terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Ana Penido: O militar no melhor dos dois mundos

Peço desculpas por interromper a cantora Simone e seu hit “Então é Natal”, mas desde que o vídeo da Marinha veio à público, só consigo pensar na banda Van Halen e no clássico Best of Both Worlds, lançado dias antes do meu nascimento. A música provoca uma reflexão sobre o equilíbrio entre diferentes aspectos da vida, entre o mundo material e o espiritual; a busca pela felicidade terrena e celestial; o melhor dos dois mundos, uma existência plena. Combina com esse momento de balanços de final de ano. 

No vídeo institucional da Marinha do Brasil, dois mundos são retratados: o de trabalho duro, com grande exigência física, e o do lazer e autocuidado, contendo momentos de descanso e festividades. Entretanto, na peça publicitária, os dois mundos não são apresentados como complementares, mas antagônicos. O esforço hercúleo é associado ao mundo militar, e a festa, ao mundo civil. Na dicotomia, o militar não tem momentos de lazer; e o civil, festeiro e preguiçoso, tem o privilégio de ser protegido enquanto desfruta a vida. O final do vídeo não contém uma ironia, mas uma provocação: “Privilégio? Vem pra Marinha!”. A frase sai da boca de uma marinheira, provando que a inclusão de mulheres nas Forças Frmadas, por si só, não é suficiente para democratizar as relações entre Estado – Forças Armadas – sociedade. 

O final do vídeo foi produzido como uma resposta ao pacote de cortes apresentado por Haddad. Ao mesmo tempo, dois movimentos de comunicação institucional ocorreram, o que os mais sabidos chamariam de operações psicológicas, com o apoio da imprensa hegemônica. De um lado, apresentou-se os 2% de cortes para a caserna como os sacrifícios do mundo militar que, junto com os civis, estão salvando as contas públicas dessa nação. De outro, veículos como a CNN divulgaram matérias sobre a evasão entre militares, notadamente na Aeronáutica e Marinha, com dados brutos desde 2019 (reforma na carreira feita por Bolsonaro). Os dados não foram discriminados, então não é possível saber porque saíram (passaram num concurso melhor? Saíram de diferentes especialidades ou da mesma? Em que proporção?), mas entrevistas com mulheres (mais uma vez, não é implicância minha, é linha editorial do Comando) nas matérias relatam como a jornada de trabalho deixou de ser compensatória diante das exigências da carreira.

Quanto ao vídeo, à operação aberta das Forças Armadas na imprensa, e à operação encoberta das Forças Armadas no parlamento contra o pacote do governo, não tecerei mais comentários. Trata-se de desafio explícito ao Comandante em Chefe da Nação. Caberia ao Ministro da Defesa ordenar imediatamente a retirada do vídeo do ar e demitir o Almirante Olsen. Ele não ficará triste, pois levou um milhão de reais na aposentadoria.

Quanto à proposta do governo (saliente-se, ainda uma proposta), é extremamente tímida na área militar. Não chega a totalizar 2% do tamanho dos cortes anunciados, embora seja, proporcionalmente, a área com maior déficit da previdência. Pouparei o leitor da descrição atual do mundo do trabalho civil. Além disso, civil é muita gente, assim como marinheiro também é muita gente. A sociologia raramente maneja a dicotomia civil-militar, mas com as condições de trabalho das diferentes classes sociais, civis e militares. Aqueles que pensam e decidem sobre o conteúdo da peça publicitária institucional têm condições de trabalho bastante distintas daqueles que foram os personagens do vídeo. Note-se: ambos podem ter a mesma mentalidade política, ou a mesma maneira de ver o “civil” inventado e generalizado, mas as condições de trabalho são diferentes. No caso da Marinha, também tem grande peso o local de exercício do trabalho: embarcados por longos períodos, ou no apoio terrestre.

Vamos às propostas do governo para a área militar. A primeira medida é a extinção da “Morte Ficta”, ou seja, os dependentes do militar que perder o posto e a patente deixarão de receber pensão. Lembremos, alguém só é expulso após condenação pela justiça militar. Na Marinha, segundo a imprensa, 87 pessoas estariam nessa situação. Não enchem nem um vagão de metrô. A segunda medida é a elevação da alíquota de contribuição para os Fundos de Saúde para 3,5%. Os outros 96,5% seguirão sendo custeados pelo orçamento do governo (vulgo, pelo povo brasileiro), aplicados em hospitais militares usados exclusivamente pela família militar que, por sua vez, é mais ampla que a das carreiras civis. No mundo militar, filhos naturais são mantidos como dependentes até os 24 anos, e enteados podem ser incorporados. No mundo civil, o plano de saúde universal se chama SUS, e as modalidades civis são inúmeras, a depender do plano privado contratado ou do acordo coletivo conquistado pelo sindicato da categoria. A terceira medida extingue as pensões para beneficiários de segunda ou terceira ordem, limitando-a ao cônjuge e filhos. Para civis, essa possibilidade nunca existiu.

A quarta e última medida é a mais polêmica, e se refere a estabelecer uma idade mínima para a aposentadoria (reserva remunerada) de 55 anos, lembrando que, entre civis, essa idade é de 62 anos para mulheres, e 65 para homens. Hoje, militares (de carreira, não aqueles com contratos temporários que podem ficar na força por até oito anos) não têm referência etária, podendo se aposentar a pedido. A regra de transição iria até 2032! Personagem importante nessa situação é o ex-presidente Jair Bolsonaro, que foi para a reserva após 15 anos na Força, e desde 1988 (ele tinha 33 anos), recebe sua aposentadoria integral à sua patente legal, capitão do Exército. 

Duas reações são dignas de nota. A primeira, aponta que a carreira tem baixa atratividade, e sofreria com êxodo. Será? Quais dados indicam isso? Aqueles disponíveis ao público mostram concursos altamente concorridos, e uma instituição que conta com altos índices de aprovação entre a população. Quem se quer atrair? Quem tem entrado? Os problemas decorrem do modo como as Forças estão organizadas ou de como o trabalho no interior da Força é organizado? A segunda reclamação está correta, e vem das baixas patentes, que foram prejudicadas na reforma da carreira de 2019. Na ocasião, Bolsonaro privilegiou as altas patentes e prometeu um grupo de trabalho para olhar a situação das baixas patentes que nunca se mobilizou. As altas e baixas patentes seguiram votando em Bolsonaro, mas a bomba trabalhista ficou para o presidente eleito, Lula.

Os privilégios militares, quando comparados ao horroroso mundo de trabalho civil, poderiam abundar, mas seriam comparações levianas, como leviano foi o vídeo da Marinha. Cabe conhecer o mundo de trabalho militar, com seus direitos, deveres e privilégios, como fizemos em texto sobre a carreira militar. Cabe questionar os quartéis, levando em conta as condições de trabalho das diferentes patentes e modalidades de contratação militares, a forma como a carreira é organizada, as condições do mercado de trabalho fora dos quartéis, as necessidades técnicas de defesa nacionais, e mesmo as condições internacionais para o exercício do trabalho de defesa nacional, muito distintas em tempos de paz e de guerra. 

Por fim, quero comentar sobre a habilidade militar de usar “os dois mundos” de Van Hallen para conquistar sempre o melhor para si. Dois exemplos breves. No Brasil, alunos de escolas públicas têm o direito duramente conquistado de cotas de acesso ao ensino superior público. Os colégios militares são considerados escolas públicas, mesmo recebendo um orçamento por aluno cerca de três vezes maior que o da escola pública normal. É a mesma realidade dos colégios de aplicação de universidades. Ambos gozam do melhor dos dois mundos: as cotas para alunos oriundos das escolas públicas, e os orçamentos por aluno mais elevados. Um segundo exemplo: militares têm recorrido ao sistema de justiça civil para conquistar direitos trabalhistas que eram negados a eles, injustamente, pelas instituições militares, como o acesso aos sistemas de saúde, moradia e previdenciário para cônjuge do mesmo sexo. Entretanto, esse mesmo indivíduo segue sujeito à justiça militar, contando com seus bônus e ônus, a depender da patente hierárquica. Novamente, é o melhor dos dois mundos.

Elis Regina eternizou a música de Guilherme Arantes e ensinou que vamos vivendo e aprendendo a jogar. “Nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, mas aprendendo a jogar”. Será? A teoria dos jogos discorda, dizendo que é possível construir jogos ganha-ganha, em que indivíduos racionais podem cooperar e todos saírem ganhando. Seria a habilidade militar de extrair “o melhor dos dois mundos” um exemplo da teoria do ganha-ganha? Deveríamos substituir o dilema do prisioneiro pelo dilema do marinheiro? O senso comum se esquece de que a cooperação e a fraternidade ocorrem entre o próprio grupo, desconsiderando as dinâmicas de poder e desigualdade que imperam na sociedade.

A trabalhadora do mundo real está como Elis, tentando se equilibrar entre as múltiplas jornadas; e com Van Hallen, procurando um pouco do céu aqui na terra, e se esquecendo que não existe céu com Brigadeiros, Almirantes ou Generais.

Feliz Natal.

 

¨      Além de Braga, haverá outros presos e a pressão da anistia vai aumentar. Por Roberto Nascimento

Braga Neto foi o primeiro general de quatro estrelas preso, o que tem causado um enorme espanto no Exército. Estão incomodados e pressionando Lula para trabalhar pela anistia. Os golpistas são desumanos, torturam e matam em qualquer idade e na história do Brasil, estão sempre a postos para agir.

É bom lembrar que tivemos na história brasileira dois marechais presos. O primeiro foi o marechal-presidente Hermes da Fonseca, em 1922, que ficou seis meses detido.

O segundo marechal preso foi Henrique Teixeira Lott, em 1961, por 30 dias, mas só cumpriu 15 dias. Os militares golpistas daquela época não queriam que o vice João Goulart assumisse, e Lott fez uma carta-aberta à nação, protestando. Ficou preço três dias na insalubre Fortaleza da Laje, uma covardia, porque Lott tinha quase 70 anos.

O Poder Judiciário erra muito no Brasil, além de haver demandas que quase nunca acabam. Tem de tudo: juízes que sentam em cima dos processos, advogados que usam de artifícios para protelar as demandas, chicanas mil e um sistema de recursos sem fim, até chegar à prescrição e liberdade para todos.

Sem pretender captar o condão da verdade absoluta, inexistente na vida humana, entendo que a prisão de Braga Neto foi para impedir que atuasse contra as investigações em curso, mas isso seria improcedente, porque o inquérito já foi concluído e está sob análise da Procuradoria-Geral da República. No entanto, há fatos novos surgindo que podem justificar a prisão preventiva.

Braga Neto tentava acesso à delação de Mauro Cid, porque o tenente-coronel o acusou de financiar os “kids pretos” para assassinar autoridades. Cid relatou uma reunião na residência do general em Brasília e a pressão pesada que Braga fazia contra generais do Alto Comando, contrários ao golpe.

Falam muito no dia oito de janeiro de 2023, mas, o que tentaram fazer em dezembro de 2022 não tem precedentes na História do Brasil. Foi uma loucura total, a ponto de não estarmos livres de uma nova intentona golpista.

Esquerdistas, comunistas, humanistas, sindicalistas, que se cuidem. Ao invés da Polícia Federal as seis da manhã, poderemos receber uma patrulha militar a qualquer hora do dia, inclusive na calada da noite, para nos levar não se sabe aonde.

Militares e civis golpistas são desumanos. Desta vez, a conspiração fracassou. Agora, antes dos julgamentos, já existe uma pressão muito forte pela anistia, que só tende a aumentar.

¨      Trama liderada por Braga Neto indica até que ponto os golpistas iam chegar. Por Pedro do Coutto

Ainda sobre o impacto da prisão do general Walter Braga Netto e a participação de oficiais de alta patente na trama golpista contra a Constituição e a democracia, esquece-se um aspecto importante, uma vez que nesse projeto pelo poder, o grupo de articuladores incluíram não apenas um golpe de Estado, o que já seria abominável, mas também o assassinato de três pessoas, o presidente Lula da Silva, o vice-presidente Geraldo Alckmin e o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes.

É incrível saber que nas reuniões para tratar da subversão, os principais arquitetos do plano planejavam crimes e atos hediondos, envolvendo pessoas inocentes em tal trama. Um fato que leva tais intenções ao descrédito absoluto, inclusive moral por parte dos favoráveis ao golpe.

A audiência do ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid, no último dia 21 de novembro, trouxe novidades que foram fundamentais para o elenco de provas que levou o general Walter Braga Netto à prisão, decretada no último sábado.

A tentativa de obter dados sigilosos da delação de Mauro Cid foi caracterizada como ação de obstrução da Justiça, ao “impedir ou embaraçar as investigações em curso”, apontou o relator do inquérito, o ministro Alexandre de Moraes.

De acordo com o relatório da Polícia Federal, há “diversos elementos de prova” contra Braga Netto, que teria atuado para impedir a total elucidação dos fatos e “com o objetivo de controlar as informações fornecidas, alterar a realidade dos fatos apurados, além de consolidar o alinhamento de versões entre os investigados”.

Para chegar a essas provas, os policiais federais realizaram perícia no celular do general Mauro Cesar Lourena Cid, pai do coronel que trabalhava com Jair Bolsonaro. Havia “intensa troca de mensagens” via aplicativo de mensagens, que foram apagadas e depois recuperadas pela PF. O tema principal era a respeito do desvio de joias por parte de Bolsonaro, em agosto de 2023. A PF identificou que o nome de Braga Netto estava salvo na agenda do general Lourena Cid como “Walter BN”.

Outras conversas recuperadas ocorreram em 12 de setembro, quando o general Mário Fernandes disse ao coronel reformado Jorge Kormann que os pais de Mauro Cid ligaram para os generais Braga Netto e Augusto Heleno, ex-ministro na gestão Bolsonaro, informando que a divulgação do conteúdo da delação por parte da imprensa era “tudo mentira”. A PF argumenta que Braga Netto tentou obter os dados do acordo por meio de familiares do coronel Cid, o que foi determinante para a prisão. Outra prova encontrada foi na sede do PL, em Brasília, na mesa do coronel Flávio Peregrino, assessor direto do general Braga Netto.

Era uma folha com perguntas (supostamente feitas por Braga Netto) e respostas (que seriam de autoria de Mauro Cid). Entre as perguntas: “O que foi delatado?”, com a seguinte resposta: “Nada. Eu não entrava nas reuniões. Só colocava o pessoal para dentro”. Há outras cinco questões pedindo mais informações sobre o que a PF dispunha.

O ex-ajudante de ordens disse, em depoimento à PF, que as respostas não foram escritas por ele.  “Talvez intermediários pudessem estar tentando chegar perto de mim, até pessoalmente, para tentar entender o que eu falei, querer questionar, mas como eu não podia falar, eu meio que desconversava e ia para outros caminhos, para não poder revelar o que foi falado”, disse Cid para o delegado da PF, Fábio Shor.

Será que nenhum integrante da equipe dos que tramavam o golpe de Estado não acordou para a realidade que estava sendo preparada? Cometer uma série de ações criminosas, incluindo o assassinato de um presidente da República, constitui-se numa pretensão que demonstra o caráter dos envolvidos. Não tem cabimento. É impossível levar a sério esse projeto que, embora de difícil execução, reflete até que ponto os seus autores pretendiam chegar.

 

Fonte:Opera Mundi

 

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