terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Faria Lima vende por R$ 70 mi títulos que indicam investimento em desmatadores

PRODUTORES RURAIS autuados por desmatamento ilegal e com fazenda sobreposta a uma Unidade de Conservação, todas localizadas na Amazônia, são mencionados entre os potenciais beneficiários pela venda de Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA) ligados aos negócios do Grupo Genial. Com sede na Faria Lima, principal polo financeiro do país, o grupo controla mais de R$ 210 bilhões em ativos e figura hoje entre os cem maiores bancos do país.

Os CRAs – títulos privados que financiam atividades no meio rural – foram lançados ao mercado em dezembro de 2023 pela Genial Investimentos, empresa do Grupo Genial. A previsão inicial dessa emissão é ofertar a investidores até 70 mil títulos no valor de mil reais cada, totalizando R$ 70 milhões, com prazo de vencimento de 10 anos.

Segundo fontes do mercado financeiro ouvidas pela Repórter Brasil, o prospecto da negociação – documento com detalhes do produto financeiro ofertado – indica que os recursos arrecadados com a venda desses CRAs serão usados pelo Banco Genial, também do Grupo Genial, para a oferta de crédito e financiamento para 37 produtores e cooperativas rurais.

Essa informação está registrada em um anexo da oferta pública dos títulos, à qual a Repórter Brasil teve acesso. Entre esses 37 clientes estão fazendeiros com histórico de desmatamento (leia casos abaixo).

O anexo “detalha quem são os produtores rurais ou cooperativas agrícolas que podem receber os recursos provenientes das operações descritas no contrato”, explica Maria Eduarda Senna Mury, diretora de pesquisa jurídica e litígios da Harvest, organização que propõe ações legais contra mudanças climáticas, que analisou o prospecto a pedido da reportagem. “Ele funciona como uma lista específica e completa desses beneficiários, garantindo que os recursos serão direcionados apenas para aqueles previamente identificados e autorizados”, avalia.

A Repórter Brasil apresentou ao Banco Genial casos de produtores com irregularidades ambientais listados no anexo. A instituição afirmou que a “destinação futura dos recursos pelo Banco Genial descrita no cronograma do prospecto é indicativa e não vinculante”, e que “o Banco Genial tem um processo diligente de avaliação de operações, que considera diversos aspectos, e não realizou qualquer tipo de operação de crédito e/ou financiamento com os 37 produtores rurais mencionados” no prospecto.

•                        Pulverização de responsabilidades

A negociação desses CRAs foi estruturada com base em direitos de crédito que o Banco Genial tem a receber. Os direitos creditórios foram, então, repassados para a Companhia Província de Securitização, empresa securitizadora responsável por “transformar” as dívidas em títulos financeiros comercializáveis. A empresa não retornou as tentativas de contato. 

A pulverização de responsabilidades entre diversos agentes financeiros – como securitizadoras, bancos e investidores – dificulta o rastreamento da legalidade das propriedades envolvidas na negociação, avalia Maria Mury, da organização Harvest. “Essa fragmentação permite que áreas com problemas ambientais continuem gerando receitas, sem que os investidores ou o público tenham plena consciência dos riscos envolvidos”, afirma.

“Deveria haver uma análise rigorosa no começo da operação, no momento da estruturação dos títulos, para assegurar que as propriedades cumpram com todos os requisitos legais e ambientais”, complementa Leonardo Gava, gerente-sênior da organização britânica Climate Bonds, certificadora de títulos financeiros internacionais.

•                        Da Faria Lima à Amazônia

O prospecto divulgado pela Genial Investimentos lista as inscrições estaduais das fazendas dos 37 clientes. Assim, foi possível identificar entre eles produtores rurais que constam na lista pública de embargos do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais) ou da Sema-MT (Secretaria de Meio Ambiente do Mato Grosso) devido ao desmate ilegal de floresta amazônica.

Por lei, são proibidas atividades econômicas em áreas embargadas. As áreas nesta condição identificadas pela Repórter Brasil estão localizadas no mesmo município e em propriedade de mesmo nome daquelas registradas nas inscrições estaduais do prospecto.

Uma delas é a Fazenda Bianchin, de Amarildo Bianchin e Nilson José Bianchin. A propredade possui três embargos registrados pelo Ibama em 2013 e 2016 pelo desmatamento ilegal de um total de 4.994 hectares.

Em 2022, Amarildo Bianchin foi alvo de uma Ação Civil Pública movida pelo MPMT (Ministério Público do Mato Grosso) pelo desmatamento de 908,5 hectares na mesma propriedade. Parte desses desmatamentos, ocorridos entre 2009 e 2017, já haviam sido identificados pelo Ibama. O MPMT quer que o produtor pague uma indenização de R$ 4,6 milhões pelos danos ambientais causados. Bianchin contesta a ação na Justiça.

O produtor respondia, ainda, por outra ação do MPMT pelo descumprimento de um embargo de 1.295 hectares registrado pelo Ibama em 2013 na Fazenda Bianchin. Uma decisão liminar de 2019 da Justiça determinou que ele obedecesse à sanção e apresentasse um plano de recuperação da área degradada.

Outro caso de irregularidade ambiental entre os clientes mencionados no prospecto da Genial envolve o produtor Francisco Afonso Guollo. A Fazenda São Francisco de Assis, registrada em seu nome, possui dois embargos por desmatamento ilegal. O primeiro foi lavrado pelo Ibama em 2017, que identificou a supressão de 108,7 hectares de floresta nativa sem autorização. Em 2021, foi a vez da Sema-MT embargar 1,7 hectares na fazenda.

Em 2019, Guollo já havia se tornado réu em uma Ação Civil Pública movida pelo MPF (Ministério Público Federal) pelo desmatamento ilegal de 64,8 hectares na Fazenda São Francisco de Assis. O Ministério Público Federal pediu indenizações que somaram pouco mais de R$ 1 milhão e o caso segue em disputa na Justiça.

Também no nome de Francisco Guollo está a Fazenda Bataguassu. A propriedade está sobreposta à Estação Ecológica do Rio Ronuro, uma unidade de conservação estadual de proteção integral criada em 1998. Desde 2016, Guollo tentava na Justiça uma autorização para criar bois e cultivar soja e milho na propriedade.

Segundo o processo judicial, consultado pela Repórter Brasil, o produtor desmatou áreas dentro propriedade em 2001, anos depois da criação da unidade de conservação. Nesse tipo de área protegida, a supressão de vegetação é proibida, assim como todas as atividades econômicas, com exceção daquelas com fins educacionais e científicos. Em 2021, a Justiça negou o pedido de Guollo.

Tanto uma inscrição estadual da Fazenda São Francisco de Assis quanto uma da Fazenda Bataguassu estão listadas no prospecto divulgado pela Genial Investimentos.

Já a Fazenda Dois Irmãos possui 92,4 hectares embargados pelo Ibama desde 2015. A penalidade foi registrada em nome de Nelson AntonioHeuert, dono da propriedade. Também nesse caso, o prospecto inclui uma inscrição estadual em nome de Heuert e com o mesmo nome da fazenda desmatada.

Uma ação movida pelo MPMT pede que o produtor pague uma indenização por danos materiais e realize o reflorestamento da área degradada. Condenado em primeira instância, Heuert recorre da decisão. Em 2019 e 2023, novos embargos foram realizados na Fazenda Dois Irmãos, dessa vez pela Sema-MT: o primeiro de 28,9 hectares e o segundo de 76,2 hectares, ambos pelo desmatamento ilegal de vegetação nativa.

A Repórter Brasil procurou os três produtores rurais citados acima, mas nenhum respondeu aos questionamentos enviados até o fechamento desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestações futuras.

•                        Especialistas cobram regulação

Os CRA são títulos do mercado financeiro usados para captar recursos para o financiamento de atividades agropecuárias. Em uma ponta da operação estão investidores atraídos pela isenção de Imposto de Renda e pela rentabilidade maior do que em outras modalidades de renda fixa. Na outra, ficam os proprietários rurais, que contraem dívidas para financiar a safra. Essas dívidas são securitizadas, ou seja, convertidas em títulos que podem ser negociados.

No Brasil, o Banco Central veta a concessão de crédito rural para propriedades com embargos ambientais. Essas diretrizes, no entanto, não se aplicam aos títulos privados de dívidas, como os CRAs, que são regulados por normas específicas da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Maria Eduarda Mury, da organização Harvest, afirma que é competência da CVM estabelecer regras ambientais para a emissão de títulos do agronegócio. “O órgão precisa criar um regulamento próprio ou fazer a aplicação subsidiária do Manual de Crédito do Banco Central”, sugere.

Tasso Azevedo, coordenador do projeto Mapbiomas, sugere a vinculação obrigatória do Cadastro Ambiental Rural (CAR) à emissão de títulos do agronegócio, de modo a garantir que somente propriedades sem embargos ou irregularidades ambientais possam participar. “Isso permitiria maior transparência e controle, evitando que áreas embargadas se beneficiem de recursos financeiros”, pontua.

Em resposta à Repórter Brasil, a CVM declarou que as securitizadoras têm obrigação de garantir a regularidade ambiental das emissões de títulos e que, em caso de suposto descumprimento, as companhias estarão sujeitas a sanções. O órgão também reforçou que está “permanentemente modernizando a regulamentação e supervisão” da negociação de títulos no mercado de capitais.

 

•                        Agronegócio protagoniza campanha cultural contra a reforma agrária, diz pesquisadora

"Agro é tech, agro é pop, agro é tudo". Essa campanha publicitária do Grupo Globo de Comunicação é hoje conhecida por quase toda a população brasileira. Segundo a pesquisadora Ana Chã, ela faz parte de um esforço concentrado do agronegócio para reduzir a pressão social contra seu modo de produção, apesar das evidências científicas que ligam o setor ao aquecimento global e outros problemas econômicos e sociais no Brasil.

Chã participou nesta sexta-feira (6) de uma conferência realizada durante a Jornada de Agroecologia. O evento, que acontece no Centro Politécnico da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba (PR) vai até domingo (8).

Em sua conferência, Chã apontou que, há cerca de 20 anos, o agronegócio entendeu que precisaria disputar a opinião da população para continuar recebendo o apoio político e econômico que recebe hoje. O setor é um dos mais beneficiados por isenções fiscais, por exemplo.

Para fazer essa disputa, o setor agiu profissional e estrategicamente na publicidade, na música e na cultura como um todo em seu favor. A campanha "agro é pop" é prova disso, mas não é um caso isolado, disse Chã.

"O gênero sertanejo, que cantava a vida no campo, virou o agronejo, que agora defende o agronegócio", afirmou ela. "As novelas mostram todo dia plantações de soja, colheitadeiras, um latifundiário que agora é tecnológico e poderoso."

De acordo com Chã, o agro também já organizou grupos para monitorar a produção de material didático contra menções negativas do setor. Hoje, inclusive, financia pesquisas científicas enviesadas para defendê-lo.

Para ela, tamanha campanha tem dado resultado e reduzido a pressão sobre a reforma agrária no Brasil. "Parece até que o agro conseguiu resolver tudo e a redistribuição da terra não é mais necessária", alertou a pesquisadora.

Ela, no entanto, reforçou que a mudança no setor agropecuário brasileiro é urgente.

Essa urgência, aliás, foi reforçada pelo sociólogo Thiago Torres, conhecido como Chavoso da USP, que também participou da conferência. "Por trás dessa crise climática está a mercantilização da natureza", apontou Chavoso.

Ele disse que o ser humano manteve uma relação equilibrada com o meio ambiente durante quase toda sua história. A busca pela maximização da produção a todo custo foi o que levou a humanidade à atual encruzilhada climática.

Torres reforçou que uma ação coordenada do agronegócio tenta reduzir a importância dessa discussão para um futuro sustentável. Ele lembrou que, há séculos, o setor concentra o poder econômico e político no Brasil. Hoje, usa esse poder a seu favor também na mídia.

"As famílias donas das redes de televisão também são do agronegócio. Há toda uma indústria cultural e musical ligada ao agro", disse Chavoso. "Querem nos convencer de que eles produzem comida. Mas quem produz é agricultura familiar."

Outra participante da conferência, a professora da UFPR Maria Isabel Limongi, disse que a resistência a essa campanha do agro precisa ser feita com informações e mobilização política.

Limongi destacou que o mundo vive hoje desastres em cascata também por conta do modo de produção agrícola no Brasil. Muitas pessoas se negam a ver tal realidade ou optam por não agir. Isso, contudo, não trará solução. A mobilização é a única solução viável.

"Precisamos agir ou agir. E agir dentro da política", afirmou ele. "Fora da política, não há solução."

 

Fonte: Repórter Brasil/Brasil de Fato

 

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