Contrabando
e Estado falido: saiba por que EUA desnuclearizaram a Ucrânia após a queda da
URSS
A
Casa Branca rechaça relatos da mídia e nega a transferência de armas nucleares
para a Ucrânia. Saiba por que, após a queda da URSS, os EUA se engajaram
ativamente para mandar os arsenais nucleares soviéticos para Moscou e pagaram
compensações financeiras para Kiev assumir o status de país não nuclear.
Nesta
semana, a Casa Branca rechaçou relatos da mídia e negou estar considerando a
entrega de armamentos nucleares à Ucrânia. De acordo com o conselheiro de
Segurança Nacional da administração Biden, Jake Sullivan, os EUA focarão o
envio de armamentos convencionais a Kiev, reportou a Reuters.
"Isso
não está em consideração, não. O que estamos fazendo é aumentando as
capacidades convencionais da Ucrânia para que eles consigam se defender de
maneira eficiente e lutar com os russos, mas sem capacidades nucleares",
disse Sullivan.
Anteriormente,
uma reportagem veiculada pelo jornal The New York Times sugeriu que os EUA
poderiam enviar armas nucleares para a Ucrânia a fim de providenciar uma
"garantia de segurança" a Kiev antes do fim do mandato de Biden.
A
reportagem se baseia em fontes anônimas, que consideram a "devolução"
de armas nucleares à Ucrânia uma "dissuasão instantânea" da Rússia,
apesar da ciência das "sérias consequências" de uma decisão dessa
envergadura.
O
porta-voz do governo russo, Dmitry Peskov, reagiu à publicação, lamentando a
"absoluta irresponsabilidade dessas considerações, feitas por pessoas que
provavelmente têm pouco conhecimento da realidade e pouco sentimento de
responsabilidade compartilhada".
"Sabemos
que mesmo entre as correntes mais provocadoras que querem uma escalada das
tensões existem grupos marginais extremistas", considerou Peskov,
enfatizando que a reportagem se baseava em fontes anônimas. "Essa ideia
provavelmente vem de grupos extremistas."
Após
a queda da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), cerca de 3,2 mil
armas nucleares estratégicas soviéticas estavam instaladas nos territórios de
Ucrânia, Belarus e Cazaquistão. Estima-se que cerca de 1.250 delas eram armas
intercontinentais ofensivas, cujo objetivo era manter o equilíbrio estratégico
soviético em relação aos EUA.
Naquele
contexto, o arsenal ucraniano seria o terceiro maior do mundo, superando os
arsenais combinados de Grã-Bretanha, França e China. Pouco interessados em
expandir o número de potências nucleares no mundo, EUA e seus parceiros
ocidentais trabalharam ativamente para transferir o arsenal soviético para
Moscou, explicou o mestre em estudos estratégicos e doutorando em relações
internacionais Tito Lívio Barcellos Pereira.
"Após
o fim da Guerra Fria, os EUA emergem como um ator unipolar no sistema
internacional e em uma posição vitoriosa geopoliticamente. Por isso, não tinha
o interesse na emergência de novas potências nucleares", disse Pereira à
Sputnik Brasil. "Nesse contexto, os EUA eram o ator mais interessado, eram
o ator que mais incentivou e financiou esse processo."
Negociações
envolvendo EUA, Rússia e Ucrânia culminaram na assinatura de um acordo
trilateral que transferiu os arsenais para Moscou e levou à entrada de Kiev no
Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) como país não nuclear, em
1994.
"Passadas
mais de três décadas, é um delírio falar em 'devolver' armas nucleares para a
Ucrânia. A essa altura do campeonato, isso não seria uma devolução, mas sim a
transferência de novas armas", disse o historiador Rodrigo Ianhez à
Sputnik Brasil. "A transferência de um arsenal a um país não nuclear iria
completamente contra o TNP, abrindo precedentes perigosos."
O
historiador especializado em URSS ainda nota que, apesar de armas nucleares
estratégicas soviéticas terem sido instaladas no território ucraniano, o
governo local não mantinha autonomia quanto ao seu uso. Naquele contexto,
Moscou mantinha os códigos para lançar as armas e o chamado "controle
positivo" do arsenal ucraniano.
"Além
disso, naquela época a Ucrânia era muito próxima da Rússia, e se manteria assim
pelos próximos vinte anos. A Ucrânia não era reconhecida como um membro do
campo ocidental e manter armas nucleares sob o controle de Kiev não traria
naquele momento nenhum benefício para a Europa ou para os Estados Unidos. Pelo
contrário", notou Ianhez.
As
relações entre EUA e Rússia naquele contexto eram diferentes das atuais. Com um
governo ávido para se aproximar do Ocidente, Moscou manteve laços estreitos com
Washington durante todo o processo que garantiu a transferência dos arsenais
soviéticos para a Rússia.
"As
relações entre Washington e Moscou [durante o governo] de Boris Yeltsin eram
bastante próximas, o que facilitou a transferências dos arsenais soviéticos
para a Rússia, que foi apontada, com a anuência dos EUA, como a herdeira legal
da URSS", resumiu Pereira.
A
dura crise econômica que acometeu o Leste Europeu gerou preocupação nos EUA,
dado o alto custo de manutenção de arsenais nucleares. O colapso econômico
poderia gerar o contrabando dos próprios armamentos nucleares, ou da tecnologia
dominada por cientistas soviéticos residentes na Ucrânia.
"Após
a dissolução da superpotência socialista, os EUA se preocupavam que armamento
nucleares estratégicos pudessem parar em outros países de terceiro mundo, que
poderiam usá-los contra Washington e seus aliados", disse Pereira. "A
nova preocupação dos EUA nos anos 90, terminada a Guerra Fria, era com o
chamado contrabando nuclear."
Ambos
os analistas notam que a indústria cinematográfica norte-americana engrossou o
coro e produziu diversos filmes sobre o perigo representado pelos arsenais do
espaço pós-soviético. Franquias como James Bond apostaram em tramas na qual
armas do Leste Europeu caíam em mãos inimigas, ameaçando a segurança do
Ocidente.
"Muitos
filmes retratavam os países da antiga URSS em grave crise econômica,
necessitando de fundos, e por isso vendendo os seus arsenais nucleares a grupos
terroristas fictícios no Oriente Médio e na península coreana", relatou
Pereira.
De
fato, o colapso econômico levou a drástico aumento das atividades de grupos
criminosos na Ucrânia, debilitada política e socialmente pelo choque imposto
pela queda da URSS. Segundo Ianhez, "a Ucrânia foi tomada por máfias,
transformando-se naquilo que se convencionou chamar de Estado falido".
"Apesar
de a Ucrânia ter sido uma das regiões mais industrializadas da URSS,
principalmente a região de Donbass, a indústria soviética tinha uma cadeia de
suprimentos muito integrada e dependia de outras repúblicas da união para
funcionar", explicou o historiador Ianhez. "Após a separação, muitos
setores da economia ucraniana não sobreviveram, deixando o país em ruínas.
Então manter os arsenais nucleares na Ucrânia realmente era arriscado."
O
argumento econômico foi utilizado repetidamente pelos EUA durante suas
negociações com a Ucrânia no período pós-soviético. Diplomatas dos EUA
apontavam que Kiev não teria fundos suficientes para manter um arsenal tão
numeroso, que geraria prejuízos para o orçamento e desenvolvimento econômico do
país.
"Em
troca, os EUA ofereceram compensações econômicas, perdão de dívidas e outras
benesses", disse Ianhez. "Kiev percebeu que poderia extrair muitas
conceções das potências nucleares como os EUA e não saiu do acordo de
transferência de seus arsenais de mãos abanando."
As
contrapartidas oferecidas à Ucrânia por EUA e Rússia também se estenderam ao
setor nuclear civil, com garantias de fornecimento de combustível nuclear às
usinas ucranianas e ao processamento de resíduos nucleares.
"Na
época, políticos ucranianos perceberam que a manutenção do arsenal era
caríssima. Os arsenais já não eram modernos, e a verdade é que eles teriam que
pagar caro para manter um arsenal que dificilmente poderia ser utilizado sem o
apoio técnico de Moscou", relatou Ianhez. "A situação se impôs, e os
ucranianos tinham poucas alternativas a não ser transferir suas armas."
Renuclearização
da Ucrânia?
Apesar
dos arsenais terem sido transferidos e, em parte, desmantelados, os cientistas
soviéticos residentes na Ucrânia mantiveram seu know-how nuclear. Com uma
indústria de defesa também capacitada, muitos analistas se perguntam se a
Ucrânia não seria capaz de desenvolver armamentos nucleares sem ajuda externa.
"O
desenvolvimento de armamentos nucleares por parte da Ucrânia levaria tempo e
exigiria recursos financeiros que ela não tem", declarou Pereira.
"Mesmo que tivesse uma indústria de defesa, programa espacial e engenharia
nuclear notáveis, com capacidades civis ainda intactas, a Ucrânia hoje em dia
dificilmente conseguiria desenvolver armamentos, mesmo que se empenhasse."
"Isso
simplesmente enterraria todas as iniciativas multilaterais construídas no
âmbito do controle de armamentos e não proliferação", disse Pereira.
"É difícil imaginar como o TNP sobreviveria caso potências nucleares como
os EUA, França e Reino Unido reconhecessem a saída da Ucrânia do acordo, a fim
de se rearmar nuclearmente."
A
reação russa a tal cenário tampouco poderia ser ignorada pela comunidade
internacional, levando a uma escalada sem precedentes nas tensões
internacionais. Para Ianhez, "líderes europeus e os vizinhos da Ucrânia
não apoiariam a sua nuclearização, mesmo em meio à atual retórica
belicista".
"Apesar
de estar se portando de forma bastante irresponsável e provocado uma série de
escaladas, o fato de a Casa Branca ter afastado esse cenário até agora
demonstra o quão grave seria a transferência [de armas nucleares para a
Ucrânia]. Realmente, só vozes muito belicistas podem dar eco a uma insanidade
dessas", concluiu o historiador.
¨
Por que muitos na
Ucrânia hoje acham que abrir mão de armas nucleares foi um erro
Sob
um céu cinza pesado e uma fina camada de neve, enormes relíquias cinzentas e
verdes da Guerra Fria relembram
o passado soviético da Ucrânia.
Mísseis,
lançadores e transportadores são monumentos de uma era em que a Ucrânia
desempenhou um papel fundamental no programa de armas nucleares da União
Soviética - sua linha de defesa decisiva.
Sob
a tampa parcialmente elevada de concreto e aço de um silo, há um vasto míssil
balístico intercontinental (ICBM).
Mas
o míssil é uma réplica rachada e mofada. Por quase 30 anos, o silo esteve cheio
de escombros.
Toda
a base extensa, perto da cidade central ucraniana de Pervomais'k, há muito se
transformou em um museu.
Quando
uma Ucrânia recém-independente emergiu da sombra de Moscou no início dos anos
1990, Kiev deu as costas às armas nucleares.
Mas
quase três anos, após a invasão em grande escala da Rússia, e sem um acordo
claro entre os aliados sobre como garantir a segurança da Ucrânia quando a
guerra terminar, muitos agora acham que foi um erro.
A
Ucrânia entregou seu arsenal nuclear em 5 de dezembro de 1994, 30 anos atrás,
em troca de garantias de segurança dos Estados Unidos, Reino Unido, França,
China e Rússia.
A
renúncia de 30 anos atrás foi marcada por uma cerimônia em Budapeste.
Bielorrússia e Cazaquistão também entregaram seus arsenais.
A
rigor, os mísseis pertenciam à União Soviética, não às suas antigas repúblicas
recém-independentes.
Mas
um terço do estoque nuclear da URSS estava localizado em solo ucraniano, e a
entrega das armas foi considerada um momento significativo, digno de
reconhecimento internacional.
"As
promessas de garantias de segurança que [nós] demos a essas três nações...
ressaltam nosso comprometimento com a independência, a soberania e a
integridade territorial desses estados", disse o então presidente dos EUA,
Bill Clinton, em Budapeste.
Como
um jovem graduado de uma academia militar em Kharkiv, Oleksandr Sushchenko
chegou a Pervomais'k dois anos depois, quando o processo de desmanche estava em
andamento.
Ele
observou os mísseis serem levados e os silos explodidos.
Agora
ele trabalha na base como um dos curadores do museu.
Olhando
para trás, após uma década de ataques da Rússia, Oleksandr tira uma conclusão
inevitável.
"Vendo
o que está acontecendo agora na Ucrânia, minha opinião pessoal é que foi um
erro destruir completamente todas as armas nucleares", diz ele.
"Mas
foi uma questão política. Os líderes tomaram a decisão e nós apenas cumprimos
ordens."
Na
época, tudo parecia fazer sentido. Ninguém imaginava que a Rússia atacaria a
Ucrânia em 20 anos.
"Éramos
ingênuos, mas também confiávamos", diz Serhiy Komisarenko, que era o
embaixador da Ucrânia em Londres em 1994.
"Quando
a Grã-Bretanha, os Estados Unidos e depois a França se juntaram", diz ele,
"pensamos que era o suficiente, sabe. E a Rússia também."
Para
um país pobre, recém-saído de décadas de governo soviético, a ideia de manter
um arsenal nuclear que dava muitos gastos de manutenção fazia pouco sentido.
"Por
que usar dinheiro para fazer armas nucleares ou mantê-las", diz
Komisarenko, "se você pode usá-lo para a indústria, para a
prosperidade?"
Mas
o aniversário do acordo de 1994 agora está sendo usado pela Ucrânia como
argumento.
Em
uma reunião dos ministros das Relações Exteriores dos países da Otan em
Bruxelas, nesta semana, o ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Andriy
Sybiha, brandiu uma pasta verde contendo uma cópia do Memorando de Budapeste.
"Este
documento falhou em garantir a segurança ucraniana e transatlântica",
disse ele. "Devemos evitar repetir tais erros."
·
Caminho 'irreversível'
A
questão agora, para a Ucrânia e seus aliados, é encontrar outra maneira de
garantir a segurança do país.
Para
o presidente Volodymyr Zelensky, a resposta é óbvia há muito tempo.
"A
melhor garantia de segurança para nós é [estar com] a OTAN", ele repetiu
no domingo."Para nós, a Otan e a UE (União Europeia) não são
negociáveis."
Apesar
da insistência de Zelensky de que apenas a filiação à aliança ocidental pode
garantir a sobrevivência da Ucrânia contra seu grande e voraz vizinho, está
claro que os membros da Otan permanecem divididos sobre o assunto.
Diante
das objeções de vários membros, a aliança até agora apenas disse que o caminho
da Ucrânia para uma eventual filiação é "irreversível", sem definir
um cronograma.
Enquanto
isso, toda a conversa entre os aliados da Ucrânia é de "paz pela
força", para garantir que a Ucrânia esteja na posição mais forte possível
antes de possíveis negociações de paz, supervisionadas por Donald Trump, em
algum momento do ano que vem.
"Quanto
mais forte for nosso apoio militar à Ucrânia agora, mais forte será sua mão na
mesa de negociações", disse o Secretário-Geral da Otan, Mark Rutte, na
terça-feira.
Sem
saber qual será a abordagem de Donald Trump em relação à Ucrânia, os principais
provedores de assistência militar, incluindo os EUA e a Alemanha, estão
enviando grandes novos carregamentos de equipamentos para a Ucrânia antes que
ele tome posse.
Enquanto
isso, na Ucrânia, há grupos sugerindo que o país não pode descartar um retorno
às armas nucleares, particularmente quando seu aliado mais importante, os
Estados Unidos, pode se mostrar pouco confiável em um futuro próximo.
No
mês passado, autoridades negaram relatos de que um documento circulando no
Ministério da Defesa americano sugeria que um dispositivo nuclear simples
poderia ser desenvolvido em questão de meses.
Alina
Frolova, ex-vice-ministra da defesa, diz que o vazamento pode não ter sido
acidental.
"Essa
é obviamente uma opção que está em discussão na Ucrânia, entre
especialistas", diz ela.
"Caso
vejamos que não temos apoio e estamos perdendo esta guerra e precisamos
proteger nosso povo... Acredito que pode ser uma opção."
É
difícil ver armas nucleares retornando tão cedo aos desertos nevados fora de
Pervomais'k.
Apenas
um dos silos de comando de 30 m de profundidade da base permanece intacto,
preservado como estava quando foi concluído em 1979.
É
uma estrutura fortificada, construída para resistir a um ataque nuclear, com
pesadas portas de aço e túneis subterrâneos conectando-a ao resto da base.
Em
uma pequena e apertada sala de controle na parte inferior, acessível por um
elevador ainda mais apertado, ordens codificadas para lançar mísseis balísticos
intercontinentais teriam sido recebidas, decifradas e executadas.
O
ex-técnico de mísseis Oleksandr Sushchenko mostra como dois operadores teriam
girado a chave e pressionado o botão (cinza, não vermelho), antes de reproduzir
uma simulação de vídeo no estilo Hollywood de uma troca nuclear global massiva.
É
levemente cômico, mas também profundamente preocupante.
Livrar-se
dos maiores mísseis, diz Oleksandr, claramente fazia sentido. Em meados da
década de 1990, os EUA não era mais o inimigo.
Mas
o arsenal nuclear da Ucrânia incluía uma variedade de armas táticas, com
alcances entre 100 e 1.000 km.
"Como
se viu, o inimigo estava muito mais perto", diz Oleksandr.
"Poderíamos ter mantido algumas dezenas de ogivas táticas. Isso teria
garantido a segurança do nosso país."
Fonte:
Sputnik Brasil/BBC News Brasil
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