Saúde
Única em tempos de crise democrática
No
mundo ideal, a saúde e o bem-estar coletivo estariam solidamente embasados em
princípios democráticos, assegurando transparência e equidade. No mundo real,
porém, crises políticas e a ascensão do populismo enfraquecem essa estrutura,
tornando desafiadora a criação de medidas efetivas em saúde. Em tempos de crise
democrática, o contraste entre o que buscamos e o que enfrentamos, nos mostra
que fortalecer mecanismos que garantam proteção e cooperação, mesmo em cenários
adversos, deve ser uma prioridade.
• Princípios democráticos
como pilares da Saúde Única
Diante
dos desafios enfrentados na esfera da saúde global, a visão integrativa da
Saúde Única, que conecta o bem-estar humano, animal e ambiental, tornou-se
indispensável. A pandemia de Covid-19 mostrou não apenas a interdependência dos
sistemas de saúde globais, mas também a importância de princípios democráticos
para o fortalecimento e a resiliência dessas estruturas.
A
Saúde Única enfatiza a colaboração entre setores — saúde pública, veterinária,
agricultura, meio ambiente, saneamento, energia, entre outros — e envolve a
participação de múltiplos atores sociais, com o objetivo de reduzir riscos
ambientais, ao reconhecer que a saúde é indissociável dos ecossistemas. No
entanto, para que essa perspectiva seja plenamente efetiva, não basta a
expertise científica; é imprescindível a incorporação de processos
democráticos, nos quais a transparência, a equidade e a cooperação
internacional constituem elementos estruturantes para uma resposta eficaz.
Sob
uma perspectiva clínica, integrar valores democráticos em iniciativas de saúde
é fundamental. As estratégias de controle e prevenção de surtos dependem de uma
comunicação precisa, uma cooperação entre países e da participação ativa das
comunidades. Em sociedades democráticas, onde o diálogo aberto entre os
governos, as instituições e o público é incentivado, fomenta-se a confiança
essencial ao sucesso de medidas de saúde pública. Sem essa confiança, como se
observa no fenômeno global da hesitação vacinal, as estratégias de contenção
frequentemente encontram resistência. Políticas de saúde transparentes e
inclusivas são, portanto, indispensáveis para conquistar o apoio da população,
reduzir a fragmentação e garantir a efetividade das ações.
Ao
mesmo tempo, a natureza interconectada da saúde também destaca a relevância da
equidade no acesso e na distribuição de recursos. Uma visão de saúde
fundamentada em valores democráticos exige que todas as vozes sejam
consideradas, especialmente as das comunidades marginalizadas, que
frequentemente enfrentam os maiores riscos ambientais. Quando a degradação
ambiental, como o desmatamento ou práticas agrícolas intensivas, altera
habitats naturais, tanto as populações locais quanto os ecossistemas enfrentam ameaças
à saúde aumentadas. Todavia, essas comunidades muitas vezes carecem de
representação nos processos de tomada de decisão. Uma democracia voltada para a
Saúde Única implica reconhecer e incluir essas vozes, valorizando suas
experiências e atendendo às suas necessidades específicas.
Ademais,
essa perspectiva reforça a necessidade de prestação de contas entre
instituições e governos. Sem esse compromisso, as iniciativas de saúde pública
podem falhar, colocando vidas em risco. A transparência e a responsabilidade
das organizações internacionais, dos governos e do setor privado são essenciais
para que as políticas sejam guiadas pela proteção à saúde pública e segurança,
acima de interesses políticos e econômicos.
Em
última análise, a resiliência dos sistemas de saúde, uma qualidade fortalecida
pelos valores democráticos, depende de seus elos mais frágeis, justamente
aqueles que promovem a proteção dos grupos vulneráveis e encorajam a
participação igualitária na formulação de políticas e programas para a saúde.
• Crise da democracia:
Populismos e a Saúde Única
Esse
cenário de expansão da conscientização sobre as necessidades de uma visão mais
ampla e interconectada sobre a Saúde, no entanto, se desenrola em meio a uma
crise democrática contemporânea, marcada pela ascensão do populismo e de
movimentos radicais que promovem a intolerância e a negação do outro como
estratégia de canalização do descontentamento político.
A
Saúde Única e o negacionismo emergem de visões diametralmente opostas sobre a
ciência, a governança e a inclusão social. O paradigma da Saúde Única propõe
uma abordagem integrada e colaborativa para a saúde humana, animal e ambiental,
reconhecendo-se tais sistemas como interligados. O populismo, por outro lado,
se apoia em narrativas simplistas e estigmatizadoras, que promovem divisões
morais profundas no seio da sociedade e minam conexões tanto no discurso
político quanto na prática das políticas públicas.
Uma
das dimensões fundamentais do sentimento populista é a rejeição do conhecimento
científico, ao considerá-lo como um campo essencialmente elitista. As
universidades e as grandes instituições de pesquisa são vistas com desconfiança
por serem parte das elites e por partilharem de valores cosmopolitas contrários
aos interesses chauvinistas nacionais. Por um lado, essa percepção deveria
incentivar uma maior aproximação entre as instituições científicas e a
sociedade. Por outro, não se pode negar que a rejeição à ciência gera impactos
graves no combate a doenças infecciosas, particularmente pela rejeição ao
método científico, à aceitação de saberes dogmáticos e pela disseminação de
desinformação sobre vacinas.
Líderes
populistas exploram essa desconfiança e reforçam narrativas anti-establishment,
promovendo teorias conspiratórias que amplificam a hesitação vacinal. Essa
postura resulta no ressurgimento de doenças anteriormente controladas, como o
sarampo, a coqueluche, a caxumba e a poliomielite, comprometendo a capacidade
de proteção coletiva que a Saúde Única busca alcançar. As lideranças populistas
também estabelecem entraves para colaborações entre Organizações Internacionais
e entidades da Sociedade Civil Global que são essenciais para o controle de
pandemias e doenças zoonóticas. A fragmentação das políticas públicas e a falta
de adesão a recomendações globais enfraquecem esforços conjuntos que são
centrais à Saúde Única.
Outro
ponto de tensão está na defesa, por parte de lideranças populistas, de um
sistema de bem-estar chauvinista. Esse modelo de proteção social é baseado em
critérios de exclusão do outro, com a priorização da população nativa ou
daqueles considerados pertencentes ao “povo verdadeiro”, enquanto marginaliza
comunidades vulneráveis, como migrantes, refugiados e minorias raciais e
étnicas. Sob a lógica populista, esses grupos são retratados como fonte de
ameaças econômicas, culturais e de saúde pública, sendo frequentemente
excluídos de programas de saúde e de ações que promovam equidade, integração e
socialização comunitária.
A
exclusão das populações marginalizadas compromete os objetivos de equidade e
justiça social ao ignorar a interdependência entre as diversas comunidades que
compõem o tecido social, amplificando o impacto das desigualdades e
vulnerabilidades sociais na disseminação de doenças.
O
populismo reforça, também, discursos contra as mulheres, o que dificulta a
inclusão de questões de saúde feminina na agenda pública. Aspectos fundamentais
da saúde global, como acesso ao planejamento familiar, direitos reprodutivos e
combate à violência de gênero, enfrentam mais resistência. Essa postura não só
mina avanços conquistados, mas também impede a disseminação de políticas
globais que poderiam beneficiar populações vulneráveis.
A
abordagem de fragmentação e divisão entre o povo legítimo e elites corruptas,
assim como a separação entre nativos e migrantes no léxico político do
populismo, especialmente da direita radical, está em nítido contraste com o
ethos da Saúde Única, que reconhece que a saúde das mulheres é um indicador
crítico para o bem-estar geral de populações humanas e animais, bem como para a
sustentabilidade. O populismo, ao marginalizar essas questões, enfraquece os
esforços de promoção da saúde global e agrava as desigualdades de gênero.
• O populismo e a crise
ambiental diante da Saúde Única
Essa
realidade perversa já expôs desafios profundos na relação entre a saúde
pública, o meio ambiente e os sistemas sociais, conforme a perspectiva da Saúde
Única. Isto se torna ainda mais grave diante da constatação da prevalência de
problemas perversos e complexos, como a questão das mudanças climáticas e das
desigualdades crescentes decorrentes do aprofundamento da globalização
econômica, que intensificam tensões políticas em escala nacional. Com isso,
líderes populistas que exploram o descontentamento social e minam instituições
democráticas são fortalecidos, promovendo desinformação e políticas
prejudiciais ao bem-estar coletivo.
A
crise ambiental causada pelas mudanças climáticas representa um dos maiores
desafios contemporâneos à saúde humana, animal e ambiental, pilares centrais da
Saúde Única. No entanto, lideranças populistas frequentemente minimizam ou
negam a gravidade das alterações climáticas, adotando posturas que deslegitimam
evidências científicas e enfraquecem políticas de mitigação.
Essa
negação em parte decorre do alinhamento de muitos governos populistas com os
interesses corporativos que se beneficiam da exploração de recursos naturais na
contramão de uma agenda de sustentabilidade, além do apelo ao nacionalismo
econômico, que prioriza o crescimento a curto prazo em detrimento da
sustentabilidade. O resultado é o agravamento de problemas como o aumento de
desastres naturais, a perda de biodiversidade e a expansão de doenças
zoonóticas, que surgem devido ao desmatamento e à crescente interação entre
humanos e animais em habitats degradados.
Além
disso, as mudanças climáticas intensificam desigualdades sociais e sanitárias,
afetando desproporcionalmente populações vulneráveis, como as comunidades
indígenas, os pescadores e agricultores de subsistência, que dependem
diretamente de recursos naturais para sua sobrevivência. Essas populações,
muitas vezes ignoradas ou desvalorizadas por regimes populistas, enfrentam
insegurança alimentar, aumento de doenças transmitidas por vetores e
deslocamento forçado, tal como demonstrado no desastre acometido às populações
indígenas no Brasil durante a pandemia.
Ao
mesmo tempo, esses governos configuram-se como um entrave aos esforços globais
de cooperação para enfrentar as mudanças climáticas, enfraquecendo tratados e
convenções, como o Acordo de Paris e as Conferências Entre as Partes (COP) da
Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Essa fragmentação de
iniciativas e concepção sobre a proteção social e políticas de saúde agrava os
impactos climáticos em escala global, enquanto a Saúde Única exige justamente
uma abordagem integrada e transnacional para mitigar os efeitos das alterações
ambientais sobre a saúde. A oposição entre essas visões reflete a incapacidade
da política populista em oferecer soluções sustentáveis para desafios globais
interconectados.
O
negacionismo, ao rejeitar a ciência e fomentar divisões e fragmentação, opõe-se
diretamente aos princípios centrais da Saúde Única. Essa oposição não só
compromete o progresso na saúde global, mas também perpetua ciclos de
desigualdade e vulnerabilidade que são prejudiciais para todos os seres vivos.
Para promover políticas públicas alinhadas aos princípios da Saúde Única, será
imprescindível combater narrativas populistas, reforçar abordagens baseadas em
evidências e fomentar a colaboração global, intra-estatal e local para
construir e aprofundar os processos de inclusão.
Fonte:
Por Ivan Filipe Fernandes e Marcos Boulos, em Outra Saúde
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