MARIO RIOS
FERNANDES: REGRESSÃO DEMOCRÁTICA E MOMENTO DESTITUINTE DA AMÉRICA LATINA
Vivemos tempos
convulsos e de constante mudança. As velhas certezas, por inconvenientes que
fossem, parecem murchar a uma velocidade recorde, e tudo aquilo que era sólido começa
a mostrar sinais de liquefação, deixando as sociedades à mercê. A ordem
internacional liberal, o sistema econômico, o funcionamento do próprio direito
internacional, os avanços tecnológicos, o comportamento político e social ou a
saúde democrática estão registrando uma série de mudanças e variações que
alteram as coordenadas existentes. Todas as certezas que nos explicavam como
funcionava o nosso mundo estão se desvanecendo.
Nos encontramos,
portanto, imersos em um momento de mudança no qual os antigos paradigmas
econômicos, políticos, sociais e geopolíticos parecem colapsar, e no qual se
produz uma coexistência entre aquelas ideias, atores e tendências emergentes e
aquelas em declínio, que acabarão disputando a hegemonia em um futuro muito
próximo. Assim, essa batalha está provocando uma profunda desorientação
econômica, social e política generalizada que afeta tudo o que conhecemos.
Essas mudanças estão atingindo em cheio os sistemas democráticos, situados no
centro da crise orgânica que o sistema econômico e político está sofrendo, e
começam a passar por um processo de deterioração – sob a forma de uma regressão
democrática –
que desgasta grande parte de seu funcionamento e de seu conteúdo político.
·
Causas
da regressão democrática na América Latina
No seu relatório de
2023, o Instituto V-Dem, um think tank especializado na análise
dos sistemas democráticos, oferece uma fotografia preocupante da evolução da
democracia em escala global. Um dos achados mais importantes deste relatório,
que constitui uma de suas conclusões mais sombrias, é que o nível médio de
democracia que um cidadão global experimenta retrocedeu a níveis semelhantes
aos de 1986. De 2003 a 2023, passamos de 35 países em processo de
democratização para apenas 18, enquanto os países que se voltaram
para regimes autoritários passaram de 11 para 42.
As tendências foram
claramente invertidas e, atualmente, estamos em uma situação pior do que há 40
anos, já que existe um número menor de sistemas democráticos do que naquela
época: segundo o índice de democracia
liberal deste think
tank, que inclui uma escala de 0 a 10 em variáveis como a qualidade das
eleições, os direitos individuais, a independência institucional, as liberdades
de expressão ou de associação, o respeito pelas liberdades civis por parte dos poderes
públicos ou a existência de meios de comunicação plurais, a qualidade da
democracia piorou até voltar aos níveis de 1986.
O deterioramento é
generalizado em boa parte do planeta, mas é especialmente acentuado nas
variáveis relacionadas à liberdade
de expressão,
à censura ou à repressão das organizações da sociedade civil e da oposição, que
são três das principais causas, segundo o relatório. O relatório também destaca
que sete de cada 10 indivíduos em escala global vivem agora em regimes
autocráticos, um aumento claro e sustentado em comparação com estudos
anteriores, quando, em 2003, era 50% da população.
A América
Latina não escapa às tendências globais apontadas pelo relatório
do V-Dem e também experimenta um retrocesso
democrático,
embora com características diferentes daquele vivido pela região entre o final
da Segunda
Guerra Mundial e
o início da década de 1980. Durante esse período, e por meio de uma série de
golpes de Estado de caráter militar apoiados pelas oligarquias nacionais, os
regimes autoritários acabaram com os sistemas democráticos que, naqueles
momentos, se inclinavam para opções políticas mais redistributivas ou que
pretendiam melhorar as condições de vida das maiorias sociais. Esse ciclo
terminou quando, na década de 1980, começou a onda democratizante e os diversos
países da América Latina empreenderam seus processos de transição para a
democracia. No entanto, nos últimos anos, a América Latina começou a
experimentar um "momento destituinte". Um contexto que dá lugar a uma
conjuntura fortemente marcada pela instabilidade, a fragmentação, a agitação
social e a polarização política, resultando em um impulso à regressão
democrática em toda a região.
Um dos documentos
que melhor estudou o deterioramento democrático na América Latina é o relatório
anual da consultoria Latinobarômetro. De fato, o estudo
de 2023 se concentra na análise das causas da fadiga democrática e da forma
como essa fadiga se expressa na opinião pública latino-americana. Segundo o
relatório, algumas das principais causas do deterioramento democrático
na América Latina são a fraqueza institucional dos partidos
políticos, o excesso de poder presidencial e a capacidade que os lideranças
fortes têm de alterar o jogo político. O personalismo de certas figuras
enfraquece claramente os equilíbrios de poder institucionais dos sistemas
políticos da região.
O mesmo relatório
também destaca uma série de causas ligadas à corrupção, que provoca a erosão da
confiança por parte da cidadania no sistema, fomentando assim o descrédito
institucional e a apatia política e eleitoral. Quanto maiores os níveis de
corrupção, menores são os níveis de participação política.
Por fim, o
relatório também aponta como elemento de deterioração democrática o aumento da
polarização nas sociedades latino-americanas. Trata-se de uma polarização
ideológica cada
vez mais profunda sobre os modelos de sociedade em disputa, que acaba
contaminando o debate político e transformando as legítimas diferenças
ideológicas e programáticas entre grupos em uma polarização afetiva que conduz
ao ódio, à animosidade e até mesmo à violência contra o oponente
político. Brasil, Colômbia e Venezuela são exemplos
claros dessa deriva polarizadora que se estende por todo o continente.
Todos esses
fenômenos ocorrem em uma região cada vez mais desigual no plano socioeconômico.
Essa desigualdade tem se revelado como a base da instabilidade e da
fragmentação política e social. Como aponta Diego Sánchez Ancochea em
seu livro, intitulado El coste de la desigualdad: lecciones y advertencias
de América Latina para el mundo (Ariel, 2022), a desigualdade é um
elemento corrosivo das relações sociais e comunitárias, que provoca a
desconfiança entre grupos e em relação às instituições, gerando dinâmicas
políticas de polarização e confronto que abalam os alicerces dos sistemas
democráticos. O aumento da desigualdade radicaliza parte da população, gerando
uma competição política pelos recursos e pelo poder cada vez mais extrema, a
ponto de dinamitar os consensos sociais e políticos existentes. Esse processo é
o que o autor aponta ao relacionar o crescimento da desigualdade na América
Latina com o deterioramento democrático que a região está vivendo".
·
"Entre
a antipolítica, a indiferença e o autoritarismo"
Esse 'momento
destituinte' que afeta diretamente os sistemas democráticos latino-americanos
fica claro quando se analisa a opinião pública dos diferentes países da região.
Se considerarmos os dados fornecidos pela pesquisa realizada
pelo Latinobarômetro em 2023, vemos que a região experimenta uma
tendência preocupante de regressão democrática.
O primeiro dado que
vemos ao analisar as informações do relatório geral é que, de modo geral, o
apoio à democracia como sistema político caiu de forma clara. Apenas 48% dos
latino-americanos apoiam a democracia, o que representa uma queda significativa
de mais de 15 pontos desde 2010, quando o apoio era de 63% em toda a região.
Paralelamente,
embora a preferência por um modelo autoritário não tenha crescido
exponencialmente, houve um aumento claro na opção de que qualquer sistema
político é indiferente. Assim como o autoritarismo em 2010 estava em 14% e
atualmente está em 17% — e vem subindo desde 2017 — a opção 'nos dá o mesmo'
passou de 16% para 28%. Podemos afirmar então que o declínio do apoio à
democracia iniciado a partir de 2010 foi sistemático, mostrando causas
estruturais que não foram remediadas e que aprofundam a perda de apoio à
democracia, não com uma virada clara para o autoritarismo, mas com um aumento
preocupante da indiferença em relação ao sistema político.
Mas as tendências
não se verificam da mesma forma em toda a região. 70% dos entrevistados
no Uruguai manifestam
apoio ao sistema democrático, enquanto em Honduras o apoio é de
apenas 32% e em Guatemala é de 29%. Em
países como Chile, Argentina ou Venezuela,
o apoio ainda é majoritário (cerca de 55%), mas em quase todos eles houve uma
queda em relação a 2020. De fato, se observarmos o reverso dessa pergunta,
vemos como o apoio a um governo autoritário subiu no México (33% em 2023
contra 22% em 2020), no Paraguai (27% contra
24%), na Guatemala (23% contra 14%), no Equador (19% contra
10%) ou na Argentina (18% contra 13%), para citar alguns exemplos.
Essa tendência
descendente no apoio aos sistemas democráticos parece caminhar lado a lado com
outra dinâmica fundamental que os dados demoscópicos do relatório
apontam: a insatisfação política. O sentimento de insatisfação, desafeição
ou apatia em relação ao sistema democrático é generalizado: 69% dos
latino-americanos entrevistados afirmam se sentir insatisfeitos com o
funcionamento de seu sistema político. Estamos falando de menos de 30% dos
cidadãos estarem satisfeitos com o funcionamento da democracia. Embora existam
diferenças de grau entre os países, é claramente perceptível um aumento da insatisfação
que, embora tenha diminuído ligeiramente desde 2020, vem crescendo
exponencialmente desde 2010.
Por fim, é
necessário destacar também que o apoio aos partidos políticos está no nível
mais baixo, já que apenas 21% dos cidadãos acreditam que eles funcionam bem,
contra 77% que têm uma opinião contrária. Ao mesmo tempo, cada vez mais pessoas
acreditam que a democracia pode existir sem partidos políticos (48%).
Essas tendências de
descontentamento político e de indiferença democrática facilitam a virada para
o autoritarismo e o populismo conservador na região. Seguindo nossa análise da
opinião pública latino-americana, vemos que, quando os cidadãos são
questionados sobre se estariam de acordo com um governo não democrático que
resolvesse os problemas existentes, a tendência é ascendente, passando de 44%
em 2002 para 54% em 2023. Em Honduras, a porcentagem de respostas
afirmativas a essa afirmação é de 70%, enquanto no Paraguai é de 68%,
na Guatemala de 66%,
na República Dominicana e El Salvador de 63%. Nos países
do Cone Sul, o apoio a essa opção é menor, situando-se em torno de 40%.
No entanto, esta
não é a única variável que certifica a virada autoritária. Existem várias
outras. 36% dos latino-americanos entrevistados defendem que o presidente controle
os meios de comunicação em caso de dificuldades, e 35% apoiariam um governo
militar em seu país. Ambas as tendências mostraram um aumento na última década.
Esses achados, que
aqui refletimos brevemente, mostram uma profunda crise de confiança cidadã nas
instituições democráticas na América Latina, sublinhando a necessidade
urgente de reformas que fortaleçam a governança e restaurarem a fé na
democracia na região. O que aqui descrevemos, portanto, não se refere
majoritariamente à onda autoritária que a região experimentou no meio do século
XX, mas sim ao declínio e vulnerabilidade democrática que os países
da região alcançaram após uma década de deterioração contínua e sistemática da
democracia.
A regressão se
materializa no baixo apoio à democracia, no aumento da indiferença ao tipo de
regime político — o que leva à aposta por projetos políticos de duvidosa
trajetória democrática —, no colapso do desempenho dos governos e na busca por
lideranças unipessoais e excepcionais, e na crescente imagem negativa dos
partidos políticos. Esses fatores abrem a porta para atitudes favoráveis ao
autoritarismo por parte de alguns setores da população latino-americana, como
veremos a seguir.
·
Milei
e Bukele, dois exemplos da regressão democrática em um momento destituinte.
Os dois casos que
se expressaram como os símbolos da deterioração democrática na região são, sem
dúvida, o de El Salvador, com Nayib Bukele, e o da Argentina,
com Javier Milei. Ambos os líderes
expressam perspectivas políticas reacionárias que constituem um perigo para os
sistemas e instituições democráticas.
Javier Milei, que
se define como paleolibertário ou anarcocapitalista, reúne todas as
características de um outsider disposto a encarnar a indignação e a raiva
social em uma sociedade em choque. Milei irrompeu na política
argentina com uma candidatura presidencial desafiadora para arrasar com os
partidos políticos tradicionais, tanto à direita quanto à esquerda, e desafiar
o establishment político. As excentricidades do candidato, sua inexperiência,
suas incoerências programáticas e ideológicas ou o questionamento de alguns
consensos básicos na sociedade argentina não diminuíram nem um pouco seu apelo
eleitoral, permitindo-lhe vencer de forma expressiva o segundo turno com uma
coalizão eleitoral que ia além do espectro conservador e que abrangia
classes subalternas e pessoas descrentes no sistema democrático. O fato é que,
segundo diversos dados das pesquisas de opinião pública, antes da eleição
presidencial que levou Milei ao governo, já existia um caldo de
cultivo para que, em um país como a Argentina, imerso em um choque social,
econômico e político, fosse possível apostar em um candidato com pretensões de
romper com o sistema (e com o Estado).
O relatório
do Latinobarômetro mostra que, exceto em 2023, a Argentina já
registrava uma queda constante no apoio ao sistema democrático. Essa queda na
confiança nas instituições e no regime político serviu como um fundo,
juntamente com a apatia cidadã, para o crescimento de opções autoritárias.
A essa diminuição
do apoio ao sistema democrático soma-se o fato de que oito de cada dez
argentinos consideram que o país está sendo governado por uma série de grupos
poderosos que utilizam o sistema em benefício próprio. Esses números são semelhantes
aos do início da década de 2000, quando ocorreu o confisco das economias dos
cidadãos e o subsequente estalo social com o grito de 'Que se vayan todos'.
Agora, apenas 12% da população argentina acredita que o país conta com
administrações preocupadas com o bem comum, e seis em cada dez manifestam
insatisfação com o funcionamento da democracia. Ao mesmo tempo, a percepção dos
argentinos de que os esforços para combater a corrupção são escassos ou
inexistem tem crescido. Desde 2010, a política se tornou o alvo preferido da
cidadania, ficando apenas abaixo dos problemas de ordem econômica. Em resumo,
como mostram os números do estudo de opinião do Latinobarômetro, os
argentinos estão fartos dos partidos políticos. 50,6% discordam e 25,5%
discordam fortemente da afirmação de que esses partidos funcionam bem.
Em resumo, o
desinteresse, a 'antipolítica', o cansaço com o
sistema, a indiferença e a crescente insatisfação parecem ter atuado como o
coquetel de uma série de tendências sociais que impulsionaram um candidato
excêntrico e outsider, que conseguiu manter níveis notáveis de apoio,
apesar da virada antissocial e autoritária que está implementando nos seus
primeiros meses de governo.
Vamos agora para o
outro caso de estudo: Nayib Bukele. Bukele, um político millennial que se
ergueu como antisistema, apesar de vir de um partido tradicional e ter iniciado
uma carreira eleitoral bem-sucedida com ele, se define como um candidato
outsider, nem de esquerda nem de direita, que quer dar voz ao cidadão comum
contra a casta política. Um produto a mais da onda populista iniciada em 2010,
e um fenômeno que serviria de exemplo para outras opções políticas a partir
daquele momento. Bukele é o primeiro presidente eleito que não
pertence a nenhum dos grandes partidos desde o fim da guerra civil
salvadorenha, e fez isso com uma maioria de 53% em 2019. De fato, a estética e
a comunicação política de Bukele se assemelham mais a um
influenciador de redes sociais do que a um político profissional, apesar de já
estar há mais de uma década fazendo política. Com seu partido, Nuevas Ideas, Bukele focou
suas propostas na substituição da casta política salvadorenha, na transformação
econômica do país e, sobretudo, na segurança. A política de segurança
de Bukele, centrada na repressão sistemática e sem garantias das gangues
(as maras salvadorenhas), foi denunciada por diversas ONGs como contrária aos
direitos civis e judiciais mais básicos, além de ser uma ameaça ao
funcionamento democrático do país.
Se analisarmos as
tendências sobre crise
democrática que
vimos anteriormente, podemos afirmar que o El Salvador de Bukele se
encontra atualmente nas mesmas condições antecipadas da Argentina
de Milei, mas vinha de uma situação similar. O cenário anterior à vitória
de Bukele em El Salvador era semelhante ao
da Argentina pré-Milei, mas a chegada do novo mandatário provocou
modificações nas percepções da sociedade salvadorenha em relação à democracia e
ao funcionamento do sistema político. Desde que Bukele assumiu o
comando do país, o apoio à democracia como sistema aumentou, passando de 27,7%
para 45% entre os anos de 2020 e 2023.
Mais importante
ainda é o salto brutal que a satisfação com a democracia como sistema
experimentou em El Salvador: passou de pouco mais de 3% em 2016, o nível
mais baixo da série histórica desde 1996, para mais de 60% em 2023. Estamos
falando de um aumento de quase 50 pontos em apenas 7 anos. Tanto é que diminuiu
o número de salvadorenhos e salvadorenhas que apoiariam um regime militar em
casos extremos e também a cifra de pessoas que discordam da ideia de que
regimes não democráticos são legítimos se resolverem os problemas.
Essa tendência
espetacular vai de mãos dadas com o aumento do interesse pela política em El
Salvador. Desde a chegada de Bukele à presidência, o interesse pela
política no país passou de 25,2% para quase 47%.
No entanto, essa
não é a mudança de tendência mais impressionante, nem a que explica o
efeito Bukele: esse fenômeno não se entende sem o problema da
segurança. Bukele prometeu tornar El Salvador um país
seguro e acabar com a criminalidade. Além do sucesso ou não de sua proposta, ou
do método utilizado para alcançá-la, o que fica claro é a mudança na opinião
pública: a segurança/criminalidade como problema passou de 40,3% há 6 anos para
1,7%. Por outro lado, a preocupação de ser vítima de um crime com violência
despencou: em 2018, 45,7% acreditavam que poderiam ser vítimas de um crime
desse tipo quase o tempo todo, enquanto em 2023 a situação se inverteu e agora
41,5% acredita que isso nunca acontecerá. Os salvadorenhos se sentem mais
seguros com Bukele e daí vem o seu apoio ao sistema político.
Em resumo, os dados
mostram que Bukele assumiu as rédeas de um país com indicadores
similares aos da Argentina antes da vitória de Javier
Milei,
e tem relegitimado o sistema político por meio de sua pessoa, de sua ação
política e de suas estratégias comunicativas relacionadas à segurança. A
democracia securitária e punitiva parece ser a chave do sucesso de Bukele.
·
Um
novo contrato social para resgatar a democracia
A democracia está
se enfraquecendo em todos os lugares. A erosão que as instituições democráticas
estão sofrendo ao redor do mundo nos alerta de que o caminho para a
autocratização de nossos sistemas continua e afeta diversos países, tanto
na América Latina quanto no resto dos países democráticos. As razões
são múltiplas e as manifestações dessa crise democrática são diversas, mas por
trás delas há uma questão fundamental: a quebra da promessa de progresso
contínuo. O aumento da desigualdade, o crescimento
da pobreza e
da exclusão, as expectativas frustradas e as possibilidades de mudança falidas
geram instabilidade, incerteza e medo de um futuro cada vez mais imprevisível.
Todos esses fatos mostram que o frágil pacto social, político e econômico que
ligava a democracia à melhoria das condições de vida foi rompido.
Onde cresce a
antipolítica, a apatia, a indiferença e a insatisfação com o funcionamento da
democracia, é onde com mais força aparecem fenômenos
como Bukele ou Milei. Essas lideranças e essas opções surgem em
momentos em que a confiança no sistema foi quebrada, em que amplas camadas da
população deixaram de acreditar nas instituições que os governam. É então que
estes, sempre posicionados na direita radical, lançam sua ofensiva para romper
os consensos políticos que mantinham a estabilidade dos sistemas políticos em
que se movem.
A antiga promessa
de melhoria e de progresso contínuo que acompanhava os sistemas democráticos
parece ter sido soterrada pelas contradições do sistema econômico. Desde a
crise global de 2008-2012, os sistemas democráticos geram cada vez mais
indiferença e insatisfação, e começam a ser menosprezados diante das
alternativas autoritárias que parecem mais resolutivas aos desafios sociais e
políticos que temos pela frente. Os dados que vimos certificam essas tendências
e nos ajudam a entender fenômenos como Milei, Bukele ou Bolsonaro, além de nos
sinalizar quais grupos sociais são os mais críticos aos sistemas
democráticos.
Diante dessas
tendências de fundo, que assumem formas diferentes a nível local, regional e
global, recuperar as bases sociais e econômicas da democracia se tornou um
imperativo. E isso exige o desenvolvimento de uma proposta redistributiva e
pré-distributiva que permita às grandes maiorias sociais desenvolver uma vida
plena e satisfatória.
No entanto, mesmo
os líderes autoritários podem gerar apoio e ter ampla legitimidade social se
forem capazes de responder aos anseios e desejos da população. Em nenhum lugar
está escrito que formas autoritárias não possam contar com apoio popular se
cumprirem, ainda que de forma aparente, o que prometem à cidadania. O caso
de Bukele é o melhor exemplo: sem uma democracia que funcione para a
maioria, a legitimação do sistema virá por meio de resultados que não terão a
igualdade no centro, mas a repressão social.
Somente com essa
certeza — a de que a política democrática deve ser útil às maiorias — as forças
políticas e sociais que defendem os sistemas democráticos poderão oferecer
novos horizontes políticos de mudança e esperança para amplas maiorias sociais.
A democracia está em jogo.
Fonte: Nueva
Sociedad
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