Produzir
Ciência e Saúde em tempos de tormenta
No
mês de novembro, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) realizou
dois congressos científicos. Entre os dias 3 e 6 de novembro, realizamos em
Fortaleza o 5º Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão da
Saúde. Entre os dias 24 e 27 do mesmo mês, realizamos no Rio de Janeiro o 12º
Congresso Brasileiro de Epidemiologia. Para os dois eventos afluíram
pesquisadores, professores, alunos, profissionais de saúde, gestores e
movimentos sociais vinculados à formulação, implementação e avaliação de
políticas de saúde no Sistema Único de Saúde (SUS) ou a ele relacionado. Neles
o número de mulheres foi dominante, indicando sua prevalência na prática
profissional em nossa área. Também se registrou a diversidade dos atores que se
fizeram presentes nos encontros da Abrasco para compartilhar ideias, pesquisas
e experiências.
Com
enfoques próprios, os dois eventos compartilharam a preocupação com as amplas e
persistentes desigualdades e iniquidades no campo da saúde, ressaltando que
elas precisam ser reconhecidas e confrontadas por diferentes matizes de saberes
e práticas. A percepção convergente é que vivemos um quadro sanitário de
complexidade crescente devido a diferentes fatores. Dentre eles, o agravamento
dos efeitos deletérios das ações humanas sobre o meio ambiente e das
persistentes desigualdades no perfil epidemiológico da população e no acesso
aos bens e serviços públicos de saúde. Como agravante, as ações políticas do
direitismo extremista contra a democracia como forma de produção de igualdade e
convergência societária.
O
Congresso de Fortaleza produziu uma carta que busca sintetizar os pontos de
consenso dos seus 2,6 mil participantes. Observamos uma conjuntura de
sobreposição de crises “que é sanitária, ambiental/climática, de insegurança
alimentar, disputa pela terra e pela água, [que] têm resultado em grandes
migrações populacionais, brutal piora das relações de trabalho, violência,
acirramento das disputas geopolíticas entre norte global e a grande maioria do
mundo, guerras e do aumento da desigualdade interna nos países.”
O
Congresso do Rio, que contou com 2,7 mil participantes, publicou o V Plano
Diretor para o Desenvolvimento da Epidemiologia no Brasil, que aponta uma
agenda de trabalho centrada em pesquisas que “enfatizem as origens e a produção
das desigualdades socioeconômicas originadas no coração do sistema capitalista
e que são fortes produtoras de iniquidades em saúde. Considerando o estado
atual do processo de concentração da renda e de implementação de políticas
neoliberais, reforça-se a necessidade de ampliar o número de pesquisas para
monitorar o impacto desses processos na pobreza, nos indicadores de saúde e na
magnitude das desigualdades sociais em saúde.”
A
tônica dos debates, tanto em Fortaleza como no Rio, foi que o SUS se vê
confrontado por grandes ameaças internas e externas. A pandemia do COVID-19,
entre os anos 2020 e 2023, estressou os sistemas de saúde em todo planeta. Os
determinantes ambientais, sociais e políticos que produziram as condições
ideais para a rápida expansão da pandemia continuam operando. Esses fatores se
mantêm testando a nossa capacidade de prevenção de emergências sanitárias
catastróficas. As desigualdades globais e nacionais exacerbam os efeitos das
doenças endêmicas e epidêmicas sobre as populações vulnerabilizadas.
Os
temas da saúde passaram a ter destaque na agenda de mobilização e aglutinação
política de grupos radicalizados de extrema direita como: saúde reprodutiva,
direitos sexuais, vacinas, determinantes das doenças, medidas de prevenção e
tratamento das doenças, drogas, governança global da saúde. Obtendo acolhida
junto a parte do eleitorado da titubeante direita democrática para as
trincheiras da barbárie antidemocrática e anticientífica. Grupos das
comunidades de profissionais de saúde têm se engajado em campanhas
negacionistas, charlatãs ou regressivas quanto aos direitos humanos e sociais.
Como
exemplo da atualidade do que tratamos no Rio e em Fortaleza, o noticiário
dominante das duas últimas semanas no Brasil foi a exposição das entranhas do
fracassado golpe militar ensaiado no final de 2022 e a aprovação na Comissão de
Constituição de Justiça da PEC 164, chamada PEC do Aborto, que possibilita que
os direitos reprodutivos das mulheres regridam a um marco legal anterior à
1940. Esta última notícia interessa de sobremaneira aos golpistas de 2022/23 já
que permite a mudança de foco sobre a sua atrapalhada intentona. Contudo, a
possibilidade de avanço da agenda regressiva dos direitos humanos não pode ser
subestimada. A extrema direita está viva e luta para não afundar junto com o
suspeito capitão do golpe.
Os
vários debates dos congressos da Abrasco trouxeram evidências de que gestões
ineptas e, por vezes, irresponsáveis pós-2016 degradaram o nosso sistema de
saúde, prejudicando o funcionamento do Estado brasileiro quanto as suas
intervenções em saúde e em áreas correlatas.
Considerando
os desafios dos últimos dois anos, a comunidade abrasquiana reconhece que a
gestão atual do Ministério da Saúde recompôs a credibilidade da autoridade
sanitária federal; reestabeleceu e fortaleceu programas basilares do Sistema
Único de Saúde – SUS; recuperou sua função coordenadora e articuladora junto
aos entes federativos e à sociedade civil; estabeleceu um diálogo fundado na
racionalidade científica com o Congresso. Realizou ainda a melhoria de oferta e
cobertura de vacinas e no atendimento de a atenção primária à saúde e de
procedimentos eletivos de maior complexidade. Também, efetivou a retomada da
cooperação com as agências de governança global em saúde e ações estruturantes
associadas ao desenvolvimento do complexo produtivo da saúde. Isso lhe
qualifica para uma entrega robusta de programas inovadores na saúde,
especialmente a partir de 2025.
Todo
congresso da Abrasco é sempre uma celebração à ciência aplicada. Os dois
congressos de novembro celebraram o ensino, a pesquisa e a prática da saúde
coletiva em seus diversos campos de conhecimento. A práxis da Abrasco em seus
45 anos sempre se pautou na busca de soluções para a resolução dos problemas
históricos relacionados à saúde da população, em especial dos que se encontram
mais vulnerabilizados.
Para
as pessoas que praticam a saúde coletiva no Brasil, o fazem comprometidas com a
produção de conhecimento que contribua para o desenvolvimento soberano,
equitativo, sustentável e gerador de felicidade. Os congressos reiteraram o
compromisso com a democracia, com o respeito à diversidade, com as ações
inclusivas, com o aperfeiçoamento da atividade humana para a construção de um
futuro mais justo, eliminando as assimétricas desigualdades existentes entre
países e no interior desses.
Fonte:
Por Rômulo Paes de Sousa, em Outra Saúde
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