domingo, 30 de abril de 2023

Cacau, manga, banana e maçã: frutas produzidas em terras indígenas abastecem União Europeia

Do Mato Grosso do Sul até o Vale do Rio São Francisco, entre Bahia e Pernambuco, são vários os casos que demonstram a participação da fruticultura nas sobreposições em Terras Indígenas (TIs). Boa parte dessas empresas abastecem tanto o mercado interno quanto internacional, exportando principalmente para países europeus.

As informações fazem parte do relatório “Os Invasores: quem são os empresários brasileiros e estrangeiros com mais sobreposições em terras indígenas”, publicado no dia 19 pelo De Olho nos Ruralistas. Entre os principais casos está uma incidência de 1.145,77 hectares da Ducoco Agrícola, exportadora de água, leite e derivados de coco. Com base nos dados fundiários do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), foram identificadas 1.692 sobreposições de imóveis privados em áreas demarcadas pela Fundação Nacional do Índio (Funai).

Além do caso Ducoco, que será detalhado em reportagem específica, o observatório identificou outras dez sobreposições de empresários do setor de fruticultura, englobando os segmentos de cacau, café, banana, maçã e manga. Os casos envolvem de pequenas distribuidoras de frutas a multinacionais, como fabricante de fertilizantes luso-espanhola Tradecorp.

A empresa é dona da Agrícola Camburi Ltda, titular de um conjunto de sobreposições à TI Kanela Memortumré, no Maranhão. Ali, fazendas de caju totalizam uma sobreposição de 3.748 hectares. Por meio da Camburi II Participação Ltda, a empresa possui quatro sócios em comum com a gigante dos fertilizantes Tradecorp. São eles: Roberto Berwanger Batista, Jorge Luis de Almeida, Jorge Ricci Junior e Rafael Leiria Nunes. Desde o ano 2000, a Tradecorp faz parte do Grupo Rovensa, líder mundial em soluções biológicas fundado há quase cem anos em Portugal.

Confira abaixo as fazendas de fruticultores detectadas pelo Incra em incidência em terras indígenas:

PRODUTORES DE CACAU E MANGA DISPUTAM TERRAS COM INDÍGENAS NA BAHIA
No sul da Bahia, em Porto Seguro, o Grupo Lembrance, fundado por uma família homônima e natural do Espírito Santo, se destaca como um dos maiores produtores de cacau do país. Com a técnica de irrigação por gotejamento, presente nas plantações da família por meio de uma parceria com a Netafim, do grupo mexicano Orbia, as fazendas Lembrance vêm batendo recordes de produção do fruto.

Ao lado do Pará, a Bahia possui a maior produção de cacau no país, fazendo do Brasil o quinto maior produtor mundial da fruta. Particularmente no sul do estado, a atividade é de grande relevância para a economia baiana, a ponto da região ser batizada de Costa do Cacau.

Referência no setor, o Grupo Lembrance protagoniza conflitos territoriais em terras indígenas. Em Porto Seguro, a família é proprietária da Fazenda Lembrança II, de 422 hectares, dos quais 236,67 ha estão sobrepostos à TI Barra Velha do Monte Pascoal. Em constante conflito com o povo Pataxó, que habita o território, os irmãos Lembrance são autores de um dos mandados de segurança responsáveis pela suspensão da ampliação do território Pataxó no sul da Bahia.

No extremo norte do estado, em Abaré, divisa com Pernambuco, há mais um caso onde a fruticultura é o pretexto econômico para propriedades rurais estabelecidas em territórios indígenas. Dos 715 hectares da Fazenda Bom Jesus, apenas 5 não incidem sobre a TI Tumbalalá. O imóvel está registrado em nome da Agropecuária Roriz Dantas, a Agrodan. Voltada para a exportação de mangas para o continente europeu e certificada pela Rainforest Alliance, a empresa faturou R$ 150 milhões em 2021, consolidando-se como maior exportadora do gênero no país.

Enquanto isso, o povo Tumbalalá aguarda há catorze anos pelo andamento de seu processo demarcatório, paralisado desde 2009, quando a Funai publicou o relatório de identificação da área. Em março deste ano, os indígenas se juntaram aos Tupinambá e foram a Brasília cobrar o novo governo para que agilize as demarcações na Bahia.

EXPORTADORA DE CAFÉ TENTA IMPEDIR DEMARCAÇÃO DE TERRITÓRIO PATAXÓ

Nos meses subsequentes à edição, pelo governo Bolsonaro, da Instrução Normativa nº 9/2020 da Funai, uma das TIs que mais sofreu com certificações de imóveis rurais foi a de Barra Velha do Monte Pascoal, localizada entre os municípios de Prado e Porto Seguro, no extremo sul da Bahia, em uma região conhecida como Costa do Descobrimento — ou, para os indígenas, da primeira invasão.

Entre as propriedades certificadas em sobreposição irregular à TI Barra Velha do Monte Pascoal está o Conjunto Bom Jardim. Após a instrução ser publicada pela Funai, em abril de 2020, os proprietários da fazenda conseguiram registrar 257 hectares incidentes no território do povo Pataxó. Anteriormente, os proprietários do Conjunto Bom Jardim contestaram a demarcação na Justiça, mas foram derrotados.

No Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR), quem aparece como proprietário da Fazenda Conjunto Bom Jardim é Adhemar Tadeu Nicchio, presidente da Nicchio Café. Outro membro da diretoria da empresa, Claudio Nicchio, consta como um dos autores da ação judicial dos proprietários da fazenda contra a demarcação da TI Barra Velha do Monte Pascoal, ao lado de Claudia Nicchio e Jaqueline Kelly Nicchio Von Gleihn.

Liderado pela holding Nicchio Sobrinho Café S/A, o grupo exporta grãos de café arábica para a Europa, EUA, Oriente Médio e Ásia. A família possui forte atuação política por meio do Conselho dos Exportadores de Café do Brasil (Cecafé), onde ocupa o Conselho de Administração. O Cecafé é uma das 48 organizações associadas do Instituto Pensar Agro (IPA), braço logístico da Frente Parlamentar da Agropecuária, e “patrono” da Frente Parlamentar do Café.

A Nicchio tem sede no número 675 da avenida Nossa Senhora dos Navegantes, em Vitória, Espírito Santo. Trata-se do edifício Palácio do Café, em 2010 alvo da Operação Broca da Polícia Federal, contra um esquema de sonegação fiscal montado por empresas de exportação e torrefação de café.

FRUTICULTORES AMEAÇAM DIREITOS DOS POVOS GUARANI
Em Japorã (MS), a Fazenda São Jorge, da Agropecuária Pedra Branca Ltda, empresa de cultivo de frutas e criação de gado, possui 1.624 hectares, dos quais 1.623,93 sobrepostos à TI Yvy-Katu, lar do povo Guarani Nhandeva. A empresa está registrada em nome de Pedro Macedo Fernandes e Patricia Fernandes Krasiltchik. Os sócios são proprietários da Frutabras – Comércio e Transporte Internacional, por onde realizam a exportação de maçãs e outras frutas. A empresa está no ramo de distribuição desde 1986, quando se tornou permissionária da Ceagesp em São Paulo. Possui filiais em Campinas, Ribeirão Preto e Rio de Janeiro.

Realizada quase 100% de forma manual, a colheita de maçãs tornou-se uma das principais atividades econômicas para os Guarani, aliciados em seus territórios para trabalhar nos pomares da região e do Rio Grande do Sul. Estima-se que 13 mil trabalhadores indígenas atuem na colheita do fruto, submetidos a jornadas de trabalho exaustivas em troca de uma remuneração baixa.

A banana é mais um gênero com destaque no que se refere à sobreposição em territórios indígenas. Em Grajaú (MA), Márcio Sonomura, conhecido fruticultor radicado em Minas Gerais, é titular da Fazenda Cabeceiras, de 3.627 hectares, com 1.989 hectares reivindicados pelo povo Guajá, da TI Bacurizinho. Em 2010, Sonomura era considerado o maior exportador de bananas orgânicas do país, grande parte delas vendidas para a Alemanha.

Em São João das Missões (MG), a Icil Indústria e Comércio Itacarambi, dos sócios Milton Dias Filho e Juventino Dias Neto, consta nos dados do Sigef como dona da Fazenda Sumaré Gerais, com 4.384 hectares, quase completamente sobrepostos à TI Xakriabá. Apenas 2 hectares não incidem sobre a área reivindicada pelos indígenas para ampliação. Em vídeo institucional de 2021, a empresa afirmou produzir 50 toneladas de banana por hectare na mesma área, com financiamento do Banco do Nordeste. O banco é dono de outra área incidente na TI Xakriabá, a Fazenda Dizimeiro, com 2.347,69 ha de sobreposição detectados pelo Incra.

O território de Minas Gerais foi tema de reportagem específica, oriunda do dossiê “Os Invasores”: “Dono do site O Antagonista tem área sobreposta em terra do povo Xakriabá“.

 

Ø  Multinacionais da cana avançam sobre território Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul

 

Três grandes empresas do setor sucroenergético no Brasil — financiadas com expressivos aportes internacionais — têm conexões com propriedades rurais sobrepostas a uma mesma terra indígena brasileira, a TI Dourados-Amambaipeguá I, do povo Guarani Kaiowá, que abrande os municípios de Amambai, Caarapó e Laguna Carapã, no Mato Grosso do Sul. São elas o Grupo Cosan, a Usina Santa Adélia e a Usina Três Barras.

Os dados fazem parte do relatório “Os Invasores: quem são os empresários brasileiros e estrangeiros com mais sobreposições em terras indígenas”, publicado na última quarta-feira (19) pelo De Olho nos Ruralistas. Com base nos dados fundiários do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o estudo identificou 1.692 sobreposições de imóveis privados em áreas demarcadas pela Funai em todo país. Destas, 630 estão em terras sul-mato-grossenses.

No município de Laguna Carapã, a Fazenda Campanário tem 238,5 hectares sobrepostos à TI Dourados-Amambaipeguá I. O imóvel está registrado em nome da Campanário S/A, empresa pertencente à Renato Eugênio de Rezende Barbosa. Junto aos irmãos Roberto e José Eugênio, Renato era dono da Nova América, cujas usinas de cana foram incorporadas em 2009 pela Cosan, dando à família Rezende Barbosa uma participação de 11,9% no capital do grupo — atrás apenas de Rubens Ometto Silveira Mello, o sócio-controlador.

Com a internacionalização da Cosan — que, junto à petroleira anglo-holandesa Shell, controla a maior produtora de açúcar e etanol do mundo, a Raízen —, a família foi gradualmente vendendo suas ações. Roberto de Rezende Barbosa foi o último dos grandes acionistas individuais que não pertenciam à família Ometto, deixando o conselho de sócios em 2019.

A relação não se restringe à conexão corporativa. A Campanário é uma das principais fornecedoras da Raízen no Mato Grosso do Sul. Em agosto de 2022, a empresa foi homenageada pela multinacional com o título de “Produtor de Excelência” e foi reconhecida como “modelo de gestão de sustentabilidade” pelo programa Elo Raízen.

No mês passado, em março de 2023, o grupo recebeu um novo aporte financeiro. Desta vez, do fundo soberano de Singapura, o GIC, que se tornou um dos maiores acionistas da Raízen, adquirindo 5,09% das ações.

Confira abaixo outras sobreposições de usineiros e canavieiros em TIs, segundo dados do Incra:

FAMÍLIA PLANTOU CANA EM TERRA INDÍGENA COM DINHEIRO DO BNDES

O conflito da família Rezende Barbosa com os Guarani Kaiowá vem de longa data. Em 1972, Roberto — então diretor da Companhia Agrícola e Pastoril Campanário — enviou à Funai um pedido para que a instituição retirasse “cerca de 76 índios Kaiwá” que viviam dentro da fazenda de 19,7 mil hectares, comprada um ano antes. Poucos meses depois, em plena ditadura militar, a Funai enviou uma missão antropológica que constatou a presença dos indígenas desde 1927 — muito antes, portanto, da chegada dos usineiros paulistas.

Em 2012, um relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos denunciou o grupo Nova América, dos Rezende Barbosa, por realizar o plantio de cana dentro de uma terra indígena vizinha, a TI Guyraroká, em Caarapó, utilizando financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Também pertencente ao povo Guarani Kaiowá, o território possui um papel central na discussão sobre o Marco Temporal. Em 2014, o procedimento administrativo de demarcação da TI Guyraroká foi anulado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), acolhendo a tese de produtores rurais da região de que os indígenas só teriam direito ao território se pudessem comprovar sua ocupação ininterrupta desde 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal. Essa tese não considera que milhares de indígenas foram continuamente expulsos de suas terras antes, durante e depois da aprovação da lei maior, só conseguindo retomá-los em anos recentes.

O processo da TI Guyraroká foi reaberto em 2021, tornando-se um caso de repercussão geral. Isto é, caso seja validada pelo STF, a tese do Marco Temporal poderá ser aplicada para todas as terras indígenas do Brasil, o que, na prática, colocará um fim à demarcação de novos territórios.

Os Rezende Barbosa também violam os direitos dos Guarani Kaiowá do outro lado da fronteira. No Paraguai, onde a etnia se assume como Pãi Tavyterã, a família foi proprietária da Estância Lagunita, no Distrito de Ypejhú, no departamento de Canindeyú, em conurbação com Paranhos (MS). O email de contato, nos registros oficiais da empresa, era o do administrador da Nova América Agrícola Caarapó Ltda, empresa sócia da Cosan – do lado brasileiro da fronteira, portanto.

Em agosto de 2015, a Estância Lagunita foi o cenário do sequestro e morte de um dos funcionários da fazenda, o administrador Silvio Deip Barboza, em um ataque atribuído ao grupo guerrilheiro Exército do Povo Paraguaio (EPP). A história foi contada por este observatório no especial De Olho no Paraguai.

USINAS QUE INVADEM TERRITÓRIO KAIOWÁ SE DECLARAM “SUSTENTÁVEIS”
Em fevereiro de 2022, a International Finance Corporation (IFC), fundo de investimentos em desenvolvimento vinculado ao Banco Mundial, anunciou um aporte de US$ 30 milhões na Usina Santa Adélia, destinado à renovação das áreas de cana e à efetivação de um projeto de irrigação, com o propósito de “mitigar mudanças climáticas”. Outros US$ 20 milhões foram levantados junto ao banco holandês Rabobank.

Parte do sistema Coopersucar, a Usina Santa Adélia pertence à família Bellodi, de Jaboticabal (SP). Segundo o Incra, o clã possui seis sobreposições na TI Dourados-Amambaipeguá I, todas no município de Amambai, somando 2.943,47 hectares, divididos entre quatro familiares e duas empresas. Isso significa 5% da área pretendida pelos Guarani Kaiowá no processo de demarcação.

Esse não foi o único aporte do IFC a grupos vinculados à sobreposição em áreas indígenas. Entre 2021 e 2022, o banco liberou à gigante Amaggi dois empréstimos, de US$ 180 milhões e US$ 30 milhões, para ampliar a rastreabilidade nas cadeias de algodão e soja. A trader foi tema de reportagem específica sobre o setor de grãos: ““Os Invasores” mostra participação de gigantes da soja em sobreposições de terras indígenas“.

Também em Amambaí, a Fazenda Três Barras avança 130 hectares dentro da mesma Terra Indígena. A fazenda pertence à Usina Três Barras, que desde 2018 passou a ser controlada pela Vita Bioenergia, após um investimento de R$ 461 milhões.

Com sede no Rio de Janeiro, a Vita Bioenergia tem capital estadunidense: possui como sócia a Cousley Wood LLC, empresa de Brookline, no estado de Massachusetts. A Vita é administrada pelo escocês Patrick Mailer-Howat, ex-executivo do HSBC, Banco de Boston e Citibank. Segundo Mailer-Howat, as unidades do grupo, incluindo a Usina Três Barras, são “à prova de futuro, pois atenderão a todos os critérios legislativos e ambientais atuais e esperados”.

 

Fonte: De Olho nos Ruralistas

 

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