CIA, Sicília e Rio
Grande do Norte
Impactante
o artigo que Seymour Hersh publicou esta semana em seu blog no Substack, desta
vez não mais sobre o ato terrorista cometido pelo governo estadunidense contra
os Nord Stream Pipelines, que levavam gás russo à Alemanha, mas sobre a
operação secreta deflagrada pela CIA contra a máfia na Sicília, por
determinação dos irmãos Kennedy. Na ocasião, John era presidente e Bobby,
attorney general.
Além
de fazer menção a várias tentativas de assassinar Fidel Castro, Seymour Hersh
descreve o longo percurso pelo labirinto de contatos, silêncios, pistas falsas,
entrevistas canceladas e mensagens cifradas, até descobrir o que se passou em
1962. Para efeito do que nos importa, nos limites deste breve artigo, registro
apenas o resumo: com vistas a enfraquecer grupos da máfia nos EUA,
especialmente em Chicago, o agente Charley Ford foi enviado à Itália.
Tratava-se da retomada de uma ofensiva anti-máfia, que marcara a atuação de
Robert Kennedy como assessor de importante comissão de investigação no Senado,
em 1959. Ofensiva sucedida por recuo, à época inexplicável, agora elucidada.
Cito
Seymour Hersh em tradução livre: “Outro fator na decisão de Bobby de suspender
as acusações contra Giancana [destacado mafioso] tinha de ser a crença
difundida de que seu pai, com a aprovação de Jack (apelido de John), tinha
feito um acordo com Giancana, cujas ligações políticas em Chicago eram amplas,
pelo apoio nas eleições de 1960. Além disso, Jack Kennedy e Giancana estavam
dormindo com a mesma mulher, um fato que só viria a público depois que seu
nome, Judith Exner, vazou durante as audiências do Comitê Church. Bobby certamente
também sabia disso.”
Bobby
recuperou a iniciativa e ousou um lance arriscado: exigiu que a CIA deslocasse
um agente para cumprir missão que ele mesmo determinaria e o mandou para a
Itália. Sua tarefa era grampear lideranças de duas famílias da máfia, ambas
fiéis à sociedade Camorra, sediada em Nápoles, e semear a discórdia entre elas,
com vazamentos direcionados e seletivos de traições e roubos mútuos
inverídicos, até provocar a conflagração violenta.
O
plano de contra-informação contou com o apoio dos Carabinieri e não teria sido
possível sem o conhecimento já acumulado pela CIA, que vigiava a Camorra a
partir de Roma, se beneficiando da precariedade dos meios de comunicação
empregados pelos criminosos. Seymour Hersh afirma que, desde o fim da segunda
guerra, agentes americanos estavam infiltrados e mantinham políticos da
Democracia Cristã em sua folha de pagamento.
Nas
palavras de Seymour Hersh, que transcrevo a seguir: “A CIA jogou seu dinheiro
nos democrata cristãos corruptos, na Máfia e na Mídia, depois da segunda guerra
mundial, temendo que a esquerda – ou seja, o Partido Comunista –, com sua
ênfase em programas sociais e estabilidade no trabalho, pudesse conquistar o
poder”.
A
guerra fratricida entre facções rivais provocou muitas perdas entre os
mafiosos, mas acabou atingindo também militares e policiais italianos,
assassinados num atentado, uma vez que a história chegou aos ouvidos da Camorra,
que jurou vingança, inclusive contra Bobby e John. O presidente foi assassinado
em novembro de 1963, mas a eventual participação da máfia jamais foi sequer
considerada e essa trama nunca chegou à Warren Commission, responsável por
investigar todas as linhas associadas ao homicídio.
Que
lições podemos tirar, hoje, no Brasil, de um fato longínquo e distante no
tempo? De meu ponto de vista, várias:
(i)
Em
2023, 60 anos depois, o monitoramento dos alvos prescinde da tecnologia
rudimentar dos “grampos”, como nos mostrou Snowden. Os recursos são muito mais
potentes.
(ii)
A
ideia de mobilizar grupos criminosos contra seus competidores, parceiros ou
potenciais oponentes, visando enfraquecer cada um deles ou o conjunto, não é
nova e comprovadamente funciona.
(iii)
Funciona
segundo uma perspectiva estreita e socialmente irresponsável, pois, como
demonstra o caso em pauta, não é plenamente controlável: os desdobramentos eram
(e são) imprevisíveis, uma vez que a dinâmica desencadeada não atendia a uma
política sistêmica, compatível com a legalidade e o Estado de direito, mas, ao
contrário, apenas realizava a lógica da guerra (Proxy) exportada para terreno
alheio, em condições geopolíticas ostensivamente imperialistas.
(iv)
A
CIA não corrompe somente políticos, como se sabe.
(v)
A
arena em que atua não se esgota no campo criminal, evidentemente.
(vi)
A
questão criminal pode proporcionar um deslocamento do foco, mas a matriz das
intervenções é política, e mesmo geopolítica, quando não diretamente econômica.
Portanto, assim como o palco de operações num confronto bélico pode se deslocar
para um terceiro país, as ações também podem se deslocar de uma esfera a outra.
Por exemplo, se o objetivo for eliminar uma liderança de esquerda, pode-se
tentar neutralizá-la via justiça, em lugar de matá-la, como nas décadas
precedentes -foi o caso de Lula. São diversas as esferas em que se desenrolam
ações estratégicas, de porte transnacional, da mídia à própria chantagem
econômica -não por acaso os especialistas falam em guerra híbrida.
(vii)
Finalmente,
o ensinamento mais relevante, no momento presente: se o fascismo brasileiro
quiser desestabilizar o governo, produzir crises e trazer de volta as Forças
Armadas para o proscênio, devolvendo-lhes o protagonismo que a vitória da
democracia lhe retirou, não será surpreendente se adotar estratagema análogo
àquele descrito por Seymour Hersh, empregado pela CIA na Itália, em 1962:
estimular conflagrações entre facções criminosas para provocar o caos. A Força
Nacional dificilmente teria condições de garantir a segurança pública se as
demandas locais se multiplicassem. A pressão para deflagrar uma operação de
garantia de lei e ordem (GLO), que sabiamente foi descartada em 8 de janeiro e
de novo refutada no Rio Grande do Norte – apesar da solicitação de alguns
agentes políticos, entre eles o presidente do Senado –, pode se tornar
incontornável.
·
Conclusão:
convém
formular com urgência um plano B, que não envolva os militares. De preferência,
um plano de caráter preventivo. E um plano dessa natureza envolverá,
necessariamente, uma política de segurança pública, ou melhor, a reforma
estrutural da segurança. Dado o contexto político, eu tomaria a liberdade de
recomendar que se iniciasse pelo sistema penitenciário, criando condições para
que a LEP (Lei de Execuções Penais) seja cumprida e o Estado, não as facções,
domine as unidades.
Para
isso, será preciso sustar o encarceramento em massa de pequenos varejistas do
comércio de substâncias ilícitas. Tais medidas corresponderiam ao fim da
perversa, iníqua e racista guerra às drogas. Vejam como nos prevenindo de
golpes fascistas terminaríamos beneficiando a luta antirracista.
Fonte:
Por Luiz Eduardo Soares, em A Terra é Redonda
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