sábado, 7 de dezembro de 2024

Saúde Única em tempos de crise democrática

No mundo ideal, a saúde e o bem-estar coletivo estariam solidamente embasados em princípios democráticos, assegurando transparência e equidade. No mundo real, porém, crises políticas e a ascensão do populismo enfraquecem essa estrutura, tornando desafiadora a criação de medidas efetivas em saúde. Em tempos de crise democrática, o contraste entre o que buscamos e o que enfrentamos, nos mostra que fortalecer mecanismos que garantam proteção e cooperação, mesmo em cenários adversos, deve ser uma prioridade.

•                        Princípios democráticos como pilares da Saúde Única

Diante dos desafios enfrentados na esfera da saúde global, a visão integrativa da Saúde Única, que conecta o bem-estar humano, animal e ambiental, tornou-se indispensável. A pandemia de Covid-19 mostrou não apenas a interdependência dos sistemas de saúde globais, mas também a importância de princípios democráticos para o fortalecimento e a resiliência dessas estruturas.

A Saúde Única enfatiza a colaboração entre setores — saúde pública, veterinária, agricultura, meio ambiente, saneamento, energia, entre outros — e envolve a participação de múltiplos atores sociais, com o objetivo de reduzir riscos ambientais, ao reconhecer que a saúde é indissociável dos ecossistemas. No entanto, para que essa perspectiva seja plenamente efetiva, não basta a expertise científica; é imprescindível a incorporação de processos democráticos, nos quais a transparência, a equidade e a cooperação internacional constituem elementos estruturantes para uma resposta eficaz.

Sob uma perspectiva clínica, integrar valores democráticos em iniciativas de saúde é fundamental. As estratégias de controle e prevenção de surtos dependem de uma comunicação precisa, uma cooperação entre países e da participação ativa das comunidades. Em sociedades democráticas, onde o diálogo aberto entre os governos, as instituições e o público é incentivado, fomenta-se a confiança essencial ao sucesso de medidas de saúde pública. Sem essa confiança, como se observa no fenômeno global da hesitação vacinal, as estratégias de contenção frequentemente encontram resistência. Políticas de saúde transparentes e inclusivas são, portanto, indispensáveis para conquistar o apoio da população, reduzir a fragmentação e garantir a efetividade das ações.

Ao mesmo tempo, a natureza interconectada da saúde também destaca a relevância da equidade no acesso e na distribuição de recursos. Uma visão de saúde fundamentada em valores democráticos exige que todas as vozes sejam consideradas, especialmente as das comunidades marginalizadas, que frequentemente enfrentam os maiores riscos ambientais. Quando a degradação ambiental, como o desmatamento ou práticas agrícolas intensivas, altera habitats naturais, tanto as populações locais quanto os ecossistemas enfrentam ameaças à saúde aumentadas. Todavia, essas comunidades muitas vezes carecem de representação nos processos de tomada de decisão. Uma democracia voltada para a Saúde Única implica reconhecer e incluir essas vozes, valorizando suas experiências e atendendo às suas necessidades específicas.

Ademais, essa perspectiva reforça a necessidade de prestação de contas entre instituições e governos. Sem esse compromisso, as iniciativas de saúde pública podem falhar, colocando vidas em risco. A transparência e a responsabilidade das organizações internacionais, dos governos e do setor privado são essenciais para que as políticas sejam guiadas pela proteção à saúde pública e segurança, acima de interesses políticos e econômicos.

Em última análise, a resiliência dos sistemas de saúde, uma qualidade fortalecida pelos valores democráticos, depende de seus elos mais frágeis, justamente aqueles que promovem a proteção dos grupos vulneráveis e encorajam a participação igualitária na formulação de políticas e programas para a saúde.

•                        Crise da democracia: Populismos e a Saúde Única

Esse cenário de expansão da conscientização sobre as necessidades de uma visão mais ampla e interconectada sobre a Saúde, no entanto, se desenrola em meio a uma crise democrática contemporânea, marcada pela ascensão do populismo e de movimentos radicais que promovem a intolerância e a negação do outro como estratégia de canalização do descontentamento político.

A Saúde Única e o negacionismo emergem de visões diametralmente opostas sobre a ciência, a governança e a inclusão social. O paradigma da Saúde Única propõe uma abordagem integrada e colaborativa para a saúde humana, animal e ambiental, reconhecendo-se tais sistemas como interligados. O populismo, por outro lado, se apoia em narrativas simplistas e estigmatizadoras, que promovem divisões morais profundas no seio da sociedade e minam conexões tanto no discurso político quanto na prática das políticas públicas.

Uma das dimensões fundamentais do sentimento populista é a rejeição do conhecimento científico, ao considerá-lo como um campo essencialmente elitista. As universidades e as grandes instituições de pesquisa são vistas com desconfiança por serem parte das elites e por partilharem de valores cosmopolitas contrários aos interesses chauvinistas nacionais. Por um lado, essa percepção deveria incentivar uma maior aproximação entre as instituições científicas e a sociedade. Por outro, não se pode negar que a rejeição à ciência gera impactos graves no combate a doenças infecciosas, particularmente pela rejeição ao método científico, à aceitação de saberes dogmáticos e pela disseminação de desinformação sobre vacinas.

Líderes populistas exploram essa desconfiança e reforçam narrativas anti-establishment, promovendo teorias conspiratórias que amplificam a hesitação vacinal. Essa postura resulta no ressurgimento de doenças anteriormente controladas, como o sarampo, a coqueluche, a caxumba e a poliomielite, comprometendo a capacidade de proteção coletiva que a Saúde Única busca alcançar. As lideranças populistas também estabelecem entraves para colaborações entre Organizações Internacionais e entidades da Sociedade Civil Global que são essenciais para o controle de pandemias e doenças zoonóticas. A fragmentação das políticas públicas e a falta de adesão a recomendações globais enfraquecem esforços conjuntos que são centrais à Saúde Única.

Outro ponto de tensão está na defesa, por parte de lideranças populistas, de um sistema de bem-estar chauvinista. Esse modelo de proteção social é baseado em critérios de exclusão do outro, com a priorização da população nativa ou daqueles considerados pertencentes ao “povo verdadeiro”, enquanto marginaliza comunidades vulneráveis, como migrantes, refugiados e minorias raciais e étnicas. Sob a lógica populista, esses grupos são retratados como fonte de ameaças econômicas, culturais e de saúde pública, sendo frequentemente excluídos de programas de saúde e de ações que promovam equidade, integração e socialização comunitária.

A exclusão das populações marginalizadas compromete os objetivos de equidade e justiça social ao ignorar a interdependência entre as diversas comunidades que compõem o tecido social, amplificando o impacto das desigualdades e vulnerabilidades sociais na disseminação de doenças.

O populismo reforça, também, discursos contra as mulheres, o que dificulta a inclusão de questões de saúde feminina na agenda pública. Aspectos fundamentais da saúde global, como acesso ao planejamento familiar, direitos reprodutivos e combate à violência de gênero, enfrentam mais resistência. Essa postura não só mina avanços conquistados, mas também impede a disseminação de políticas globais que poderiam beneficiar populações vulneráveis.

A abordagem de fragmentação e divisão entre o povo legítimo e elites corruptas, assim como a separação entre nativos e migrantes no léxico político do populismo, especialmente da direita radical, está em nítido contraste com o ethos da Saúde Única, que reconhece que a saúde das mulheres é um indicador crítico para o bem-estar geral de populações humanas e animais, bem como para a sustentabilidade. O populismo, ao marginalizar essas questões, enfraquece os esforços de promoção da saúde global e agrava as desigualdades de gênero.

•                        O populismo e a crise ambiental diante da Saúde Única

Essa realidade perversa já expôs desafios profundos na relação entre a saúde pública, o meio ambiente e os sistemas sociais, conforme a perspectiva da Saúde Única. Isto se torna ainda mais grave diante da constatação da prevalência de problemas perversos e complexos, como a questão das mudanças climáticas e das desigualdades crescentes decorrentes do aprofundamento da globalização econômica, que intensificam tensões políticas em escala nacional. Com isso, líderes populistas que exploram o descontentamento social e minam instituições democráticas são fortalecidos, promovendo desinformação e políticas prejudiciais ao bem-estar coletivo.

A crise ambiental causada pelas mudanças climáticas representa um dos maiores desafios contemporâneos à saúde humana, animal e ambiental, pilares centrais da Saúde Única. No entanto, lideranças populistas frequentemente minimizam ou negam a gravidade das alterações climáticas, adotando posturas que deslegitimam evidências científicas e enfraquecem políticas de mitigação.

Essa negação em parte decorre do alinhamento de muitos governos populistas com os interesses corporativos que se beneficiam da exploração de recursos naturais na contramão de uma agenda de sustentabilidade, além do apelo ao nacionalismo econômico, que prioriza o crescimento a curto prazo em detrimento da sustentabilidade. O resultado é o agravamento de problemas como o aumento de desastres naturais, a perda de biodiversidade e a expansão de doenças zoonóticas, que surgem devido ao desmatamento e à crescente interação entre humanos e animais em habitats degradados.

Além disso, as mudanças climáticas intensificam desigualdades sociais e sanitárias, afetando desproporcionalmente populações vulneráveis, como as comunidades indígenas, os pescadores e agricultores de subsistência, que dependem diretamente de recursos naturais para sua sobrevivência. Essas populações, muitas vezes ignoradas ou desvalorizadas por regimes populistas, enfrentam insegurança alimentar, aumento de doenças transmitidas por vetores e deslocamento forçado, tal como demonstrado no desastre acometido às populações indígenas no Brasil durante a pandemia.

Ao mesmo tempo, esses governos configuram-se como um entrave aos esforços globais de cooperação para enfrentar as mudanças climáticas, enfraquecendo tratados e convenções, como o Acordo de Paris e as Conferências Entre as Partes (COP) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Essa fragmentação de iniciativas e concepção sobre a proteção social e políticas de saúde agrava os impactos climáticos em escala global, enquanto a Saúde Única exige justamente uma abordagem integrada e transnacional para mitigar os efeitos das alterações ambientais sobre a saúde. A oposição entre essas visões reflete a incapacidade da política populista em oferecer soluções sustentáveis para desafios globais interconectados.

O negacionismo, ao rejeitar a ciência e fomentar divisões e fragmentação, opõe-se diretamente aos princípios centrais da Saúde Única. Essa oposição não só compromete o progresso na saúde global, mas também perpetua ciclos de desigualdade e vulnerabilidade que são prejudiciais para todos os seres vivos. Para promover políticas públicas alinhadas aos princípios da Saúde Única, será imprescindível combater narrativas populistas, reforçar abordagens baseadas em evidências e fomentar a colaboração global, intra-estatal e local para construir e aprofundar os processos de inclusão.

 

Fonte: Por Ivan Filipe Fernandes e Marcos Boulos, em Outra Saúde

 

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