MARINE CALMET: “NÃO
HÁ DISTINÇÃO ENTRE DIREITOS HUMANOS E DIREITOS DA NATUREZA”
A natureza deve ser
protegida pelos direitos fundamentais, assim como os humanos, defende a
advogada em direito ambiental Marine Calmet. Nesse sentido, ela pede que
nos inspiremos nos povos indígenas.
Marine
Calmet é advogada e especialista em direitos da natureza. Ela preside a
associação Wild Legal e acaba de publicar Décoloniser le
droit (Decolonizar o direito), pela editora Wild Project.
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Eis a entrevista.
·
Você
está comprometida com o reconhecimento dos direitos da natureza. Como você
define esse movimento?
É um movimento
jurídico global que alia uma nova perspectiva em termos de ética ambiental e um
novo conceito de hierarquia jurídica. Trata-se de reconhecer que a natureza é o
conjunto de entidades que constituem uma comunidade de vida. Ela é sujeito
de direito,
mas também titular de direitos fundamentais que lhe são específicos. Trata-se,
portanto, de reconstruir uma estrutura jurídica baseada na coexistência com os
outros seres vivos e de garantir que os nossos direitos e as nossas liberdades
deixem de pressionar o mundo vivo.
·
Nossos
direitos para nós, os humanos?
Sim, pois hoje
somos os únicos seres titulares com direitos fundamentais. Além disso, demorou
muito tempo para que todos os seres humanos se beneficiassem do estatuto de
sujeito. Christopher
Stone,
um dos fundadores do movimento pelos direitos naturais, lembra que o estatuto
dos escravos negros foi durante muito tempo o de bem possuído, que no direito
romano os filhos eram propriedade do pai e que levou um tempo extremamente
longo para se reconhecer os direitos das mulheres.
·
Em Decolonizar
o direito, você recorda a grande divisão existente no direito romano entre
seres humanos e as coisas.
É a summa
divisio. Por um lado, existe a categoria das pessoas: os seres humanos, as
pessoas físicas e, o que veio muito mais tarde, as ficções jurídicas que são as
pessoas jurídicas, as empresas, as associações. E há todo o resto da vida, os
objetos, as coisas, os serviços
ecossistêmicos,
as mercadorias, os recursos cujo uso, exploração e destruição nós banalizamos.
É uma visão binária
do mundo: as pessoas ou as coisas. Ao falar de “coisas”, nós as
objetivamos e retiramos sua qualidade de sujeito. Traço um paralelo com a
colonização francesa, porque é uma negação da outra cultura. Os colonos
chegaram aos países colonizados, especialmente à Guiana Francesa, com a
ideia de que ali não havia ninguém, e se apropriaram das terras. A ligação com
os direitos da natureza é óbvia porque nós, seres humanos, negamos a existência
dos outros e, no entanto, habitamos esta terra com eles.
·
Os
direitos da natureza são o direito dos não humanos. Por exemplo, o que
significa o direito de um rio?
O reconhecimento da
personalidade jurídica dos rios, florestas ou montanhas assume formas muito
diversas. Há uma riqueza e profundidade de análise, uma adaptação do direito
que não se encontra no direito ocidental. Nos direitos da natureza,
colocamo-nos na posição subjetiva de um rio cuja história devemos conhecer.
Na Nova Zelândia, por exemplo, o rio
Whanganui tem
certos direitos que são protegidos pelo povo Maori. Na Colômbia,
o rio Atrato foi
reconhecido como sujeito de direito, detentor de direitos diversos e defendido
de forma diferente por outras culturas.
Um rio é uma
comunidade de vida. Ele é feito de água, mas também de margens, de mata ciliar
e de uma grande quantidade de seres que com ele e dentro dele convivem. Esta
comunidade de vida é uma pessoa moral, jurídica, um agrupamento de seres. E tem
direito à existência, à saúde, à regeneração dos seus ciclos de vida. Da mesma
forma pensamos numa empresa formada não por uma única pessoa mas como um grupo
de pessoas que atuam num interesse comum, partilhando dívidas, vantagens,
lucros e perdas. A mesma coisa acontece com a natureza. Compartilhamos perdas e
benefícios, mas sem o perceber, porque essa interdependência com a vida foi
invisibilizada. No entanto, ela existe.
Esta sociedade que
formamos com os seres vivos deve agora ter personalidade própria e beneficiar a
proteção dos direitos fundamentais. O movimento pelos direitos da natureza não
faz distinção entre direitos humanos e direitos da natureza.
·
Como
é que certos usos de um rio, como a extração de ouro para fazer joias, são
menos legítimos do que aqueles usados pelas comunidades que vivem diretamente
do rio?
No Equador, o
primeiro país a reconhecer oficialmente os direitos
da natureza na
sua Constituição em 2008, o juiz avalia as atividades no tocante à
legitimidade. Ela é definida como aquilo que é fundamentalmente útil ao ser
humano para a sua sobrevivência, para a cobertura das suas necessidades
essenciais, especialmente alimentares, e que compete com os direitos da
comunidade. Pode de fato haver uma violação dos direitos da natureza, mas por
um interesse legítimo. É uma história de compromisso.
Por outro lado,
quando se trata de uma necessidade não essencial, não vital, puramente
especulativa, que resulta na destruição desordenada da natureza, o juiz diz que
há incompatibilidade constitucional.
Os juízes têm assim
a capacidade de avaliar a legitimidade da intrusão nos direitos de uma
comunidade viva por necessidades que são muitas vezes interesses corporativistas,
capitalistas, industrializados e que, diante das necessidades específicas das
comunidades locais, não têm legitimidade. Para cada caso, busca-se um modelo de
governança mais próximo da história das necessidades de identidade local.
·
Não
há uma contradição entre a abordagem do antropólogo Philippe Descola, para quem
a natureza é uma invenção da modernidade ocidental do século XVII, e a sua, que
insiste no conceito de natureza ao qual devemos dar um direito?
O movimento pelos
direitos da natureza é extremamente diversificado. Tanto é que há muitos
territórios onde as iniciativas daquilo que chamamos de “movimento pelos
direitos da natureza” não têm este nome. No Equador falamos dos direitos da Mãe
Terra,
da Pachamama. Isto incorpora
algo radicalmente diferente, tanto do ponto de vista da cultura ocidental, mas
também do ponto de vista da cosmovisão.
Na Índia, por
exemplo, Vandana
Shiva usa
o termo “Mother Earth” (Mãe Terra) e fala de famílias de vida e comunidades de
vida. Este pensamento permeia o movimento pelos direitos da natureza.
Na Europa, optamos por continuar a usar o termo “natureza” porque não
temos um quadro de referência que nos leve a resolver a questão da “natureza” versus
“cultura” usando outra palavra.
·
Poderia Gaia ser esse
quadro de referência, como sugere o sociólogo Bruno
Latour?
Talvez seja uma
questão geracional, mas não uso muito o termo. Por outro lado, gosto muito do
pensamento de Glenn
Albrecht [um
filósofo ambiental] e da sua teoria segundo a qual devemos inventar novas
palavras. Na ausência de uma palavra, usamos “natureza” no movimento pelos
direitos da natureza.
Como juristas, nos
perguntamos qual será a estratégia. Os direitos da natureza tiveram dois
caminhos estratégicos: o reconhecimento global, como os direitos da Mãe
Terra, da Pachamama no Equador, ou a representação e o
reconhecimento local, como os direitos de Whanganui, do rio
Yamuna e
do glaciar
Gangotri na Índia.
Na França, a questão é se a natureza será reconhecida como sujeito
jurídico com direitos fundamentais na Constituição. Ou isso será feito em
etapas? Neste momento, no nosso país, o movimento se materializa através do
reconhecimento dos direitos de certas florestas e de certos rios. Existem
coletivos em Durance, em Garonne e no Sena.
Estrategicamente,
provavelmente começará por estas tentativas locais. A ideia não é separar os
humanos do seu ambiente ou separar os humanos da natureza, mas pensar os
ambientes. Isto é o que a maioria dos ativistas e militantes no terreno fazem,
eles pensam a partir do seu ambiente.
·
Entre
os povos indígenas, muitas vezes existem xamãs que são intermediários entre a
comunidade dos humanos e a de outros seres vivos. Os nossos xamãs são os
cientistas, aqueles que, apoiando-se num método, expressam de maneira ocidental
as necessidades da natureza e nos permitem compreender o funcionamento, as
interações dos ecossistemas e das entidades que nos cercam. Exceto que nós não
ouvimos nossos xamãs…
Não, de jeito
nenhum. Enfim, algumas pessoas não querem ouvi-los. Porque muitas pessoas
precisam da ciência e são alertadas pelos fatos científicos. Mas os nossos
governantes não os aplicam como deveriam. O lugar dos xamãs em uma aldeia
tradicional indígena é muito importante, pois eles aproximam os humanos dos
outros humanos, sejam as gerações passadas, os mortos, as gerações futuras, mas
também os humanos e os não humanos.
Na nossa sociedade,
os cientistas alertam e tentam fazer a ligação entre o que observam, o que
calculam, como as mudanças no nosso clima, o colapso da biodiversidade, e nós.
Contudo, os alertas dos cientistas não são ouvidos e os políticos escolhem um
cenário de desastre. Há uma real urgência em rever o nosso modelo jurídico.
Porque as ações que são criminosas para o nosso futuro são perfeitamente legais
hoje. Nós não temos as ferramentas legais para enfrentar esta situação.
·
Não
estamos desamparados diante deste poder destrutivo de pessoas que nada ouvem e
não ouvem os cientistas?
Na verdade, estamos
perdendo uma batalha. Também porque há um questionamento dos nossos modelos
democráticos, um aumento dos extremos, uma banalização da violência e há cada
vez mais fenômenos políticos que vão contra os nossos interesses humanos e a
proteção dos seres vivos. É porque a batalha política está perdida que acredito
no movimento pelos direitos da natureza. Em vez de quererem dar uma resposta
global, as iniciativas locais mostrarão novos caminhos e construirão
alternativas. Inspiro-me muito em Vandana
Shiva que
diz que quanto mais pensamos em escala global, mais perdemos a nossa capacidade
de ação.
·
No
plano jurídico, que mudanças devem ser feitas?
O direito atual
projeta um modelo no qual é possível destruir continuamente. Devemos procurar
conceber um modelo em que matar, destruir e pilhar já não seja mais tolerável,
em que a existência seja protegida e garantida. Deixar um legado às gerações
futuras é o alfa e o ômega. Não só sabemos como fazê-lo juridicamente, uma vez
que já foi feito por gerações de povos indígenas, e, além disso, é a nossa
única ferramenta concebível para proteger os nossos direitos fundamentais. Não
se trata de pensar num retorno a outros direitos que seriam totalmente
diferentes dos nossos, mas de inspirar-se nos direitos dos povos indígenas para
fazer uma transição radical a serviço daquilo que chamamos de “transição
ecológica”.
Fonte: Entrevista
para Hervé
Kempf,
no Reporterre. Tradução do Cepat, para IHU
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