sexta-feira, 28 de abril de 2023

Povo de santo se despediu de Mãe Olga, matriarca do Terreiro Bate Folha

Como medir a força de uma mulher que dedicou quase todos os seus 98 anos de vida a uma religião? Olga Conceição Cruz, a Mãe Olga do Terreiro Bate Folha, deixou o plano terrestre, mas seus ensinamentos continuarão presentes no povo de santo que tanto aprendeu com a matriarca mais antiga da casa de tradição banto (congo-angola), onde ela exercia o alto posto de mameto ria inquice, o equivalente à ialorixá das casas ketu/nagô. As lições de Dona Miúda, como era conhecida, talvez sejam o maior legado da sacerdotisa que destinou 74 anos ao candomblé. Na tarde desta quarta-feira (26), dezenas de pessoas acompanharam o sepultamento da líder religiosa, no cemitério Jardim da Saudade, em Brotas.

Com vestes brancas, filhos e filhas de santo se despediram de Mãe Olga ao som de cantigas que simbolizam a transição da vida para a morte e reverenciam a matriarca. O clima foi de muita emoção e gratidão à Nengua Guanguancesse, seu nome de iniciação na religião. No Terreiro Bate Folha, na Mata Escura, ainda será realizado o Mukondo - como é chamado o ritual fúnebre da nação congo-angola. Mãe Olga estava internada no Hospital São Rafael, mas a causa da morte não foi divulgada.

 “Durante 98 anos  e 74 de iniciada, ela viveu, morou e cuidou do  Bate Folha. Desde que Mãe Olga  foi iniciada, se tornou essa guardiã da vinculação que temos com o continente africano, nossa história que foi durante muitos anos negada”, afirma Carla Nogueira, 40, que é makota [espécie de guardiã dos inquices, os deuses] no terreiro e defendeu a tese de doutorado  ‘Fé, boca calada e pé ligeiro - Nengua Guanguacesse e  o Terreiro Bate Folha: Patrimônio e Memórias da Religiosidade Negroafricana na Bahia’, em 2023, sobre a importância de Dona Miúda para a história do Bate-Folha, uma casa fundada há mais de 100 anos, justamente em 1916.

Para quem teve a oportunidade de conviver com Mãe Olga, as lembranças que ficam são as de uma paciência infinita e a grande atenção com que a líder religiosa atendia a todos. Vadinho França, além de tata do terreiro, é casado com a sobrinha da mameto Olga  e relembra alguns dos momentos de maior proximidade com a líder espiritual:

“Ela era uma mestra. Acalentava, acalmava e informava. O grande mérito dela era a paciência, ter uma maneira única de conviver com todos os seus filhos. Consegui usufruir do seu legado e tenho certeza que vamos dar continuação aos seus ensinamentos”, diz Vadinho.

•        Liderança atuante

Até poucos anos atrás, Mãe Olga se mantinha atuante na liderança dos rituais que aconteciam dentro do terreiro. A pandemia, no entanto, fez com que ela se afastasse de algumas atividades, mas a preocupação com o espaço onde cresceu nunca foi deixada de lado.

“Nos últimos momentos de vida, ela nos fez prometer que não deixaríamos o Bate Folha acabar porque é um legado dos nossos ancestrais. Mãe conduzia tudo no terreiro, as vestimentas, as obrigações, os alimentos e as cantigas”, relata Carla Nogueira.

Durante os trabalhos mais recentes, Mãe Olga preferia não participar. Era uma forma de preparar os filhos de santo para quando ela não estivesse mais viva. Mas, quando era perguntada sobre a possibilidade de deixar o Bate Folha, a resposta era direta: “Se eu sair, eu morro”.

Olinda Lopes Sacramento, 85, iniciada no candomblé aos 15, conheceu Mãe Olga ainda criança. Emocionada pela perda da amiga,  recorda a importância da líder para a localidade da Mata Escura. “Ela era uma mulher muito acolhedora, que teve um trabalho muito importante na comunidade criando as crianças. Sempre pediu para que nós déssemos continuidade aos seus trabalhos”.

Os vizinhos, sobretudo os mais velhos, elegeram ‘dona Olga’ como “figura importante” para o bairro, por sua  “militância e cuidados em prol do outro”, acrescenta dona Olinda Sacramento.

Mãe Olga  tinha uma capilaridade que ultrapassava os limites do Terreiro Bate Folha e penetrava nos mais diversos setores sociais de Salvador. A matriarca foi responsável por manter uma economia solidária e permitir que a comunidade utilizasse os 15 hectares de Mata Atlântica que compõem a área do terreiro para vender folhas e frutos.

Até quem não é iniciado no candomblé reconhece a sua importância. Moradora de Simões Filho, Lucidalva Souza, 43, fez questão de prestar as últimas homenagens à matriarca durante o sepultamento. “Ela cumpriu sua missão na terra com o coração acolhedor que fez bem a tantas pessoas”, conta.

Quase tudo que leva o nome de ‘história’ em Mata Escura tem a presença de Olga Conceição Cruz. Sempre de branco, ela chegou criança à região, onde se alinhavou às vidas dos moradores. A mãe de santo salvou inocentes da prisão e interveio por desabrigados por acreditar que os vulneráveis são “quem mais precisam de ajuda”. Segundo seus muitos filhos e filhas de santo, a sacerdotisa acreditava nos seres humanos. Afinal, ‘nengua’ é a dominação em Kimbundu (uma língua africana, de Angola) que significa “mãe”,  no sentido de acolhimento e reverência.

•        Mãe olga conheceu o terreiro aos 4 anos

A relação da matriarca Olga Conceição Cruz  com o terreiro  Bate Folha começou muito cedo, quanto ela contava apenas 4 anos de idade. Na época, o espaço era dirigido pelo seu  fundador, o  tata de inquice  Manoel Bernardino da Paixão. Inquice é a denominação das divindades de nação congo-angola,  como os orixás são os deuses da nação ketu-nagô.

Olga, pequenina,  foi levada pela sua avó, que acreditava que conseguiria a cura para uma doença da neta naquele espaço de culto aos ancestrais. A menina não foi iniciada na ocasião  porque o líder religioso não gostava de submeter crianças aos rituais de iniciação e por isso, preferiu esperar o tempo cumprir sua jornada.

Só aos 24 anos, com Manoel já falecido, Olga Conceição Cruz  foi iniciada na casa. Ao nome de batismo, sobrepôs-se o nome  religioso Guanguancesse. O tempo de dedicação à religião de matriz africana e o acúmulo de experiências ao longo dos anos como zeladora dos inquices  lhe renderam a posição de ‘Nengua’ (mãe, em kimbundo). E, por falar em maternidade ancestral, Olga era filha da inquice  Kuketo, a dona das águas salgadas.

Não há quem negue que a passagem de Mãe Olga para o outro lado  deixa um certo desalento para os filhos e filhas que seguiram por décadas seus ensinamentos. Nengua Guanguancese era símbolo da continuidade dos ritos de religiosidade negroafricana para o povo de santo. “Nós temos a continuidade do legado dela com outras mulheres mais velhas, que seguem o caminho trilhada por Mãe Olga, que foi nossa grande matriaca”, afirma a makota  Carla Nogueira.

Após sete anos de pesquisa, Carla Nogueira defendeu a tese de doutorado sobre o terreiro  em janeiro deste ano. O trabalho foi  fruto da admiração e da vontade de manter o legado da casa e de Mãe Olga para as gerações  mais jovens do terreiro.

Carla e a mameto ria inquice Olga se conheceram quando a primeira era um bebê indesejado na barriga da mãe e a segunda, já havia adquirido o status de Nengua Guaguansese do Bate Folha. Foi a sacerdotisa quem fez a avó de Carla aceitar a gravidez da filha. “Nunca tinha pensado por esse lado, mas foi a primeira vez que ela colocou a mão sobre mim”, diz Carla, dando o sentido de interceder ao  ‘colocar a mão’, como se diz no ritual de iniciação.

•        Mais de um século de histórias e devoção

O terreiro Bate Folha foi fundado em 1916 por Manoel Bernardino da Paixão como resultado da fusão das tradições vindas de Angola e do Congo, países do continente africano. Até hoje, a casa ocupa uma ampla área de Mata Atlântica, que segue preservada pelos filhos e filhas de santo. As divindades chamadas inquices são as cultuadas dentro do terreiro e são similares aos orixás de origem ketu-iorubá.

No imaginário baiano, Mãe Olga e sua casa foram eternizadas na canção Toté de Maiangá, do compositor Gerônimo. “Vinha passando pela Mata Escura / No Bate Folha, ouvi uma canção / Que é pro santo poder sair da aldeia / Para chamar o orixá dessa nação”, diz a letra imortalizada na voz de Margareth Menezes.

O documentário Bate Folha 100 anos, gravado em 2016 pela Agência Experimental da Universidade Federal da Bahia, conta a história do terreiro. Entre os entrevistados está Mãe Olga, que conta como foi  sua ligação com o espaço que lhe serviu de casa  toda a vida.

 

Fonte: Correio da Bahia

 

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