domingo, 30 de abril de 2023

Homologada por Lula, TI Avá Canoeiro tem sobreposição da Eletrobras e sócios bilionários

Dois mil e oitocentos hectares. Este é o tamanho da sobreposição que bilionários brasileiros e fundos de investimento estrangeiros liderados por Jorge Paulo Lemann “herdaram” ao se tornarem os principais acionistas da Eletrobras, a estatal de energia elétrica privatizada em meados de 2022 pelo governo de Jair Bolsonaro.

Os dados integram o relatório “Os Invasores: quem são os empresários brasileiros e estrangeiros com mais sobreposições em terras indígenas”, publicado no dia 19 pelo De Olho nos Ruralistas. Com base nos dados fundiários do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o estudo identificou 1.692 sobreposições de imóveis privados em áreas demarcadas pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em todo o país.

A 46ª maior sobreposição de terra indígena do Brasil está no Centro-Oeste, na bacia do Rio Tocantins, em Minaçu (GO). Ali, a área total da Usina Hidrelétrica (UHE) de Serra da Mesa, com seus 1.048,27 hectares, está praticamente toda inserida nos limites declarados da TI Avá Canoeiro, cuja homologação foi assinada nesta sexta-feira (28) pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em ato realizado no encerramento do Acampamento Terra Livre (ATL).

Além da usina, a Furnas Centrais Elétricas, detentora do imóvel, possui outras seis sobreposições no território Avá Canoeiro, divididos em três loteamentos agrícolas: Ribeirão dos Negros, Cachoeira e Queixadas do Corriola, totalizando outros 1.843,56 hectares em mãos da subsidiária da Eletrobras.

Oficializada em junho de 2022, a privatização da Eletrobras representou um recorde em movimentação na B3 Bovespa, totalizando R$ 33,7 bilhões. A maior cota de ações preferenciais (10,88%) foi adquirida pela 3G Capital, que tem como sócios Jorge Paulo Lemann, Marcel Herrmann Telles e Carlos Alberto Sicupira. O mesmo trio protagonizou, em janeiro, o escândalo do rombo bilionário na Americanas, que levou a empresa à recuperação judicial.

Donos de uma fortuna somada de R$ 196,12 bilhões, Lemann, Telles e Sicupira são o primeiro, o terceiro e o quarto homens mais ricos do Brasil, de acordo com o mais recente ranking da revista Forbes. O CEO da gestora, Alexandre Behring, está na nona posição.

Além da 3G, a “nova” Eletrobras tem como sócios majoritários o GIC Private Limited, fundo soberano de Singapura, e a estadunidense Blackrock Inc, maior empresa de gestão de ativos e investimentos do mundo.

Confira abaixo o mapa com as áreas registradas pela Furnas Centrais Elétricas em sobreposição à TI Avá Canoeiro:

POVO AVÁ CANOEIRO SOBREVIVEU A GENOCÍDIO

Os Avá Canoeiro entraram para a história como “o povo que mais resistiu ao colonizador no Brasil Central”, recusando-se terminantemente a estabelecer qualquer contato pacífico. Segundo os registros de viajantes, os Avá — palavra do Guarani, que significa “gente”, “pessoa” — eram ágeis no uso de canoas durante os ataques a inimigos e, por isso, ficaram conhecidos como Canoeiros.

O povo originalmente habitava uma área de Cerrado nas cabeceiras do Rio Tocantins. A partir do século 19, a etnia passou a sofrer um processo contínuo de perseguição e extermínio por fazendeiros da região de Uruaçu (GO). Após uma série de ataques — destacando-se o assassinato de uma indígena grávida em 1920 por jagunços da família Correia de Miranda — os Avá Canoeiro se dividiram em dois grupos: o primeiro optou pelo isolamento voluntário em locais de difícil acesso nas proximidades do Rio Tocantins, na área homologada hoje pelo governo Lula; enquanto o segundo rumou até o Médio Araguaia, no estado do Tocantins.

Após a separação, os dois núcleos de refugiados viveram histórias diferentes, ambas foram marcadas pelo genocídio. Em 2013, os Avá Canoeiro somavam apenas 25 pessoas. Nove delas descendiam diretamente dos indígenas que se isolaram. Esse diminuto grupo sobreviveu a novos ataques, como o Massacre da Mata do Café, nos anos 1960.

Localizada nos municípios de Minaçu e Colinas do Sul, em Goiás, a TI Avá Canoeiro foi reconhecida pela Funai em 1983, tendo a área interditada para uso dois anos depois. Em 1994, foi identificada. A demarcação viria apenas em 1999, com cerca de 38 mil hectares.

Nos anos 90, o território ancestral passou a ser inundado pelo barramento do Rio Tocantins para a construção da UHE Serra da Mesa, concluída em 1998. Desde então, o povo passou a viver sob um controle tutelar abusivo pelo Programa Avá Canoeiro do Tocantins (Pacto), resultante de um convênio indenizatório firmado entre a Funai e a Furnas Centrais Elétricas.

O ramo da etnia que migrou para o Médio Araguaia viveu até os anos 70 na região do Capão de Areia, entre os Rios Javaés e Formoso do Araguaia. Segundo estimativas da Funai, haviam na época apenas catorze sobreviventes, que integravam um grupo de parentes próximos, encurralados por fazendeiros da região.

O grupo foi exterminado por vaqueiros e jagunços da Fazenda Canuanã, pertencente aos irmãos Pazzanese, uma tradicional família de São Paulo, cuja sede havia sido instalada no sítio da antiga Aldeia Kanoanõ, dos Javaé, com recursos da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). A fazenda iniciou uma parceria econômica com o grupo Bradesco, que decidiu instalar a primeira unidade rural da Fundação Bradesco ao lado da sede do imóvel.

 

Ø  Cooperativa “herdeira” da Batavo avança sobre terra indígena no Maranhão

 

No dia 24 de maio de 2020, a Fundação Nacional do Índio (Funai) editou a Instrução Normativa nº 9, que permitiu a certificação e o registro no Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) de fazendas sobrepostas a terras indígenas ainda não homologadas. Com isto, o governo Jair Bolsonaro certificou 239 mil hectares em mais de 400 propriedades rurais em todo Brasil.

Com 10 mil hectares justapostos à Terra Indígena delimitada Porquinhos, do povo Canela-Apanyekrá, a Fazenda Boa Esperança II, no município de Fernando Falcão (MA), é a terceira maior propriedade rural beneficiada pela medida. Conforme revelado em reportagem da Agência Pública, a certificação do imóvel saiu no mesmo dia da submissão do pedido ao Sigef.

A sobreposição na terra indígena é apontada no o relatório “Os Invasores: quem são os empresários brasileiros e estrangeiros com mais sobreposições em terras indígenas”, publicado no dia 19 pelo De Olho nos Ruralistas. A partir das bases de dados fundiários do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o estudo joga luz sobre as conexões empresariais por trás de 1.692 sobreposições de fazendas em Terras Indígenas (TIs) de todo o Brasil.

No Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR), a Boa Esperança II está em nome do ruralista Geraldo Verschoor, que também investe em energia solar e foi membro do Conselho de Administração da companhia de laticínios paranaense Batavo. A marca foi vendida em 1998 para a Parmalat, por R$ 150 milhões. Hoje, pertence à maior transnacional de laticínios do mundo, a francesa Lactalis.

A antiga Batavo mudou de nome para Frísia Cooperativa Agroindustrial, tornando-se uma das maiores cooperativas agrícolas do Paraná, reunindo quase 900 produtores agropecuários da região dos Campos Gerais. Dados de processos do judiciário maranhense indicam que a Fazenda Boa Esperança II tem outros proprietários, entre eles herdeiros e diretores da antiga cooperativa. Um dos nomes é o de Renato João de Castro Greidanus, ex-presidente da Batavo, hoje presidente da Frísia. Em 2021, Greidanus anunciou que a Frísia iria investir R$ 1 bilhão “com a cartilha ESG na mão”.

Outro nome é o da família Dijkstra, com a qual Geraldo Verschoor tem parentesco: uma das sócias de Geraldo na Willy Agropecuária Ltda, produtora de soja, chama-se Guilhermina Dijkstra Verschoor. A Willy Agropecuária fica em Carambeí (PR), onde a Batavo floresceu e onde fica a sede da Frísia. O endereço da empresa consta como “Fazenda Boa Esperança” — o imóvel que incide inteiramente no território Canela-Apanyekrá, no Maranhão, chama-se Boa Esperança II.

O antigo grupo Batavo começou a comprar terras em Fernando Falcão em meados da década de 90. Na mesma época, a 200 quilômetros de distância, na cidade de Balsas, um importante polo do agronegócio no Maranhão, a cooperativa se uniu ao capital japonês para implementar um “programa de desenvolvimento do cerrado brasileiro”. Quase trinta anos depois, Balsas é o município brasileiro que mais desmata o Cerrado. O Maranhão é o estado brasileiro líder em número de hectares de fazendas sobrepostas a áreas de TIs e em assassinatos no campo.

Em outro processo fundiário envolvendo nomes da Batavo/Frísia, o desembargador-relator do Tribunal de Justiça do Estado destacou em seu voto que “desde o ano de 1994, com a aquisição da propriedade de imóveis no município de Fernando Falcão pelo Grupo Batavo, se iniciaram inúmeros conflitos agrários entre estes últimos e alguns moradores da área, sob o fundamento de invasão de terras”.

INVADIDA PELO AGRONEGÓCIO, TERRA TEM DEMARCAÇÃO SUSPENSA DESDE 2010

Os Apanyekrá Canela são um povo Timbira que habita o atual estado do Maranhão, em uma área de Cerrado e floresta. Como Canela também ficaram conhecidos mais quatro povos remanescentes dos Timbira Orientais, a exemplo dos Ramkokamekrá. É provável que canela seja uma referência à altura desses indígenas em comparação com os vizinhos Tenetehar-Guajajara. Apanyekrá, por sua vez, significa “filhos do peixe piranha”.

O território ancestral dos Apanyekrá Canela ficava nas montanhas, de acesso mais difícil que os dos demais grupos Canela. Porém, a partir do século 19, a área foi invadida por criadores de gado. Por volta de 1965, um posto do SPI foi estabelecido nas proximidades das aldeias, na região conhecida como Porquinhos, para evitar o assédio de fazendeiros.

O processo de regularização fundiária da TI Porquinhos dos Canela Apanyekrá é tortuoso. A terra foi declarada em 2009. No entanto, os municípios maranhenses atingidos pela demarcação – Grajaú, Fernando Falcão, Formosa da Serra e Barra do Corda – recorreram ao STJ alegando inconsistência da ocupação indígena da área pretendida e, por outro lado, defendendo a presença de proprietários não-indígenas na área há 300 anos. Em 2010, o então presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Cesar Asfor Rocha, suspendeu a demarcação da mencionada TI. Depois disso, a tese do Marco Temporal foi aplicada na anulação da portaria de demarcação da TI.

“Esses invasores não respeitam, estão desmatando tudo, acabando com tudo, sobre pé de pique, bacuri, cajuí, frutos do cerrado que mais vem da natureza”, explica o professor indígena Paulo Thugran Canela Apanyekrá. “Estão já plantando também eucalipto, soja, milho e isso que tá acontecendo são os invasores em torno aqui. Estão poluindo a água.”

 

Fonte: De Olho nos Ruralistas

 

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