo estranho em seu próprio país
quando a situação serenou. E, com isso, foi obrigado a retirar-se da vida
pública e reduzir-se a singelo e silencioso observador distante. Longe de tudo,
mas perto de todos. Especialmente com o avanço da Guerra Fria.
Contrário
a todas as aparências, a Guerra Fria sempre foi um problema essencialmente
europeu cujo impasse se devia ao destino da Alemanha. Que desde Yalta e Potsdam
fora partilhada entre norte-americanos e soviéticos. Deixando bem claro o
imperativo da tensão Leste-Oeste entre liberais e anti-liberais forjando um
espaço de rivalidades sem perdão interiorizadas e simbolizadas pela ocupação de
Berlim. Ainda não existia muro. Mas a cortina de ferro já era uma realidade
inconteste. Assim, desde 1945, a possibilidade de avanço vermelho causava
apreensão. Especialmente entre os franceses. Que, por sua vez, suplicaram pelo
apoio permanente e estrutural dos norte-americanos. Que, como resposta,
retornaram ao Velho Mundo com o Plano Marshall e a Otan. Dois projetos que
permitiram a efetiva reconstrução da França e a decisiva internalização notas
de pacificação os franceses. Mas, apenas, entre os metropolitanos. Pois, nas
colônias, notadamente, africanas, desde 1944-1945, em lugar de fim da guerra e
dos conflitos, acelerava-se o verdadeiro começo de uma guerra sem fim por
independência e liberdade. E por razões plausíveis: os colonos franceses haviam
participado dos esforços de guerra sob a aura da resistência implementada pelo
general De Gaulle a partir de 1943 e, com o fim do embate ante o nazismo em
1944-1945, a sua demanda geral moveu-se ao encontro da supressão do sistema, do
regime e do mando coloniais franceses. Lutava-se pela descolonização. Mas a
gente de Paris seguia aturdida e indiferente. Especialmente após 1946, com a
partida do general.
Nesse
embate, a classe política francesa voltou rapidamente a viver entropias após
1946. Era, de uma só vez, impossível de se ignorar as demandas africanas como
eles ignoravam e inconsequente ignorar o peso das colônias para o orçamento
francês como os menos experimentados nunca conseguiram se dar conta. Frente a
isso, a junção de insensibilidades, ignorância e indiferença acabou por
conduzir o país à beira do precipício. Gerando um cenário de franca anomia.
Onde a Quarta República deixou de se fazer funcional. Isso porque a pressão
parlamentar contrária à concessão de independências aos africanos conduziu –
para ficar num simples exemplo – pressões orçamentárias insuportáveis para a
manutenção de integridades territoriais coloniais e, por outro lado, a redução
de impostos advindos das colônias. E se isso não bastasse, o francês
metropolitano francês – leia-se: a sociedade civil – estava demasiado cansado
de aventuras e guerra. Para superar a situação, pôs pressão em sua classe
política que, por não suportar, sucumbiu a uma imensa instabilidade partidária.
Que contaminou o Parlamento. Que, por timorato, passou a padecer de convulsões
sucessivas. Produzindo 24 governos e 12 primeiros-ministros nas legislaturas
1946 e 1958, e levando o regime político a uma disfuncionalidade total. Sem
continuidade nem credibilidade na condução de seus destinos. O que impôs a
reabilitação do general De Gaulle. Essencialmente para solucionar a
problemática colonial. Mas, fundamentalmente, para superar essa guerra
infindável de partidos.
Convocado
em 1958, o general foi imediatamente tornado plenipotenciário. E, nessa
condição, compôs às pressas uma Constituição. Foi à Argélia – principal e mais
conturbada colônia. Apresentou aos argelinos o seu ambíguo “je vous ai
compris” [eu lhes compreendi]. Iniciou a distensão com todas as colônias.
Negociou com praticamente todas as lideranças metropolitanas e coloniais.
Conduziu – ora tranquilamente, ora menos tranquilamente – a
descolonização/independência. Reposicionou o lugar da França no mundo. Forjou
uma nova projeção interior e exterior do país. Eliminou a possibilidade de
alinhamentos automáticos com liberais ou comunistas. Passou a construir-se como
terceira via e terceira voz no mundo. Falando a todos e tentando ser ouvido por
todos. Em nome do presente, pensando no futuro e em louvor aos tempos em que o
mundo venerava a França. Mesmo assim, a pressão interna seguiu imensa. Especialmente
porque, tecnicamente, o general havia sido entronizado no poder indiretamente
por um colégio de notáveis. Sem, portanto, a participação nem a legitimidade
popular. E, desse modo, gostando-se ou não, mais ou menos, refém do sistema e
dos partidos. Que, por claro, poderiam amputar os seus meios de ação e ejetá-lo
do poder a qualquer momento, tão logo a sua tarefa principal que era solucionar
a problemática colonial fosse concluída. Para, então, inibir essa
possibilidade, o general convocou um referemdum para a
instalação do sufrágio universal para a escolha de presidentes da República a
começar por ele próprio. Como reação, o aglomerado de partidos do colégio de
notáveis impetrou uma moção de censura contra o governo de George Pompidou,
primeiro-ministro do general, com o propósito de acoimar o general. O ano era
1962. O mês, outubro. O dia, 5. E, portanto, em atenção ao artigo 50 da
Constituição de 1958, nesse dia 5 de outubro de 1962, pela primeira vez na
Quinta República, um primeiro-ministro foi demitido pela vontade parlamentar.
Mas
o general não se intimidou. Vendo que o propósito era fragilizá-lo, ele
dissolveu o Parlamento, convocou novas eleições parlamentares, conseguiu
constituir maioria parlamentar a seu favor, renomeou George Pompidou como seu
primeiro-ministro e conseguiu o referendum favorável ao
sufrágio presidencial universal. E, com isso, conduziu a querela de partidos à
irrelevância. Vitalizando o espírito do novo regime ancorado na Constituição de
1958. Que fazia do presidente da um verdadeiro monarca, com amplos poderes e
robusta legitimidade. Advindos diretamente do povo. Sem nenhum – ou quase
nenhum – compromisso com partidos. Eis a essência da Quinta República.
O
que acaba de ocorrer na França nesta primeira semana de dezembro de 2024 vai
integralmente diferente daquele feito de 1962. Michel Barnier vem de ser
demitido pelos parlamentares e o presidente Macron não possui nenhum mecanismo
para “punir” os parlamentares. Vê-se, assim, um evidente retorno à odienta
querela de partidos. Esterilizando o regime político da Quinta República e
lançando o destino do país – da Quinta República e do presidente Macron – ao
desconhecido. Pois um retorno à Quarta República virou impossível e a
implementação de uma Sexta, a partir de uma reforma política, também parece
improvável. De modo que 1958 e 1962 foram, agora, tornados anacrônicos e 2024
ganhou a pecha de annus horribiblis francês. Ou melhor, o ano
que em o empilhamento de crises chegou ao limite do suportável. Pois a crises
são múltiplas e variadas. Para ficar apenas nas mais decisivas, olhando bem de
perto, o cursor pode ser posicionado naquela fatídica decisão de dissolução do
Parlamento na noite do 9 de junho de 2024 após a vitória acachapante do partido
de Marine Le Pen nas eleições para deputação na União Europeia em Bruxelas.
Olhando
mais ao longe, o 2 de dezembro de 2020, 26 de setembro de 2019 e o 8 de janeiro
de 1996 – datas respectivas da morte dos presidentes Vallery Giscard d’Estaing,
Jacques Chirac e François Mitterrand – sepultaram os últimos presidentes
franceses capazes de suportar o fardo de sucessores do general De Gaulle. E
olhando bem longe, a Quinta República talvez tenha começado a terminar com a
resignação do general naquele terrível 28 de abril de 1969. Voltando ao início
e recompondo com calma seis meses, dia após dia, daquela fatídica decisão do 9
de junho de 2024, ninguém entendeu completamente as motivações do presidente
Macron na dissolução do Parlamento. As eleições eram europeias. O partido de
Marine Le Pen – e de seus similares radicais e extremistas na Europa e mundo
afora – amplia a sua capilaridade de maneira profunda e estrutural desde a
crise financeira de 2008. Tanto que chegou ao segundo turno das presidenciais
francesas em 2017 e 2022 – nas duas ocasiões, contra Emmanuel Macron. De
maneira que já virou tácito que a sua ascensão vai constante, impressionante e
irresistível. E, claramente, poderá – mais dia, menos dia – conduzir Marine Le
Pen ou afins para a presidência em 2027 ou adiante. De modo que dissolver o
Parlamento francês sob o pretexto de conter a ramificação do partido de Marine
Le Pen continua sendo um argumento intelectualmente frágil, moralmente
inconsequente e politicamente irresponsável. Assim como a tese da clarificação,
mobilizada pelo presidente Macron.
Sem
ser demasiado contundente ao encontro do nobre presidente francês, a defesa
dessa tese beira o cinismo. Todo o macronismo entrou em crise terminal ao longo
do primeiro mandato do presidente Macron. Após a sua reeleição em 2022, os
despojos dessa crise só fizeram aumentar. De modo que impor ao povo “pensar
melhor” e “rever” o sobre o seu ampliado apoio no partido de Marine Le Pen
chega bem perto de ignomínia. Ou, dito de outro modo, parece brincadeira de
péssimo gosto com a inteligência alheia. Tanto que o resultado dos dois para o
legislativo deixou ainda mais clara a força de Marine Le Pen. Em contrário,
observe-se que esse resultado coloriu o Parlamento com a França Insubmissa
(LFI) de Jean-Luc Mélenchou conquistando 78 cadeiras; o Partido Comunista
Francês (PCF), 8; os Ecologistas (LE), 28; o Partido Socialista (PS), 69; os
partidos esquerdistas diversos, 10; os partidos centristas diversos, 5; o
Movimento Democrático (Modem) de François Bayrou, 33; Ensemble –
reunindo Renascimento e outros aliados do presidente Macron – 99; o Horizontes
do antigo primeiro-ministro Édouard Phillipe da presidência Macron, 26; a União
Democrática e Independente, 3; o Os Republicanos (LR) do antigo presidente
Nicolas Sarkozy, 39; partidos direitistas diversos, 26; a união LR-RN – aliança
entre Éric Ciotti e Marine Le Pen –, 17; o RN de Marine Le Pen, 125; o partido
de extrema direita, à direita do RN, 1; e o partido regionalista, 9.
Mirando
tudo através de alianças, a Nova Frente Popular (NFP), liderada por Mélenchon
aquinhoou 182 assentos. A Maioria Presidencial (MP) de Macron conseguiu 168. A
Reunião Nacional (RN) de Marine Le Pen de braço com parcelas de LR de Éric
Ciotti conseguiu 143. O grupo dos Republicanos levou 46. Enquanto a variedade
independente à direita conseguiu 14, a à esquerda, 13, a ao centro, 6. Ao passo
que o partido dos regionalistas levou 4 e outras agremiações nanicas unidas, 1.
Baralhando mais uma vez os números e vendo-os em perspectiva, o RN aparece como
o único partido com ascensão constante, consistente e acelerada na ampliação de
sua representação parlamentar nos últimos vinte e cinco anos. Essa força
política sob a liderança dos Le Pen não tinha conseguido nenhuma cadeira em
2002 nem em 2007. Mas conquistou duas em 2012, nove em 2017, 89 em 2022 e às
125 – ou, em aliança, 143 – em 2024. O conjunto dos partidos ancorados no
agrupamento Ensemble conquistou 350 após a primeira eleição do
presidente Macron em 2017, 249 após a sua reeleição em 2022, e desceu para 156
– ou 168 – cadeiras em 2024. Enquanto o agrupamento de Mélenchon – que também
envolve, a contragosto de todos, frações do PS – variou de 162 em 2002 para 205
em 2007, 307 após a eleição do presidente François Hollande em 2012 para 58 em
2017, 131 em 2022 e 178 – ou 182 – em 2024. Parece mais que claro que esses
números não são números. Fitando apenas a realidade de 2024, após a dissolução
e recomposição do Parlamento, existem 143 cadeiras a favor de Le Pen, 168 para
Macron e 182 para Mélenchon. Constituindo-se três forças parlamentares
disformes e dissonantes. Como jamais se viu sob a Quinta República. Pois,
voltando-se à essência, a Quinta República supõe a governabilidade através de
uma maioria parlamentar. Qualquer que seja.
O
general De Gaulle e todos os seus sucessores – exceto o presidente Jacques
Chirac, em 1997 – supuseram dissolver o Parlamento como mecanismo de afirmação
dessa maioria. E conseguiram. O presidente Macron poderia até intuir e pode
seguir imaginando que isso seria possível em junho de 2024. Mas nenhum dado da
realidade corrobora a sua tese. De modo que, sem mancar com o respeito ao
encontro do distinto presidente francês afeiçoado em saltitar com o presidente
Lula da Silva na Amazônia, a sua intempestividade na dissolução do Parlamento
foi, sim, uma ação temerária e desprovida de pouco ou nenhum cálculo político
revestido de interesse nacional francês. Daí a perplexidade rumo ao
desconhecido. Pois nesse cenário, qualquer primeiro-ministro tende a transitar
por um Parlamento hostil. Que só poderá ser novamente dissolvido em junho de
2025. Tarde demais para um regime político que, sinceramente, claudica. E
claudica porque, de fato, “ninguém ganhou” as legislativas. Ou seja, nenhum
partido conseguiu número suficiente de cadeiras para afirmar-se majoritário. O
número mínimo seriam 289 cadeiras. Como ninguém chegou nem perto, o caos se
instalou. Pois o grupo de Mélenchon conseguiu 182 e se acredita majoritário. O
entorno de Marine Le Pen com suas 143 também se sente empoderado. E os 168
deputados fieis ao presidente sabem que não possuem nada a comemorar.
Nesse
ambiente, a singela escolha de um primeiro-ministro tornou-se um risco ao
regime. O presidente Macron escolheu Michel Barnier sabendo disso. Michel
Barnier é tido como experimentado quadro político francês. De seus variados
serviços prestados, o mais recente, complexo e relevante foi a negociação do
Brexit. Que demonstrou os seus predicados de portador de nervos de aço,
paciência chinesa e sapiência carioca. Por isso, ele entrou no radar do
presidente Macron para Matignon.
Mas
para aceder ao posto ele precisaria atar alianças. Essencialmente com Mélenchon
e fundamentalmente com Marine Le Pen.
Com
o primeiro, a resposta foi “não”. Com a segunda, conversou-se. E dessa conversa
emergiu a perspectiva de integração das 143 cadeiras do RN às 168 do Ensemble como
uma frente parlamentar para fazer passar projetos essenciais. Sendo o
orçamento, o mais importante. Sob um custo moral, sinceramente,
inacreditavelmente imperdoável da naturalização de Marine Le Pen e de seu RN na
paisagem política francesa. Tudo parecia bem. Bem mesmo. Malgrado os solavancos
de Mélenchon. Até que o judiciário francês iniciou um procedimento de
inviabilização política de Marine Le Pen. Denunciando-a de crimes políticos –
“empregos fictícios” – no Parlamento europeu. Michel Barnier havia sido
empossado primeiro-ministro em setembro de 2024 e essa ofensiva jurídica ante
Marine Le Pen começou em outubro. Quando durante duas ou três semanas não se
falou de outra coisa que a possibilidade de a principal liderança da principal
força política do país sob o risco de ser suprimida da competição eleitoral
francesa. Esse mal-estar causou desconforto de natureza física e espiritual em
toda parte. Especialmente sobre Marine Le Pen, em seu partido e em seus
eleitores. Coetaneamente, Michel Barnier iniciou a apresentação do orçamento a
ser votado pelo Parlamento. Uma operação complexa, decorrente da deterioração
fiscal estrutural do país.
A
situação fiscal francesa vem gravemente deficitária há quarenta ou cinquenta
anos. O após pandemia e o “quoi qu’il en coûte” [custe o que custar] do
presidente Macron simplesmente tornou a situação mais desafiadora. Com a
eclosão da nova fase da tensão russo-ucraniana e o seu impacto direto sobre o
fornecimento de energia, o que era desafiador ganhou ares de desespero. Diante
a situação israelo-palestina, o desespero virou insuportável. E, se nada disso
bastasse, a expectativa de retorno e o retorno de Donald J. Trump à Casa Branca
transformaram o pesadelo em pandemônio. De maneira que o projeto orçamentário
de Michel Barnier nasceu inviável e impossível de ser aprovado. Sem adentrar em
tecnicalidades, diante de todos esses vetores, o projeto propunha,
simplesmente, o aumento de perto de 40 bilhões de euros em impostos ao
contribuinte francês.
Entre
os franceses, como se sabe, tudo: menos apreciação de impostos. Notadamente
após 2008, a crise do euro, o Brexit, os Coletes Amarelos e a pandemia.
De
toda sorte, era necessário tentar. E tentar por vias legislativas. Nesse
sentido, do lado de Mélenchon, o apoio – independente da proposta – seria nulo,
e foi. Ao passo que lado de Marine Le Pen apoiar projeto desse tipo seria uma
traição aos seus 11 milhões de eleitores. Porquanto, essas duas forças
parlamentares – o NFP e o RN, de Mélenchon e Marine Le Pen – bloquearam a
proposta. Diante disso, o primeiro-ministro lançou mão do artigo 49, alínea 3,
da Constituição para fazer passar sem o aval do Parlamento. Frente à gravidade
da manobra, Mélenchon formalizou uma proposição de censura. Que foi
imediatamente aceita por Marine Le Pen e variados parlamentares de outros
partidos. Concretizando-se nos 331 votos de censura ante Michel Barnier no
último dia 04 de dezembro.
Como
primeiro-ministro do presidente Macron, Michel Barnier foi lançado a feras.
Todos sabiam disso. Mas, agora, com ares históricos. Não simplesmente por ser a
primeira demissão após 1962 e a segunda no interior da Quinta República
Francesa. Mas porque, essencialmente, o evento sugere novos tempos. Tempos de
tormentas. Onde as estabilidades viraram voláteis. E ninguém parece saber o que
fazer. Fitando simplesmente o caso francês, quando Nicolas Sarkozy chegou à
presidência da República em 2007, a intelligentsia francesa,
europeia e mundial começou a sinalizar que um mundo umbilicalmente integrado às
agruras do século XX começava a desaparecer. Nicolas Sarkozy era o primeiro
presidente da Quinta República nascido após 1945 e, portanto, desprovido da
imagem do trágico nas retinas. Mas antes a situação já não ia bem. 2005, o
“não” francês à Constituição europeia, sob a presidência de Jacques Chirac, foi
um baque importante. 1992, o “quase não” francês a ingressar no sistema de
Maastricht foi outro momento constrangedor. 1981, o “não” francês à reeleição
do presidente Valery Giscard d’Estaing também segue complexo.
Pois
a disputa Giscard versus Mitterrand produziu duas narrativas
que merecem meditação.
Giscard
propôs ser Mitterrand um “homem do passado” ao passo que Mitterrand propôs ser
Giscard um “homem do passivo”. Observando-se com calma, esse “passivo” remetia
a problemas fiscais, aumento de desemprego, da carga de impostos e afins. Todos
problemas persistentes e anteriores a 1981. Para não dizer bem antes. Desde, ao
menos, o fim dos Trinta Anos Gloriosos, que, de fato, terminaram em maio de
1968.
Maio
de 1968 como outubro de 1962 levaram a autoridade do fundador da Quinta
República ao descrédito. Da primeira vez, em 1962, o general conseguiu suportar
e superar. Da segunda, em 1968, não. Como resultado, ele renunciaria onze meses
depois sem deixar nenhum sucessor. E por razões profundas que podem ser
apreendidas na meditação atenta das concepções do general De Gaulle reportadas
nesse fabuloso C’était de Gaulle de Alain Peyrefitte (Paris:
Fayard, 1994).
Sob
todos os seus aspectos, a Quinta República foi feita sob medita para o general.
Essencialmente ao subentender que o exercício da presidência deveria ser, acima
de tudo, um fato retórico e um fato moral. Onde a grandeur [grandiosidade]
da França, tangida por sua história e por sua cultura, serviria de objetivo e
obsessão. E a distinção de seu líder máximo conduziria o país acima dos
arranjos do estado, do direito e dos partidos. O presidente Mitterrand – único
presidente francês a cumprir quatorze anos ininterruptos de presidência sob a
Quinta República – levou esses preceitos às últimas consequências. Sendo a
“quase” imposição de Maastricht a marca mais evidente dessa perspectiva
estrutural e estruturante.
O
presidente Chirac, por sua vez, tentou de tudo – e conseguiu – para seguir a
senda do general. Sendo o “não” francês à invasão do Iraque a melhor mostra
disso.
O
presidente Macron chegou ao poder em 2017 ignorando De Gaulle, Mitterrand e
Chirac e querendo ser Júpiter, o maior planeta do sistema solar. Mas, agora,
por razões obtusas, após a dissolução de junho e moção de censura de dezembro,
corre forte risco de terminar como Ícaro: singrando pelo desconhecido até ser
definitivamente estraçalhado pelo seu misto de arrogância e ilusão.
Fonte:
Por Daniel Afonso da Silva, em A Terra é Redonda
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