sexta-feira, 28 de abril de 2023

Aumenta a violência em conflitos de terra com empresa de óleo de palma na Amazônia

Uma nova onda de conflitos de terra entre a maior exportadora de óleo de palma do país e comunidades tradicionais foi deflagrada nos últimos dias na Amazônia, gerando preocupação sobre a escalada da violência na região.

Comunidades indígenas e quilombolas do Pará acusam a Brasil BioFuels S.A. (BBF) de ataques violentos durante atos de reintegração de posse de uma área em disputa na região do Acará. A empresa nega as acusações e alega que foram as comunidades locais que atacaram seus funcionários. As autoridades estão investigando o caso.

Uma fonte do povo indígena Tembé, que pediu para não ser identificada por razões de segurança, descreveu à Mongabay o ataque de 12 de abril: “Eles passaram praticamente a semana ameaçando os quilombolas e os indígenas. Os seguranças da empresa chegaram armados, para nós desocuparmos as áreas”. A fonte disse que os indígenas resistiram e que “eles acabaram não nos machucando”, mas logo em seguida os seguranças foram para a área ocupada pelos quilombolas e “dispararam tiros” contra eles. “Eles não resistiram, acabaram saindo pelo ataque”, disse a fonte em uma mensagem de áudio.

Os quilombolas tomaram a iniciativa de construir um portão junto com líderes indígenas, disse a fonte, na divisa da área reivindicada como terra ancestral, para dificultar o acesso dos seguranças armados. “Foi aí que a BBF [se] revoltou de novo contra nós”, disse a fonte, relatando que na madrugada de 15 para 16 de abril “veio muita polícia, muito segurança” e que mais de 20 viaturas que expulsaram os quilombolas e destruíram o portão.

Desde 2021, a Mongabay tem publicado investigações com denúncias de grilagem de terra, violência, contaminação da água por agrotóxicos e outros crimes ambientais atribuídos a empresas de óleo de palma no Pará. No caso do BBF, a “guerra do dendê”, como reportado pela Mongabay em outubro, resultou na suspensão da compra de multinacionais.

A área em disputa está localizada nos arredores da sede da Fazenda Vera Cruz, da BBF. Em resposta por e-mail, a BBF disse que um grupo de 30 funcionários da fazenda “permaneceu em cárcere privado por três dias inteiros devido ao bloqueio da estrada em que fica localizada a fazenda” e que “um grupo armado formado por lideranças quilombolas impediu que os funcionários recebessem alimentos, água, medicamentos e combustível para a geração de energia no local”.

A empresa informou que seus funcionários só foram liberados em 16 de abril “graças a uma ação da Polícia Militar”, cumprindo a liminar deferida pelo juiz de plantão no Fórum de Acará, Giordano Grilo. “Os funcionários relataram ter vivido momentos de terror, devido às ameaças e à falta de alimentos, água e combustível”.

A BBF também acusa um grupo de 30 quilombolas de ter invadido a fazenda Vera Cruz em 12 de abril para roubar óleo de palma. “Durante a ação, eles ameaçaram de morte funcionários da empresa e invadiram as instalações do Polo Vera Cruz, com o objetivo de destruir equipamentos e maquinários. A Polícia Militar retirou os invasores do local, mas eles retornaram à fazenda da empresa no dia 14, fazendo novas vítimas”.

A empresa informou que registrou quatro boletins de ocorrência “por invasões promovidas pelo grupo de indígenas e quilombolas” somente na semana de 12 de abril. Segundo a BBF, desde 2021 já foram registrados mais de 750 boletins de ocorrência pela empresa contra as comunidades “noticiando os mais diversos tipos de crimes como roubo, furtos, incêndios criminosos, tentativas de estupro, agressões de trabalhadores, tentativas de homicídio, disparos de armas de fogo, entre outros”.

As comunidades negaram as acusações de violência contra os funcionários da BBF. De acordo com a fonte Tembé, a estrada bloqueada é um acesso secundário não pavimentado à fazenda, conhecido como ramal, e não a via principal. “A gente estava só colocando os pilares para a demarcação da área e o que nós não aceitávamos era que os seguranças passassem armados para nos atacar da forma com que fizeram [no dia 12]”.

•        Denúncias de abusos e milícias na mira de investigações

Denúncias de abusos nas disputas de terra e ações de retomada estão sendo investigadas pelas autoridades do Pará. O Ministério Público Federal informou que está investigando a ação de milícias armadas e empresas de segurança privada na região, bem como denúncias de crimes e irregularidades por parte dessas empresas, disse um porta-voz em uma mensagem de voz.

A promotora de Justiça Ione Nakamura disse à Mongabay vai apurar as denúncias de abuso policial nas ações de retomada assim que receber provas e indícios dessas irregularidades. Ela requereu uma audiência com o juiz da Vara Agrária, agendada para 28 de abril, para ouvir as partes e dirimir o conflito.

Nakamura disse que estava liderando as negociações para “a construção de um acordo de convivência enquanto os órgãos públicos destinam a área a quem de direito”, dado que os quilombolas alegam que parte da fazenda se sobrepõe ao seu território. Mas, enquanto houver conflito, disse a promotora em uma mensagem de texto, não há como destinar a área. “Infelizmente, com acirramento do conflito e situações de violência, não tem condições de diálogo. Por isso, pedi a audiência”.

Em uma declaração por e-mail, a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Pará informou que equipes especializadas das polícias civil e militar realizaram “uma ação integrada” para “desocupação e o desbloqueio das vias de acesso” à fazenda, em cumprimento a uma decisão judicial de 16 de abril. “A ação foi acompanhada por um oficial de justiça e não houve disparos de arma. Um inquérito será instaurado para apuração dos fatos”.

A defensora pública Andreia Barreto, porém, questionou a legitimidade da liminar, que foi emitida por uma Vara Cível e não pela Vara Agrária. “Para a defensoria, houve uma violação da competência técnica do juízo, já que no estado do Pará a Vara Agrária tem competência para conflitos coletivos pela posse e propriedade da terra”, disse ela à Mongabay por mensagem de voz. Ela afirmou também que tanto o juiz da Vara Agrária quanto ela estavam de plantão em 16 de abril.

Barreto disse que não é a primeira vez que a BBF recorre à Vara Cível para obter liminares de reintegração de posse, “violando inclusive a organização do judiciário com relação à competência”. “Parece que as varas cíveis concedem a reintegração com cautelas reduzidas comparadas às varas agrárias e acabam deferindo o pedido da empresa”.

 

       Guarani Kaiowá protestam contra condomínio de luxo e são presos

 

Em Dourados (MS), a cidade cresce e “engole” áreas reivindicadas pelos Guarani Kaiowá. É uma luta que já dura mais de 100 anos, e está longe de ter um fim. No último dia 8 de abril, dez indígenas foram presos após participarem de um protesto contra a construção de um condomínio de luxo nos limites da zona urbana. A Tropa de Choque da Polícia Militar efetuou a prisão em flagrante. Menos de 48 horas depois, uma casa de pau a pique de uma família indígena de um dos presos foi incendiada. Mulheres e crianças dormiam no local.

O atentado na madrugada do dia 10 faz parte de uma série de violências contra os Guarani Kaiowá. Fogo, tiros, mortes, ameaças e presenças de jagunços compõem essa história. O embate com fazendeiros e contra a especulação imobiliária ficou mais intenso na última década. A área do futuro loteamento residencial, chamada pelos indígenas de tekoha (território) Yvu Vera, é reivindicada por eles, assim como o local onde ficava a residência que virou cinzas, no tekoha Aratikuty.

Os dez indígenas detidos são acusados de associação criminosa, dano ao patrimônio privado e ameaça, além de lesão corporal, posse de armas e até esbulho possessório. De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), eles negaram em depoimento à Polícia Civil essas práticas e informaram que estavam no local lutando por direitos.

O juiz Rubens Petrucci Junior, da 2ª Vara Federal de Dourados, decidiu manter as prisões, revertidas de flagrantes a preventivas. Doze dias após o conflito, nove lideranças Guarani Kaiowá e Terena continuam na Penitenciária Estadual de Dourados. Apenas um idoso de 77 anos foi liberado. A Defensoria Pública da União e o Ministério Público Federal (MPF) pedem a soltura dos indígenas, alegando que as prisões foram arbitrárias por falta de materialidade e que houve uso de força desproporcional.

A Defensoria Pública da União apresentou um pedido de habeas corpus em conjunto com o Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Povos Indígenas e da Igualdade Racial e Étnica (Nupiir), Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso do Sul, Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Observatório Sistema de Justiça Criminal e Povos Indígenas e Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). “Toda e qualquer prisão antes do trânsito em julgado da sentença condenatória deve revestir-se de natureza cautelar, constituindo-se em medida excepcional, devidamente justificada pelos requisitos da cautelaridade e com a indicação da prova convincente da necessidade de custódia”, diz trecho do pedido.

Em nota à imprensa, a DPU informa que o caso foi levado às Cortes Internacionais de Direitos Humanos, por ser grave “a tentativa de criminalização” dos Guarani Kaiowá.

·         Lesão corporal, furto e ameaça

A ação de prisão dos indígenas tramita na 11ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3). No inquérito, a Defensoria Pública da União informa que vai questionar a prática dos delitos atribuídos aos indígenas pela Polícia Militar (PM).

A Amazônia Real procurou a PM para questionar sobre a operação que resultou nas prisões, e, por meio de nota, a corporação disse ter sido acionada após um grupo de indígenas entrar em uma propriedade privada com o objetivo de impedir a construção do condomínio. A instituição alegou ainda que havia denúncias de que estavam agressivos e portando facas, facões e armas de fogo. “Também a referida denúncia foi para atendimento de lesão corporal, furto e ameaça, tendo em vista que o grupo ameaçou com a referida arma de fogo e lesionou um homem que é caseiro da chácara ao lado do local”, diz a corporação.

De acordo com o que foi registrado no boletim de ocorrência, ao chegarem ao local os policiais “foram recebidos com ameaças” e o grupo de indígenas não quis falar com eles. Segundo a PM, essa situação motivou a convocação do Batalhão de Choque da corporação, que se deslocou de Campo Grande (MS) até Dourados.

A reportagem tentou ouvir representantes dos indígenas sobre o protesto e as prisões, mas eles sentem medo de sofrerem outras violências devido ao histórico de uso desproporcional de força contra suas manifestações.

A empreiteira Corpal Incorporadora e Construtora afirma que a área onde pretende construir o condomínio é fruto de uma parceria com os proprietários do local. Relata, por meio de sua assessoria, que o projeto ainda é “embrionário”, não tem nome e nem campanha de vendas.

No entanto, ainda que a empresa afirme ter paralisado a obra assim que recebeu um pedido de informações do MPF sobre o loteamento, um muro de concreto estava sendo erguido no local e foi isso que levou os indígenas a protestar, pois eles se sentiram ameaçados pelo empreendimento.

Por meio de nota, a empresa afirma que prestou os esclarecimentos solicitados pelo MPF e tem as autorizações e licenças exigidas pelos órgãos responsáveis para tocar a obra. Destaca também que “mantém contato permanente e diálogo aberto com representantes das comunidades indígenas residentes nas áreas vizinhas ao empreendimento.” E afirma que tem o compromisso de gerir um negócio que “promova o bem-estar da população e contribua para o crescimento sustentável das cidades”. A empreiteira nega qualquer relação com o incêndio na casa no tekoha Aratikuty.

A empresa possui 30 empreendimentos já lançados, outros 30 em desenvolvimento e cerca de 10 mil clientes em seis Estados do Brasil. A Reserva de Dourados fica a apenas cinco quilômetros da área urbana. Também ficam próximas as áreas reivindicadas pelos Guarani Kaiowá, como os tekohas Yvu Vera e Aratikuty.

·         Insuficiência de espaço

A defensora regional de Direitos Humanos no Mato Grosso do Sul, Daniele Osório, explica que a Reserva Indígena de Dourados possui uma das maiores concentrações de indígenas do País e, por causa da insuficiência de espaço territorial e dos conflitos internos, a comunidade busca a retomada de suas terras tradicionais nas redondezas, ocasionando desentendimentos com proprietários rurais e, nos últimos tempos, com empreiteiros.

Para ela, não existem os requisitos (neste caso) para prisão preventiva dos indígenas. “Essa é uma medida extrema, que só deve ser decretada quando existem motivos que a justifiquem”, afirma.

Segundo a defensora, os indígenas ainda não foram sequer denunciados oficialmente pelos supostos crimes atribuídos a eles. Além disso, nem o MPF, responsável pela acusação nas ações penais, nem o delegado que registrou as prisões em flagrante solicitaram as prisões preventivas.

“Entendemos que o juiz não poderia, sem haver pedido dessas duas partes do processo, ter decretado a prisão de ofício”, avalia a defensora. “Eles não foram denunciados ainda, existe apenas uma análise preliminar. A autoridade policial apontou crimes que talvez não se concretizem numa ação penal.”

Além das prisões, o incêndio na casa da família indígena aumenta o clima de tensão e medo na região. O coordenador do Cimi Regional Mato Grosso do Sul, Matias Benno Rempel, afirma que alguns ataques a indígenas são possíveis de identificar, como em casos de envolvimento de fazendeiros e até do Estado. Em outros casos, essa identificação é mais difícil.

·         Atentados contra os indígenas

Levantamento do Cimi aponta alto número de atentados contra os Guarani Kaiowá, principalmente no período entre 2015 e 2016, quando foram registradas ao menos quatro ocorrências violentas por mês. Em 2015 foi assassinado o líder Guarani Kaiowá Simeão Vilhalva, no tekoha Nhenderú Marangatu, em Antônio João (MS), a 130 km de Dourados. Em 2016, uma ação paramilitar realizada por fazendeiros na região de Caarapó (MS) resultou no assassinato do jovem Clodieldo de Souza Guarani-Kaiowá, aos 26 anos. No atentado, mais seis pessoas foram feridas à bala, inclusive uma criança de 12 anos baleada no abdômen.

Em 2021, o indígena Guarani Kaiowá Vitorino Franco, de 37 anos, foi espancado por jagunços. “Eles já chegaram batendo e xingando, chamando de vagabundo, que só queremos roubar a terra deles e que a gente tinha que morrer”, narrou. Ele levou uma “bicuda na barriga” e pancadas com a arma na cabeça. Foram tantos golpes que o indígena desmaiou e só acordou no dia seguinte, jogado na vala de uma rodovia.

Em 2022, no auge da política antiindigenista do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), no mês de junho, o indígena Guarani Kaiowá Vítor Fernandes, de 42 anos, foi assassinado por policiais militares no tekoha Guapoy Mirim Tujury, em Amambai (MS). E em julho, a liderança Guarani Kaiowá Leila Rocha, de 61 anos, foi ameaçada de morte ao se opor aos arrendamentos ilegais que têm ocorrido na retomada da Tekoha Yvy Katu, em Japorã (MS). “Eu caio morta aqui, mas não saio, não arredo o pé da terra de meus ancestrais e vocês não vão tocar os seus dedos sujos no meu território”, afirmou em resposta aos arrendatários.

O indigenista Matias Benno Rempel, do Cimi, explica que o conflito em questão é secular e remonta ao período entre 1910 e 1940, quando os indígenas foram removidos do território originário, visados para a agropecuária, e levados para a Reserva de Dourados. Desde então, nunca houve paz ou concordância com essa medida e a insatisfação perdura até os dias de hoje. A insatisfação é expressa inclusive através do alto índice de suicídios na região. “Eles seguem resistindo de diversas formas nessa luta desigual, é muito complicado”, lamenta Matias.

Os indígenas em Dourados vivem cercados por um entorno racista, tanto na reserva como em áreas de retomada. Além da violência explícita, eles encontram dificuldades para conseguir trabalho e enfrentam a insegurança alimentar. Lutam para sobreviver.

 

Fonte: Mongabay/Amazônia Real

 

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