Plano de
deportação em massa de Trump é viável?
A dura mensagem anti-imigração
de Trump durante
sua campanha eleitoral está tomando forma antes de sua posse. O presidente republicano
eleito se cercou de uma equipe dura de "falcões" para lidar tanto com
aqueles que querem entrar no país quanto com os milhões de imigrantes sem
documentos que já residem nele, sobre os quais paira a ameaça de deportações em massa.
A primeira nomeação foi a
de Tom Homan, o "czar da fronteira", conhecido e criticado pela política que levou à separação de famílias
que buscavam asilo na fronteira durante o primeiro mandato de Trump, quando imagens de crianças em gaiolas chocaram
o mundo.
A preocupação está se
espalhando entre os 11 milhões de migrantes sem documentos que residem no país.
"A abordagem é causar medo nas comunidades para que, direta ou
indiretamente, elas comecem a duvidar se podem continuar nos Estados
Unidos", disse Ariel Ruiz Soto, analista sênior do Instituto de Política
de Migração, com sede em Washington.
Muitos deles já estão se
organizando para possíveis ações de deportação em massa. "Houve uma grande
preparação para tentar lidar com essas políticas. Há grupos de advogados que
tentarão intervir para impedi-las, há até mesmo grupos cívicos em diferentes
bairros aqui em Chicago que já estão se preparando, por exemplo, se houver uma
batida, para espalhar a notícia entre os vizinhos e alertar os advogados para
que eles possam intervir", conta René D. Flores, professor de sociologia
da Universidade de Chicago e especialista em migração.
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Tarefa complexa e cara
Os 11 milhões de imigrantes
sem documentos são um grupo heterogêneo: alguns estão ilegais há anos, enquanto
outros chegaram recentemente. Muitos vivem em famílias com status imigratório
misto, onde o pai está sem documentos, a mãe tem residência permanente e os
filhos nascidos nos EUA já são cidadãos.
Um relatório recente do
Conselho Americano de Imigração estimou o custo da deportação de todos os
indocumentados em 88 bilhões de dólares por ano. O mesmo estudo lembra que, na
história recente da imigração nos EUA, não houve um ano em que mais de meio
milhão de imigrantes foram deportados. É realmente possível deportar milhões de
pessoas na próxima legislatura?
A infraestrutura atual não é
propícia para tais planos. "Durante o mandato de Obama e durante o mandato
anterior de Trump, o número de centros de detenção nos EUA não cresceu, os
leitos de detenção não passam de 50 mil em todo o país. É preciso imaginar o
tipo de logística necessária para deter as pessoas e cuidar da papelada que
precisa ser feita para poder deportá-las. Não existe infraestrutura para chegar
à escala de deportar milhões de pessoas em um ano", explica Ruiz Soto.
Além disso, há migrantes que
vêm de países que não têm acordos de deportação com os Estados Unidos, como Cuba, Venezuela ou Nicarágua, o que complica ainda mais a
situação.
Tanto o Senado quanto a
Câmara dos Deputados estarão nas mãos dos republicanos. Isso tornará mais fácil
aprovar a ampliação de recursos para expandir o número de expulsões do país,
mas será um processo longo. "Não existe um interruptor que possa ser
ligado ou desligado no dia em que Trump chegar à Casa Branca. É muito possível
que haja mais deportações neste segundo mandato de Trump do que no primeiro,
mas isso levará tempo e não chegará ao número de milhões", continua Ruiz
Soto.
"O próprio Tom Homan,
que seria o responsável pelas operações de deportação, disse várias vezes que
eles não conseguirão fazer tudo desde o primeiro dia, e ele se concentrou nas
pessoas que têm algum tipo de histórico criminal ou migrantes que têm um caso
de asilo rejeitado ou uma ordem de deportação, pessoas cujas informações eles
já têm no sistema. Mas, mesmo com elas, será difícil fazer isso em grande
escala", enfatiza o especialista.
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Trabalhando com as autoridades federais de
imigração
O professor René D. Flores
explica a dificuldade de encontrar e deter imigrantes sem documentos:
"Eles estão localizados em todos os Estados Unidos, não é apenas em uma
área específica". No país, existem as chamadas cidades-santuário, como Nova York ou Los Angeles, cujas leis locais dificultem a vida das
autoridades federais de deportação não fornecendo, por exemplo, informações
sobre os imigrantes.
A equipe de Trump declarou
guerra a elas e Homan, o "czar da fronteira", já disse que quer
acabar com essa prerrogativa dessas cidades, chegando ao ponto de ameaçá-las
com o congelamento de fundos federais.
Por outro lado, alguns
estados, como Utah, Oklahoma e Texas, disseram que serão proativos na
colaboração com as agências federais de migração, enquanto outros, como Nova
York, Washington, Califórnia, anunciaram que não facilitarão seu trabalho. Mas
mesmo que eles possam colocar obstáculos no caminho, "nada impede que um
agente de imigração venha a Los Angeles ou à cidade de Nova York para expulsar
migrantes, porque a autoridade para deportar é federal", enfatiza Ruiz
Soto.
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As consequências de uma deportação em massa
A economia sofreria com os
efeitos de uma expulsão em massa de imigrantes sem documentos. Muitos deles
trabalham em setores como construção, manufatura, agricultura ou assistência
médica. Estão há anos, até mesmo décadas, em suas funções. "Eles obtêm
documentos para trabalhar comprando os números de seguro nacional de outras
pessoas. Dessa forma, eles contribuem para o erário público, mas não recebem
benefícios. É toda uma economia subterrânea. Eles também trabalham informalmente",
explica Flores.
A população nativa dos EUA
pode ser afetada se eles estiverem ausentes, pois, sem trabalhadores, diversos
produtos e serviços se tornariam mais caros: "Isso pode desencadear uma
reação em cadeia, afetando vários setores da economia, que pode desacelerar.
Quando as pessoas perceberem os aspectos negativos, elas questionarão esses
tipos de políticas e tentarão freá-las", diz Flores.
Os setores industriais serão
os primeiros interessados em ter mão de obra disponível. "Pelo que vimos,
quando ocorrem esses tipos de deportações, os empregadores começam a
interromper as operações em grande escala. No partido republicano, os eleitores
não têm esse tipo de impacto em mente, porque esses setores não são visíveis
para muitos deles, embora consumam o que sai deles", diz Ruiz Soto.
¨
Porque Donald Trump venceu? Por Eleutério F. S.
Prado
Os partidários norte-americanos da democracia liberal,
com boa dose de angústia, têm se defrontado com essa pergunta. Se Donald Trump
se afigura para eles como populista, autoritário, mentiroso e até mesmo como
neofascista, como pode ele ter ganho a eleição presidencial nos Estados Unidos,
um suposto bastião da democracia liberal num mundo propenso a acolher
ditaduras?
Veja-se o que dizem dois economistas famosos, ganhadores
do Prêmio Risk Bank (usualmente chamado de Prêmio Nobel de Economia), dado
anualmente para os profissionais dessa área que propugnam pela continuidade do
capitalismo.
Eis a explicação dada por Daron Acemoglu: “Em uma
pesquisa Gallup de janeiro de 2024, apenas 28% dos americanos (um recorde de
baixa) disseram-se satisfeitos com “a maneira como a democracia dos EUA estava
funcionando”. Ora, a democracia americana há muito promete quatro coisas:
prosperidade compartilhada, voz para a cidadania, governança orientada por
especialistas e serviços públicos eficazes. Mas a democracia dos EUA – como,
aliás, a democracia em outros países ricos (e até de renda média) – tem falhado
no atendimento dessas aspirações.
Porém, nem sempre foi assim. Durante três décadas após
a Segunda Guerra Mundial, a democracia entregou tais bens, especialmente a
prosperidade compartilhada. Os salários reais (ajustados pela inflação)
aumentaram rapidamente para todos os grupos demográficos e, assim, a
desigualdade diminuiu. Mas essa tendência chegou ao fim em algum momento no
final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Desde então, a desigualdade
disparou; ademais, os salários reais dos trabalhadores sem diploma
universitário mal aumentaram. Em consequência, cerca de metade da força de trabalho
americana viu a renda da outra metade aumentar”.
Eis agora a explicação dada por Joseph Stiglitz: “À
medida que o choque da vitória de Donald Trump se instalou, especialistas e
políticos passaram a refletir sobre o que isso significa para o futuro dos
Estados Unidos e para a política global. Entender por que uma figura tão
divisiva e desqualificada venceu novamente é crucial para os democratas. Eles
foram muito para a esquerda e perderam os americanos moderados que constituem a
maioria? Ou o neoliberalismo centrista – perseguido por presidentes democratas
desde Bill Clinton – falhou em entregar o que prometia, criando assim uma
demanda por mudança?
Para mim, a resposta é clara: 40 anos de neoliberalismo
deixaram os EUA com desigualdade sem precedentes, estagnação na parte
intermediária do espectro de renda (algo ainda pior para aqueles abaixo) e
declínio da expectativa de vida média (destacada pelo aumento de “mortes por
desespero”). O sonho americano está morrendo; embora o presidente Joe Biden e a
vice-presidente Kamala Harris tenham se distanciado do neoliberalismo com sua
adoção de políticas industriais, como representantes do establishment
dominante, eles permaneceram associados ao seu legado”.
A conclusão que
se segue dessas declarações é bem clara: para ambos, a vitória de Trump ocorreu
porque as condições necessárias para a existência e continuidade da democracia
liberal foram minadas nos Estados Unidos à medida que passaram a prevalecer aí
as instituições e as políticas econômicas do neoliberalismo.
As duas explicações, situadas ainda – e com méritos –
no campo da economia política não estão erradas, mas falham, em primeiro lugar,
por não apresentarem a razão estrutural do advento do neoliberalismo. E essa
descoberta apenas pode ser feita mediante um avanço no campo da crítica da
economia politica. Sem esse movimento crítico que vai do funcionamento aparente
do sistema às suas leis de tendência e contratendência parece que a adesão das
forças políticas ao neoliberalismo provém de atos deliberativos autônomos que
podem ser revogados a qualquer momento por outros atos deliberativos igualmente
autônomos.
Como bem se sabe, essa ideologia, normatividade e
prática política veio à tona no final dos anos 1970 e se difundiu a partir daí
– avassaladoramente – como uma resposta complexa à crise de lucratividade
iniciada já no final dos anos 1960, que atingiu não apenas a economia
norte-americana, mas a economia mundial como um todo.
A figura em sequência mostra bem que as taxas médias de
lucro nos EUA cairam por mais de um década (de 1968 a 1981) por efeito da
redução da relação produto capital (aumento implícito da composição orgânica do
capital), assim como da dificuldade de elevar a relação lucro/capital (ou seja,
aumentar a taxa de exploração) em virtude do poder dos sindicatos, que então se
mostrava bem forte.
Ela mostra também como a política neoliberal, que
enfraqueceu o poder dos trabalhadores de várias formas, deu bons resultados
para o capital, na década seguinte (de 1981 a 1987). Sem atingir o patamar
anterior, a taxa de lucro se recuperou e, com ela, os investimentos que
impulsionam a acumulação de capital.
Como se sabe, o neoliberalismo foi bem-sucedido em
conter a elevação do salário real da classe trabalhadora nos EUA e nos outros
países em geral, ou seja, em mantê-lo abaixo dos ganhos de produtividade, tal
como mostra a figura em sequência. Contudo, essa estatística descritiva é
insuficiente para avaliar as perdas dessa classe.
Pois, como se sabe, a partir de 1980, ela perdeu
proteção sindical e governamental, acesso a empregos de longa duração,
qualidade de vida e até mesmo, para boa parte dela, aquele orgulho identitário
de ser bem-sucedido na sociedade nucleada na relação de capital. Mas isso ainda
não é tudo. Com o neoliberalismo, os trabalhadores perderam em parte a
identificação de classe, pois são instados ou mesmo forçados pelas
circunstâncias a se verem como auto-empresários.
Ademais, como já se insinuou, as explicações de
Acemoglu e Stiglitz acima apresentadas se dão sob a suposição de que o
indivíduo social atua como homo
oeconomicus tanto como trabalhador na esfera econômica quanto
como eleitor na esfera política. Ao tomarem, assim, esse “puppet” do sistema como sujeito, ademais
intemporal –, eles não conseguem apreender o que passa a ocorrer com a
subjetividade dos trabalhadores sob os constrangimentos da normatividade
neoliberal. Ora, para esclarecer esse ponto – diferencial importante na
explicação do resultado da recente eleição presidendial nos EUA – é preciso
agora recorrer à psicanálise como crítica social.
A economia política e, sobretudo, a economia vulgar,
constroem a abstração homo oeconomicus a
partir da aparência do sistema sistema mercantil generalizado apenas para
explicar o seu funcionamento. É assim porque aqueles que atuam de fato como
personificações das mercadorias em geral e, em particular, da mercadoria “força
de trabalho” (ou seja, os trabalhadores), se comportam e têm de se comportar
como indivíduos auto-interessados.
“O homem é” – diz Stuart Mill pondo um fundamento primeiro
– “um ser determinado, pela necessidade de sua natureza, a preferir uma maior
porção de riqueza ao invés de uma menor em todos os casos”. Contudo, a
personificação, que assim aparece, é também a base da identidade da classe
trabalhadora – classe essa, no entanto, que só existe in fieri. É apenas lutando que essa classe
se constitui em ato, como tal. Ora, é essa potência que o neoliberalismo
combate individualizando o trabalhador.
Se essa economia política apreende os atores econômico
como sujeitos, a crítica da economia política mostra que eles são sujeitos
assujeitados à lógica compulsiva e infinita da acumulação de capital. A
psicanálise desde Freud, por sua vez, mostra esse “sujeito”, assim construído
desde o berço e na família, como um ser contraditório, em cuja psique lutam
entre si e se combinam as pulsões amorosas/solidárias e as pulsões
agressivas/individualistas.
Ora, essas últimas ganham proeminência na vida
econômica desses “sujeitos” porque eles aí labutam num “sistema” – como diz
Tone Tomšič – “que pode ser descrito como uma socialidade anti-social
organizada”.
Ora, esse sistema, fundado que está na acumulação sem
limite de capital, apesar de requerer cooperação na esfera da produção, promove
de maneira intensa e extensa a competição, acentuadamente na esfera da
circulação mercantil. Ora, como esse “sujeito” se defronta com forças que não
controla e até mesmo desconhece, ele está permanentemente numa posição de pouca
potência ou até mesmo numa condição precária.
Em consequência, a psique de muitos, aqueles
assalariados ou por conta própria que não ousam lutar contra o sistema,
encontra-se muitas vezes embargada pelo ressentimento. Eis que
“covardemente” submetem o seu desejo à lógica do sistema, mas querem cobrar
algo por essa submissão; mantêm, por isso, sentimentos de rancor, hostilidade,
vingança, ciume, inveja em relação a outros escolhidos como culpados.
Se Friedrich Nietzsche bem notou que esse afeto
predomina na sociedade moderna, ele não o associou ao capitalismo. Ao
contrário, considerou que se tratava de uma reação psicológica doentia,
patológica, às condições sociais inexoráveis de uma sociedade que produz
derrotas, desigualdade, insucesso etc., ou seja, que tende a produzir muitos
perdedores. Como se sabe, ao indivíduo ressentido ele opunha o indivíduo
heroico que enfrenta o seu destino com galhardia.
Tone Tomšič mostra bem que essa crítica erra porque não
desafia o individualismo e a lógica da competição: “Ao contrário da perspectiva
de Nietzsche, o afeto em questão não é simplesmente uma reação “patológica” (…)
à desigualdade, à injúria e à injustiça. De um ponto de vista mais estrutural,
o ressentimento é uma manifestação (…) das relações econômicas de competição;
eis que expressam o funcionamento compulsivo dessas relações em indivíduos e
grupos sociais. Como o ressentimento impõe um envenenamento da diferença, ele
marca o ser social com hostilidade mútua.
Se o ser social carrega a significação de “ser-com” e
eventualmente de “ser em comum”, então o ressentimento sinaliza a subversão
antissocial do ser social em “ser-contra”, um modo de ser que corresponde ao
esforço capitalista pela “privatização” total do social e do comum, ou mais
genericamente, um esforço para expropriar os sujeitos políticos de seus corpos,
suas vidas e, finalmente, de toda estrutura que lhes forneceria condições
(materiais e imateriais) para a reprodução da vida”.
Ora, toda essa volta de argumentos, foi necessária para
encontrar a origem da segunda lacuna antes apontada nas explicações de Joseph
Stiglitz e Daron Acemoglu para o advento e a vitória do extremismo de direita
na última eleição nos EUA – assim como, em parte, para a falta de votos na
direita tradicional. Dizer que Donald Trump ganhou porque Joe Biden e os
próceres do partido democrata norte-americano abandonaram as causas que
interessam aos trabalhadores é insuficiente e, na verdade, superficial.
A razão verdadeira dessa deriva é que o neoliberalismo,
ao extremar o individualismo, ao impor competição sem tréguas aos “sujeitos”
trabalhadores, exacerba e multiplica o ressentimento. Não tanto porque não tem
cumprido o que antes prometera em termos de expansão econômica e bem-estar. Não
tanto também porque subtraiu as vozes dos trabalhadores na competição política.
Mas principalmente porque o empreendedorismo neoliberal e o ressentimento
individualista estão, assim, bem conjugados entre si. E esse último requer uma
cobertura da falta que “sujeito” sente por meio de “boas” mentiras e de
violência irracional. É daí que surge a possibilidade de ascensão da extrema
direita.
Os eleitores populares de Donald Trump são pessoas
recriminadoras que “esqueceram” que submeteram os seus desejos ao sistema da
relação de capital e que passaram a compensar a insatisfação com o próprio
desempenho medíocre nesse sistema, dirigindo um ódio seletivo a outros tomados
como culpados (imigrantes, pessoas que lutam por direitos, gente de esquerda,
certos povos estrangeiros etc.). Ao votarem num político vingador, eles obtêm
gozo, ou seja, satisfação perversa.
Donald Trump é um pequeno grande homem, “pequeno”
porque se apresenta como um homem comum tal como os seus seguidores e “grande”
porque, para além deles, parece poderoso e é capaz de esmagar de fato aqueles
que foram escolhidos para serem falsamente responsabilizados e, assim, odiados.
Nessa toada, ao invés de progresso, o capitalismo espalha agora destruvidade
brutal tal como ocorreu na Alemanha nazista e está já acontecendo de modo
proeminente no Oriente Médio, sob a agência de Israel/EUA. Foi para aprofundar
essa tendência que Donald Trump venceu.
Fonte:
DW Brasil/A Terra é Redonda
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